ENTREVISTA/GIUSEPPE COCCO (Observatório da Imprensa)
Cientista político fala sobre o cenário das manifestações
 Por Bruno Lara em 08/10/2013 na edição 767
 Poucos dias antes de uma nova manifestação em prol da educação, a ser realizada segunda-feira (7/10)
 no centro do Rio de Janeiro, com a expectativa da presença de um milhão
 de pessoas, o blog Dissertação Sobre Divulgação Científica (http://dissertacaosobredc.blogspot.com)
 conversou com o cientista político Giuseppe Cocco. Em quase uma hora de
 entrevista, ele falou sobre a efervescência social e política que paira
 na cidade carioca, os protestos como um todo no país, o papel da 
esquerda no presente cenário, o protagonismo da comunicação horizontal 
na Internet, a crise da representatividade política, entre diversos 
outros assuntos.
 Italiano de nascimento, Cocco vive no Brasil desde os anos 90, onde 
desde então vem militando na política e atuando em movimentos 
universitários. Embora seja petista, é um crítico do partido. 
Atualmente, entre as suas atividades, ele é professor da Universidade 
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Brasileiro de Informação
 em Ciência e Tecnologia (IBICT). É autor, coautor ou editor de 22 
livros, entre os quais estão Biopoder e luta em uma América Latina globalizada, em parceria com Antonio Negri, e MundoBRaz: o devir Brasil do mundo e o devir mundo do Brasil.
 Confira a entrevista.
 Como o meio acadêmico tem recepcionado as manifestações que começaram em junho?
 Giusppe Cocco – É difícil dizer de um modo geral. 
Espera-se da academia um discernimento e uma consciência capazes de 
interpretar adequadamente as dinâmicas sociais e políticas. Muitos 
professores e pesquisadores ficaram quietos, sem compreender o que 
estava e ainda está se passando. Há, ainda, os que, também perdidos 
diante das situações, tentaram acobertar a própria dificuldade de 
interpretação através da desqualificação dos movimentos. Muitos acusaram
 os “mascarados” de fascistas, abrindo caminho para segmentos 
intelectuais da academia e da imprensa condenarem os protestos pelos 
péssimos serviços públicos.
Quais as principais teorias e autores estão em voga para contribuir no entendimento desse cenário?
 G.C. – Todos aqueles autores que estudam as 
transformações relacionais de trabalho, essencialmente os que 
conseguiram articular as análises sociológicas das tendências do 
trabalho – que é difuso, imaterial e em redes – à centralidade dos 
espaços metropolitanos como ambientes de produção, assim como a 
políticas de incorporação das diferenças e singularidades sociais. Os 
principais autores são os que há mais tempo pesquisam conceitos como o 
de multidão e de trabalho imaterial. Antonio Negri é um dos maiores 
pensadores do tema. Os acadêmicos que sempre se recusaram a pesquisar 
tais aspectos como caminhos interessantes e viáveis, buscam 
desqualificar toda essa ebulição social e política em que vivemos. Na 
verdade, eles estão aí para saudar a si mesmos e aos seus aportes 
teóricos e políticos.
A interrupção do paradoxo do lulismoDo ponto de vista sociopolítico, quais as consequências dessas manifestações?
 G.C. – É muito cedo para elaborarmos um mapa geral. 
Depende dos desdobramentos das relações políticas, produtivas e 
reprodutivas, enfim, de uma série de fatores. Isso ainda está 
completamente em aberto. O que é possível perceber é uma difusão geral, 
incluindo ramificações em diversas cidades, e uma requalificação das 
lutas, que começou pela mobilidade urbana, mas foi agregando diversas 
questões. Atualmente, no Rio, por exemplo, está bastante viva a luta por
 melhorias na educação municipal e estadual, incluindo o respeito e a 
valorização do professor. Os protestos são diários e têm capacidade para
 ampliar-se consideravelmente para além da greve, ocupando espaços 
públicos e resistindo à repressão policial. De fato, não há mais milhões
 nas ruas, mas os grupos estão mais determinados e consistentes.
 Outro impacto é a interrupção do paradoxo do lulismo. Antes, as lutas 
eram mais generalizadas em prol do crescimento produtivo, sendo que o 
desenvolvimento era creditado à e instrumentalizado pela direita, em 
discurso moralista e antilula. A partir de então, as críticas são mais 
acentuadas tanto contra o ciclo do Lula, quanto aos grandes interesses 
econômicos. A sociedade passa a querer mais e a acreditar em novas 
conquistas.
A diferença entre massa e multidão é que a massa é manipuladaAs ruas têm demonstrado força suficiente para gerar mudanças estruturais?
 G.C. – O próprio movimento é, em si, uma mudança 
estrutural, que não passa necessariamente por reforma política, por 
exemplo. Ao contrario, a reforma política poderia ocorrer como 
reconhecimento e legitimação diante de tamanha insatisfação expressa com
 tanta vontade. Os nossos representantes tradicionais não estão sabendo o
 que fazer diante dessas insistências sociais por reconhecimento aos 
diversos direitos. Há uma nítida incapacidade das instituições 
dialogarem com os cidadãos, o que fere a democracia. No Rio, a resposta 
tem sido a repressão. Porém, já há vitórias. Entre elas: a interrupção 
do processo de gentrificação e higienização ao redor do estádio do 
Maracanã, como a não demolição do parque aquático Júlio de Lamare e de 
moradias da região, incluindo a comunidade da Vila Autódromo; e a 
ampliação do debate sobre a desmilitarização policial e da repressão do 
Estado. Além disso, uma das principais conquistas do movimento foi fazer
 com que a Prefeitura revogasse o aumento no valor das tarifas do 
transporte público, que é muito precário e, essa sim, uma violência 
contra a população.
Hoje, nacionalmente há uma sensação de que podemos cobrar dos governos,
 exigir reformas e diálogos, sem o peso da instrumentalização da direita
 por trás.Qual é o de risco de manobras manipuladoras sobre tantas pessoas e grupos nas ruas?
 G.C. – Interpreto o movimento com um perfil bastante 
autônomo. Pela primeira vez temos uma situação em que segmentos sociais 
conseguem se organizar, fazer multidão e expressar toda a angústia pela 
qual passam. É clara a mensagem de que não aceitam serem governados por 
grupos manipulados por interesses capitalistas que bancam campanhas 
eleitorais, como os donos de empresas de ônibus. Se há manipulação, é a 
da imprensa hegemônica, como as coberturas das reivindicações dos 
professores no Rio de Janeiro. Muitas vezes, em vez de apresentar o 
contexto e a realidade da educação na cidade e no estado, criminalizam a
 postura das categorias. A grande imprensa até tenta se apropriar de 
algumas bandeiras do movimento, como a violência da polícia nas favelas,
 exemplificada na figura do Amarildo, mas a influência dessa mídia é 
mais sobre os aparelhos repressores. A opinião pública, cujo conceito é 
bastante questionável e relativo, não é mais tão sujeita aos humores da 
imprensa tradicional. Hoje, há uma multidão de mídias com diversas 
narrativas e habilidades para contrapor discursos oficiais.
As pessoas não são bobas, e agora desfrutam de mais recursos para se 
expressar e comunicar. A melhora na economia não criou classes 
individualistas preocupadas apenas com o incremento da renda, pelo 
contrário, as pessoas estão exigentes e insatisfeitas com o descompasso 
político dos poderes constituídos. A diferença entre massa e multidão é 
exatamente essa: a massa é manipulada. Já a multidão é capaz de definir 
os princípios e os critérios da mobilização, dentro de padrões 
democráticos. É isso o que ocorre quando os protestos se voltam, por 
exemplo, contra os legislativos do Rio, controlados por personagens sem o
 mínimo interesse na qualidade de vida e no desenvolvimento das cidades e
 das pessoas.
 É preciso abrir para o que “vem de baixo”
 A composição das multidões por singularidades dificulta o diálogo para encontrarmos soluções sociopolíticas?
G.C. – Esse é um discurso dos partidos e sindicatos, 
mas sem qualquer fundamento. Todos sabemos quais são os problemas do 
transporte, da saúde, da educação. E qual é o projeto dos partidos para 
mudar o país? Não dá para saber. A capacidade de organização em 
benefício comum tem sido muito mais evidente nessas manifestações do que
 nas agremiações partidárias.Como se dá a crise da representatividade política?
 G.C. – A crise não é a da representatividade dos 
partidos, mas sim da própria representação. A princípio, o PT seria o 
único partido a assumir a direção em prol das alternativas, mas neste 
momento entendo que nenhum deles tem condições e lucidez pata tal. É 
preciso abrir para o que “vem de baixo”, reinventar a relação entre 
elite e rua, promover projetos públicos com a participação cidadã, 
incluindo a elaboração dos orçamentos. A crise da representação está 
ligada à incapacidade da esquerda e da direita se apresentarem com caras
 diferentes, pois acabam sendo duas caras de uma mesma moeda.
O Brasil tem muitas razões para protestar
 Para onde tende a esquerda política brasileira?
 G.C. – Hoje, tudo o que há em termos de esquerda passa
 por fora dos partidos, por fora das dinâmicas eleitorais, mas passa, 
sim, nas ruas. A esquerda está num dilema. Tanto no Rio, quanto no país,
 o PSOL pode ter alguns retornos eleitorais por se posicionar em termos 
de opinião e militância, em parte, fruto da decepção com o PT. Porém, o 
partido também está em crise, do ponto de vista da representação. Acho 
até que o deputado estadual Marcelo Freixo tem condições de ganhar as 
eleições para governador, caso se candidate. No entanto, mais do que os 
esforços para as eleições, acho que a organização do PSOL orienta-se 
pelo testemunho e pela fiscalização das condições éticas da política. Já
 o PT parece estar em situação bem mais crítica do que eu imaginava. 
Está paralisado, sem sensibilidade política e sem capacidade de diálogo 
com as organizações civis. Os programas do governo são muito voltados 
para as grandes ações, os megaeventos, as grandes indústrias. As 
relações com a Fifa são exemplos claros disso. Ao contrário, deveríamos 
pensar e discutir aspectos menores, de expressão não tão monumentais. O 
Brasil que foi às ruas em junho é um Brasil menor, no sentido das 
megaestruturas.
Há críticas quanto às manifestações entusiasmadas nas redes online,
 enquanto que numericamente as ruas estão mais vazias, em comparação com
 os primeiros protestos. Isso é um problema para o movimento?
 G.C. – Há aí um efeito ambíguo. Claro, se havia 
milhões de pessoas e depois esse número é reduzido a milhares, há um 
sentimento de decepção. Mas, é preciso observar por outro ângulo para 
melhor entender o contexto. No Rio, por exemplo, os protestos são 
substanciais, até mesmo com mais de uma mobilização por dia. O fato de 
esse fenômeno ser bastante ativo na Internet não significa, 
necessariamente, um esvaziamento das praças públicas. A rede social 
virtual não é uma opção secundária, é o nosso modo de existência, é uma 
realidade primordial com interferências imediatas e diretas na nossa 
vida. A qualquer momento, os ânimos e as constituições de grupos das 
redes podem se materializar fora de dela. Por incrível que pareça, 
muitos acadêmicos de direita ainda não perceberam o potencial dessa 
dimensão, apesar de tudo o que estamos presenciando. A rede é um 
elemento ainda novo, com a qual o poder não está sabendo lidar, a não 
ser através de estados de exceção, desrespeitando direitos civis e 
constitucionais, através da quebra dos sigilos de diversos cidadãos que 
democraticamente estão se apropriando com legitimidade das redes sociais
 online. Um exemplo claro foi a criação da Comissão Especial de 
Investigação dos Atos de Vandalismo, atendendo aos interesses do 
executivo fluminense.
 Quais são os elementos em comum entre as diversas manifestações 
pelo mundo, desde a Primavera Árabe até o Brasil, passando pela Europa?
 G.C. – O que liga todos essas ondas de protestos é a 
própria crise da representatividade, é o fato de estarmos em um mesmo 
modelo capitalista, os mesmos ciclos econômicos e a mesma organização do
 trabalho. Também ressalto o papel ambíguo das classes médias, que são 
uma nova composição do trabalho imaterial metropolitano, e muitas vezes 
precisam agir por fora das relações salariais para produzir e conseguir 
sobreviver. Comparado à Europa, o Brasil tem muito mais razões para 
protestar. Aqui, são muito maiores o nível de desigualdade social e 
econômica, o modo de regulação dos pobres e a arrogância dos soberanos 
na aplicação de medidas e investimentos, muitos dos quais desconexos com
 os anseios e as necessidades sociais, como a execução do Plano de 
Aceleração do Crescimento (PAC) nas favelas do Rio.
***
Bruno Lara é jornalista, Petrópolis, RJ   
 
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