Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo mercadologicamente genial, ele industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer pessoa se cansar e entregar os pontos. Aí entra o chamado milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra adiante vai ser diferente.
Carlos Drummond de Andrade (adaptado por Antônio Abujamra)
30 de dezembro de 2014
23 de dezembro de 2014
Andorinha
Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…
Manuel Bandeira
— “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…
Manuel Bandeira
10 de dezembro de 2014
chamas
no alto dos mastros do marasmo
o câncer já prenunciado
morre
e o cântico entoado
pelas ruas
é raivoso & revoltado
nada de lirismo
no ar
o cântico alucinado
o cancro poético de tudo
como um vírus
espalha
o pânico ensimesmado
proclamando a mais grave pandemia
epidemia de epifanias
vírus nocivo
as bases do sistema destruídas
por uma simples poesia
uma utopia
o surto
a catarse
o escarro
o vômito fétido
o exorcismo do liberalismo panfletário
aristocrático
protozoários autoritários
a elite dos mamíferos
mamando nas tetas do sistema
e o poeta a ler poemas como Nero
lançando fogo sobre as certezas de uma outra Roma
a romaria dos economistas desesperados
e seu aroma ardendo nas fogueiras
Salvador Passos
o câncer já prenunciado
morre
e o cântico entoado
pelas ruas
é raivoso & revoltado
nada de lirismo
no ar
o cântico alucinado
o cancro poético de tudo
como um vírus
espalha
o pânico ensimesmado
proclamando a mais grave pandemia
epidemia de epifanias
vírus nocivo
as bases do sistema destruídas
por uma simples poesia
uma utopia
o surto
a catarse
o escarro
o vômito fétido
o exorcismo do liberalismo panfletário
aristocrático
protozoários autoritários
a elite dos mamíferos
mamando nas tetas do sistema
e o poeta a ler poemas como Nero
lançando fogo sobre as certezas de uma outra Roma
a romaria dos economistas desesperados
e seu aroma ardendo nas fogueiras
Salvador Passos
O Utopista
Ele acredita que o chão é duro
Que todos os homens estão presos
Que há limites para a poesia
Que não há sorrisos nas crianças
Nem amor nas mulheres
que só de pão vive o homem
que não há um outro no mundo.
Murilo Mendes
Que todos os homens estão presos
Que há limites para a poesia
Que não há sorrisos nas crianças
Nem amor nas mulheres
que só de pão vive o homem
que não há um outro no mundo.
Murilo Mendes
5 de dezembro de 2014
Sistema/1
Os funcionários não funcionam. Os políticos falam mas não dizem. Os votantes votam mas não escolhem. Os meios de informação desinformam. Os centros de ensino ensinam a ignorar. Os juízes condenam as vítimas. Os militares estão em guerra contra os seus compatriotas. Os polícias não combatem os crimes, porque estão ocupados a cometê-los. As bancarrotas são socializadas, os lucros são privatizados. O dinheiro é mais livre que as pessoas. As pessoas estão ao serviço das coisas.
Eduardo galeano, O livro dos abraços
Eduardo galeano, O livro dos abraços
3 de dezembro de 2014
Forte Apache
Noel Rosa brincava que era internacional sem sair de seu
quarto. Elvis Costello disse que o rock´n´roll não morrerá
porque sempre vai ter um garoto trancado em seu quarto
fazendo algo que ninguém nunca viu. Já Laura Ridding
falava da pretensão de “escrever sobre um assunto/
que tocasse todos os assuntos/ Com a pressão compacta do
quarto/ Lotando o mundo entre meus cotovelos”.
De certo modo, acho que estamos fadados a isso mesmo:
recriar em nossos textos o mundo dos nossos quartos.
Esta equalização sutil — pessoal, intransferível — entre
organização e bagunça. François Truffaut, por exemplo.
Ele se considerava pertencente a uma família de cineastas
que praticava uma espécie de “cinema do quarto dos
fundos, que recusa a vida como ela é” — como “nas
brincadeiras de crianças, quando refazíamos o mundo com
nossos brinquedos”. Como diria Ferreira Gullar no Poema
sujo, “o que me ensinavam essas aulas de solidão?”.
Marcelo Montenegro
porque sempre vai ter um garoto trancado em seu quarto
fazendo algo que ninguém nunca viu. Já Laura Ridding
falava da pretensão de “escrever sobre um assunto/
que tocasse todos os assuntos/ Com a pressão compacta do
quarto/ Lotando o mundo entre meus cotovelos”.
De certo modo, acho que estamos fadados a isso mesmo:
recriar em nossos textos o mundo dos nossos quartos.
Esta equalização sutil — pessoal, intransferível — entre
organização e bagunça. François Truffaut, por exemplo.
Ele se considerava pertencente a uma família de cineastas
que praticava uma espécie de “cinema do quarto dos
fundos, que recusa a vida como ela é” — como “nas
brincadeiras de crianças, quando refazíamos o mundo com
nossos brinquedos”. Como diria Ferreira Gullar no Poema
sujo, “o que me ensinavam essas aulas de solidão?”.
Marcelo Montenegro
Literatura Comparada
Quando o MUNDO é um cruzamento
movimentado cujo semáforo pifou.
FUTURO é um cartaz de filme antigo
num cinema que já fechou.
ANGÚSTIA é esse instante
durando meses. AFETO
é uma conversa entre velhos amigos
no bar mais perto ao velório de um deles.
MARCOS REY
foi meu Chuck Berry da literatura.
CARNE MOÍDA é o leite
condensado das misturas.
PAZ é sorrir por dentro. POEMAS
são imagens pingando
das goteiras do tempo.
ENTRAR é o começo
de sair. “SER ORIGINAL
é tentar ser como os outros
e não conseguir”.
ACADEMIA é a repartição pública
do corpo. SIMPLICIDADE
é a superfície do topo.
FRACASSO é o abajur da sorte.
CANTAR é roubar
uns minutos da morte.
Marcelo Montenegro
movimentado cujo semáforo pifou.
FUTURO é um cartaz de filme antigo
num cinema que já fechou.
ANGÚSTIA é esse instante
durando meses. AFETO
é uma conversa entre velhos amigos
no bar mais perto ao velório de um deles.
MARCOS REY
foi meu Chuck Berry da literatura.
CARNE MOÍDA é o leite
condensado das misturas.
PAZ é sorrir por dentro. POEMAS
são imagens pingando
das goteiras do tempo.
ENTRAR é o começo
de sair. “SER ORIGINAL
é tentar ser como os outros
e não conseguir”.
ACADEMIA é a repartição pública
do corpo. SIMPLICIDADE
é a superfície do topo.
FRACASSO é o abajur da sorte.
CANTAR é roubar
uns minutos da morte.
Marcelo Montenegro