30 de dezembro de 2014

Cortar o tempo

Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo mercadologicamente genial, ele industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer pessoa se cansar e entregar os pontos. Aí entra o chamado milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra adiante vai ser diferente.

Carlos Drummond de Andrade (adaptado por Antônio Abujamra)

23 de dezembro de 2014

Andorinha

Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…

Manuel Bandeira

10 de dezembro de 2014

chamas

no alto dos mastros do marasmo
o câncer já prenunciado
morre
e o cântico entoado
pelas ruas
é raivoso & revoltado

nada de lirismo

no ar
o cântico alucinado
o cancro poético de tudo
como um vírus
espalha
o pânico ensimesmado
proclamando a mais grave pandemia
epidemia de epifanias
vírus nocivo
as bases do sistema destruídas
por uma simples poesia
uma utopia
o surto
a catarse
o escarro
o vômito fétido
o exorcismo do liberalismo panfletário
aristocrático
protozoários autoritários
a elite dos mamíferos
mamando nas tetas do sistema
e o poeta a ler poemas como Nero
lançando fogo sobre as certezas de uma outra Roma
a romaria dos economistas desesperados
e seu aroma ardendo nas fogueiras

Salvador Passos

O Utopista

Ele acredita que o chão é duro
Que todos os homens estão presos
Que há limites para a poesia
Que não há sorrisos nas crianças
Nem amor nas mulheres
que só de pão vive o homem
que não há um outro no mundo.


 Murilo Mendes




5 de dezembro de 2014

Sistema/1

Os funcionários não funcionam. Os políticos falam mas não dizem. Os votantes votam mas não escolhem. Os meios de informação desinformam. Os centros de ensino ensinam a ignorar. Os juízes condenam as vítimas. Os militares estão em guerra contra os seus compatriotas. Os polícias não combatem os crimes, porque estão ocupados a cometê-los. As bancarrotas são socializadas, os lucros são privatizados. O dinheiro é mais livre que as pessoas. As pessoas estão ao serviço das coisas.

Eduardo galeano, O livro dos abraços

3 de dezembro de 2014

Forte Apache

Noel Rosa brincava que era internacional sem sair de seu
quarto. Elvis Costello disse que o rock´n´roll não morrerá
porque sempre vai ter um garoto trancado em seu quarto
fazendo algo que ninguém nunca viu. Já Laura Ridding
falava da pretensão de “escrever sobre um assunto/
que tocasse todos os assuntos/ Com a pressão compacta do
quarto/ Lotando o mundo entre meus cotovelos”.
De certo modo, acho que estamos fadados a isso mesmo:
recriar em nossos textos o mundo dos nossos quartos.
Esta equalização sutil — pessoal, intransferível — entre
organização e bagunça. François Truffaut, por exemplo.
Ele se considerava pertencente a uma família de cineastas
que praticava uma espécie de “cinema do quarto dos
fundos, que recusa a vida como ela é” — como “nas
brincadeiras de crianças, quando refazíamos o mundo com
nossos brinquedos”. Como diria Ferreira Gullar no Poema
sujo, “o que me ensinavam essas aulas de solidão?”.

Marcelo Montenegro

Literatura Comparada

Quando o MUNDO é um cruzamento
movimentado cujo semáforo pifou.
FUTURO é um cartaz de filme antigo
num cinema que já fechou.
ANGÚSTIA é esse instante
durando meses. AFETO
é uma conversa entre velhos amigos
no bar mais perto ao velório de um deles.
MARCOS REY
foi meu Chuck Berry da literatura.
CARNE MOÍDA é o leite
condensado das misturas.
PAZ é sorrir por dentro. POEMAS
são imagens pingando
das goteiras do tempo.
ENTRAR é o começo
de sair. “SER ORIGINAL
é tentar ser como os outros
e não conseguir”.
ACADEMIA é a repartição pública
do corpo. SIMPLICIDADE
é a superfície do topo.
FRACASSO é o abajur da sorte.
CANTAR é roubar
uns minutos da morte.

Marcelo Montenegro