A velha mais velha do asilo. Mesmo banco de todas as
tardes. Fundo sombrio da varanda, últimas luzes cinzentas do crepúsculo. Fala
pouco, quase nada. Quando se dirigem a ela, responde cumprimentos, agradece
gentilezas e diz amém (se for necessário). Falar cansa. Resta ficar pensando, o
tempo todo.
Puro engano, a ideia de que o tempo é
livre e democrático. Parece que todos têm direito ao mesmo tempo, que cada um usa
como quiser. Não é bem assim. É muito além das medidas conhecidas. Tempo não é coisa
única que se divide, igualmente, entre as pessoas. O tempo corre em velocidade
íntima e penetra nos espaços vazios de cada vida. Minutos, segundos, horas ou
anos podem ter durações diferentes para cada indivíduo – e demorar o tanto que
a subjetividade exige no momento.
Três anos no asilo. Professora
aposentada. Viúva de oficial do exército – metódico e previsível. Vida
programada. Casamento de 52 anos. Relação amiga, respeitosa e equilibrada com o
militar da artilharia. Muito tempo. Não teve filhos. Nenhuma grande paixão. Prazeres
mínimos – nunca teve oportunidade para transgredir. Não havia grandes traumas
ou tragédias para lamentar, mas também nada espetacular guardado na memória.
Vida neutra, regular, correta, bem traçada (como os cálculos de balística do
coronel). Vida repetitiva (como a
cadência do batalhão no desfile da independência, que o marido comandava com
tanto orgulho). Estudo e trabalho: únicas
razões que preencheram a vida da mulher. Poucas emoções fortes para recordar. As melhores lembranças vinham das aulas de
física, trabalho de décadas, no colégio e na faculdade. Considerava um
privilégio a missão de ensinar... o funcionamento do mundo.
O tempo mora na alma. O tempo moral,
temporal, é tempestade, besta, vendaval. O tempo não é infalível. Errado pensar
que o tempo é exato e não falha. Falha e falta, porque nasce e morre dentro da
gente. Enquanto escorre, tem o tamanho que quiser. É música silenciosa que
embala o curso do universo. Compasso e ritmo definem sua existência. O tempo é
invenção desvairada de cada pessoa, na dança consigo mesma. Não é coisa geral.
Tempo universal (organizado em fatias) é como cena parada de um filme – cinema
que vira fotografia.
Poucos parentes, a maioria já morreu.
Sobrinhos e fiéis agregados apareciam vez ou outra – no aniversário, páscoa,
véspera de natal e coisas assim. Sempre apressados, constrangidos, tentando
demonstrar que tinham algo mais importante para fazer. A única visita que lhe fazia bem era Ester,
ex-aluna que reencontrara, por acaso, no asilo. Duas vezes por mês, Ester
passava lá para ver o avô e dedicava um bom tempo para conversar com a antiga
professora. Ester – a única que não inventava motivos para dizer que estava na
hora de ir embora. Só saia quando a
velha dizia que precisava descansar.
Há séculos, o terrível vício das horas
aflige a humanidade. Desde que foi criada a civilização do relógio (para
facilitar a divisão social dos talentos e reprimir excessos de velocidade de
imaginação) a desconstrução do tempo é considerada insulto científico ou
distúrbio pessoal. Difícil fazer entender aos viciados em calendários e agendas
que é impossível regular os momentos e a cadência da vida. Tão esdrúxulo como tentar
disciplinar o vento. Ou pensar a sucessão das eras como uma sequência contínua
em direção a um futuro fixo (como se só existisse o presente, cuja função seria
apagar o passado).
Lembrou orgulhosa dos exemplos poéticos
que construía para explicar fenômenos misteriosos com as forças da natureza.
A velha professora detestava os livros
que ganhava. Histórias tolas, manuais de
autoajuda, meditação, pensamento positivo ou mensagens religiosas de preparação
para a morte. Preferia ficção
científica, aventuras que desafiavam a inteligência e propunham novos
pensamentos. Gostava mais dos clássicos. A imaginação dos autores da atualidade
ficava cada vez mais tecnológica do que científica. O desastre estava aí: pouca
ciência para muita tecnologia. Ultimamente, mantinha no colo o pequeno volume
que Ester trouxe de presente. Os Crononautas (tradução horrível), que narra
viagens no tempo de um grupo de cientistas, que descobre equações mentais que
permitem deslocamentos no espaço com a força do pensamento.
Não
se deve acreditar que o tempo só caminha para frente. Nada mais falso. O tempo
é etéreo e volátil. Pode andar para frente, para trás, para cima, para baixo e
para qualquer lado. O tempo é invisível. Lugar móvel, abstrato, onde fica
guardado tudo que existe, existiu ou existirá.
Voa, na velocidade total de todas as galáxias, sendo capaz de atingir
qualquer distância cabível no universo. Às vezes, fica entupido num canto sem
saída. Como dentro da garganta daquele velho com cara de monstro.
O avô de Ester não gostava da velha. A neta parecia mais interessada na professora
maluca do que nos problemas de saúde que ele relatava com profundo sentimento
de carência e abandono. Maldizia a tarde que Ester reconheceu a professora,
solitária, no canto da varanda. Foi ele que começou a espalhar que a velha era
um perigo.
– Minha neta contou que ela é um gênio. Sabe
tudo sobre energia nuclear. Foi até convidada para trabalhar na Nasa, mas o
marido não concordou. Cuidado com ela! É um gênio, mas é meio desequilibrada. Tenho
certeza que está aprontando alguma coisa. Olha a cara dela: parece que vive com
raiva da humanidade. Gente assim é capaz
de tudo. Já imaginou se ela resolve fabricar uma bomba? Provocar uma explosão, causar
um curto, um incêndio...
O mundo perde vida com a ideologia do
tempo aprisionado. Inteligências criativas são bloqueadas e se atrofiam. Tempo
expresso em números; tempo vigiado em tabelas e prazos; tempo apertado em
competições de sobrevivência. Na vida corrida, condicionada a datas e
compromissos marcados, sentimentos fraternos e respeito solidário são rebarbas
de excessos. Tempo engarrafado, paralisante, epidemia de angústia, destruição da
harmonia natural e ilusão de um futuro salvador. Droga pesada.
Tempo é liberdade! Abaixo opressores e
compressores do tempo! Tempo livre. Solto e vago! O tempo é leito de luz e usina de memória – confinado,
compromete competências do espírito e altera a hierarquia dos desejos. Cada
espécie é especialista em saber viver – entender o tempo que tem. Vida e morte, no mesmo trampolim. O
mesmo ponto pode ser princípio ou fim. Depende da convenção. O amarelo é
a menor distância entre o verde e o azul. Quantos tons existem entre os dois? Cor
é luz diluída no calor do tempo.
Enquanto existir fusos horários, cronômetros e formas de medir o tempo,
as pessoas não serão livres para perceber as verdadeiras variações das cores e
as pulsações mutantes das estrelas. O tempo limitado no ciclo das horas
aprisiona a humanidade na periferia da terra. Por isso ficamos isolados de outras
civilizações extraterrestres. É preciso libertar o tempo.
Ramayana Vargens