Vamos falar um pouco sobre a “liberdade livre” de
Rimbaud.
Essa expressão está numa carta de Rimbaud, onde ele
diz que se empenha desesperadamente em manter a liberdade livre. É uma
expressão muito forte, a soma do adjetivo com o substantivo marcando a
insistência de Rimbaud na idéia de liberdade. E ele não estava sozinho, é
claro. Gosto de olhar a literatura como um continuum histórico-cultural.
Estamos sempre recontextualizando momentos históricos anteriores. E essa idéia
de liberdade radical permeia toda a história da literatura. Existe um livro
muito interessante sobre o tema, O poeta na república do poder, de um
poeta peruano chamado Mirko Lauer, que
fala exatamente dessa tradição. Ele faz uma genealogia que remonta à Grécia, e
fala principalmente de um poeta romano, Propércio, como quem deu uma expressão
maior na Antigüidade a essa idéia de liberdade. Propércio se opunha às
conquistas do Império Romano de César, afirmando que não tinha nada a ver com
elas. Ele era contra tudo aquilo, achava que aquela guerra infindável não
levava a nada. E colocava como contraponto o amor como símbolo da liberdade.
Algo próximo do que iría-mos ver, 2 mil anos depois, na contracultura.
O amor não é uma forma radical de vínculo? Onde o
livre da liberdade então?
Não, porque quando Propércio elege uma musa, essa musa
não existe na realidade. É uma entidade que ele cria. Se fosse uma mulher
física a quem ele estivesse dirigindo a palavra, você poderia até dizer que ele
está preso a uma relação. Mas não, ele elege uma mulher-símbolo, mítica, para
dizer que todo discurso do poder é vão. E ele poderia simplesmente acusar,
denunciar este discurso, sem
pensar alternativas. Mas contrapõe a este discurso do
poder uma situação radicalmentebexistencial. Ele conta eroticamente grandes
noites de amor com essa mulher mítica, regadas com muito vinho, e diz que quem
deita na cama com uma mulher e com os membros encharcados de vinho jamais vai
fazer guerra. Porque não tem a menor possibilidade de pensar nisso. E o mais
interessante é que houve uma tentativa de cooptação dele por César, porque ele
se tornou um poeta muito popular na época, e César o queria como um poeta
oficial. Há quem diga que Propércio teria sido cooptado no final da vida, pois
ele também escreveu poemas ditos “oficiais”. O que mais interessa, apesar dessa
possível contradição, é que o que ficou dele para a posteridade são as elegias
ao vinho e à mulher, tudo banhado em radical liberdade. Rimbaud também caminha
nesta direção. Em Paris, ele esteve na Comuna. Mas não era exatamente a dele.
Ele queria brigar contra o discurso de poder de um modo geral, e não apenas
alterá-lo. E ele queria romper também com todo o status literário. Essa
idéia está presente quando Rimbaud vai escrever que “eu é um outro”. Para ele,
não faz mais sentido o eu romântico. Ele já estava rompendo com todo o conceito
de sujeito romântico, embora não definisse ainda o que é esse outro. É uma
busca, um momento de ruptura interna, o que essa frase contém.
É uma frase seminal. De certa forma, ela prenuncia
todas as vanguardas do século XX, o desejo radical de mudança.
Sim, de certa forma. Mas, pensando nas vanguardas do
começo do século passado, é complicada esta questão do confronto do poeta com o
poder. É interessante perceber que muitos dos grandes autores daquela época
eram poetas quase “oficiais”, que cantavam ideologias. Isso vem de antes.
Whitman de certa forma canta a democracia americana, toda a construção da
América. E vai até Maiakovski cantando uma revolução que começa a surgir na
União Soviética e que no fim não se resolve direito. Ele próprio entrou em
conflito em relação a isso, no fim da sua vida, nos seus últimos textos. Mas a
maior parte da obra dele é um canto oficial da revolução russa. A questão dos
“ismos” todos da modernidade é muito perigosa. Cada “ismo” cantando um tipo de
ideologia. O futurismo tem obras e autores que cantam o fascismo, o Estado
puro. Alguns expressionistas vão virar nazistas, e aquilo já está presente em
suas obras. É um perigo real. Mirko Lauer, no livro que citei, diz que só um
certo surrealismo, que foi absorvido pelos beats americanos, é que de
certa forma não cantou poder nenhum. Eu acho isso interessante.
Artaud, por exemplo...
Por exemplo. Artaud é um autor que sempre esteve em
conflito com o poder. Foi expulso do surrealismo pelo Breton por se recusar a
entrar no Partido Comunista. Foi precursor do interesse pelas culturas
nativo-americanas, quando viajou para o México para encontrar os taraumaras e
tomar mescalina. Agora, é importante também não demonizar o encontro da poesia
com a política. Não estamos falando aqui de uma poesia escapista, sem relação
com o real. Apesar de pessoalmente eu sempre propugnar por uma poesia em que o
delírio e a imaginação fossem mais fortes do que um realismo simples, frágil,
de puro registro do real. A poesia não é a linguagem do registro das coisas que
os olhos captam na superfície, é outro tipo de linguagem. É uma tentativa de
ver um pouco por trás desta pele. Sem nunca perder de vista o registro do real,
é claro. Quando leio o discurso do Propércio, de se dirigir diretamente ao
César, de tentar uma intervenção na realidade, aquilo me interessa. Ele está
falando da guerra, está falando do ferro ferindo as populações, mas sempre com
um trabalho poético, com metáforas, imagens muito elaboradas. E, em última
análise, o Rimbaud também possuía essa consciência. Ele estava buscando uma
saída, um caminho. A “liberdade livre” também não é uma coisa solta no espaço,
é ancorada numa realidade brutal. Assim como Artaud. Assim como Van Gogh,
quando não vende nenhum quadro em vida. Isso não é de graça, é porque uma
linguagem muito forte e radical tem problemas de várias ordens para conseguir
ser absorvido pelo público. Normalmente, ela precisa de tempo, e muitas vezes
que ocorra uma diluição da sua originalidade. Há sempre uma tentativa de
captura pela linguagem oficial.
E você acredita em possibilidades coletivas de criação
de linguagens independentes?
Não. Mesmo os grupos instituídos, se você olhar bem, o
que se nota é que somente um ou dois nomes se sobressaem, que são poucos os que
realmente encarnam uma expressão mais radical. E esses autores que radicalizam
métodos de pensamento, de expressão, acabam ficando um pouco distantes até
mesmo dos amigos. Acabam se singularizando. São os nomes mais ensolarados, num
certo sentido, apesar de muitas vezes mergulhados em trevas profundas, de serem
figuras muitas vezes trágicas. Essa exploração radical é essencialmente
solitária. A idéia de criação coletiva, ao menos na modernidade, é um esforço
interessante, mas que não acredito que se cumpra inteiramente. Você pega um
grupo de 15 autores, por exemplo, e acaba percebendo que mesmo unidos sob uma
mesma bandeira, continuam sendo 15 solidões em busca de algo que está sempre
fugindo, sempre fugindo. Isso é trágico de um lado e encantador de outro.
Ouvindo você falar do Propércio, do seu poder de
influência, fiquei pensando que a assinatura, que uma certa idéia de
propriedade autoral já deveria existir na Antigüidade, certo? Se não era com
fins financeiros, certamente com intenção de aquisição de poder, de
influência...
É, eles ali já lutavam politicamente por seu espaço, por seu nome, não é? Seja Platão, Aristóteles ou os outros, cada qual lutava para fazer com que o seu discurso predominasse, para com isso ganhar as benesses necessárias. Propércio era um escritor, não obtinha retorno direto da venda de seus textos, mas era um arauto, e isso certamente lhe trazia benefícios. Isso é interessante. Há mesmo uma luta política. Como nós viemos desta cultura, desta tradição, é essa tradição que a gente tem que examinar, mais do que a tradição japonesa, por exemplo, que possuía exemplos interessantíssimos de trabalhos coletivos, de quebra do autor, como os “haicais de hospedagem”, por exemplo, que eram poemas anônimos elaborados pelos poetas visitantes das hospedarias: eles os deixavam nas paredes para serem respondidos pelos próximos visitantes, e assim sucessivamente. Eu adoro a tradição japonesa, mas nós viemos da tradição greco-latina, e então essa cultura é que é a nossa cultura, e de lá para cá o que eu vejo o tempo todo são recontextualizações de coisas que foram criadas ali, que surgiram ali naquele lugar, naquele tempo. Se a gente não entender bem o que era aquilo lá, a gente está entendendo pouco do que nós somos hoje.
Já existia lá essa tentativa de cooptação pelo
poder...
Sempre. Uma das formas mais radicais disso hoje é a
absorção de uma estética à revelia de sua ética. Houve, por exemplo, uma
penetração muito grande do discurso poético na publicidade. Então, foram
criadas peças belíssimas, sinestésicas, fantásticas, e qual é a ética que
existe por trás delas? Nenhuma. Há a beleza em si, mas para quê, apontando para
onde? Então, voltamos para a idéia do velho humanismo, não podemos desvincular
a ética do homem, pois ela é essencial para se definir o homem. E mais ainda
para a poesia. Ela precisa se preocupar com o que é o homem nesse planeta,
vivendo nesse momento histórico. É necessária esta consciência. A “liberdade
livre” de Rimbaud pressupõe uma ética. Ela é, essencialmente, ética. E essa
relação do poeta com o poder é duríssima, dolorosa ao longo da história. É uma
guerra, um conflito que vem se dando desde sempre. A arma do poeta é também sua
maior fragilidade. Porque enquanto o teórico político, vamos dizer assim,
trabalha com uma linguagem em linha direta com o pensamento, com as estruturas
conceituais, o poeta trabalha com uma linguagem outra. E qual é essa linguagem?
Fico me lembrando quando Barthes coloca a idéia de que a linguagem tende para o
lugar comum. O lugar comum, o estereótipo tende sempre a se agarrar à linguagem,
é uma espécie de mata-borrão da linguagem. O teórico às vezes não tem muita
preocupação com isso. Ele continua escrevendo, e de repente está preso naquele
tipo de linguagem, que é a linguagem do poder. Em outras palavras, muito
próximo do que oficialmente as palavras significam. E aí obviamente, mesmo sem
ele querer ou se opondo a isso, ele está imerso no poder. O poeta, quando usa
conscientemente as palavras que têm aquele significado, tenta torcê-las, torcer
o significado delas. E nesse momento ele está praticando liberdade. E isso nada
tem a ver com ausência de ética. É outro discurso, mas a ética continua. É
possível ser poeta e ter uma ética marxista, cristã ou mesmo fascista. Embora
prefira pessoalmente a possibilidade de uma ética menos compromissada com
discursos do poder. Assim, a poesia trabalha em cima de desvios de linguagem.
Ela realiza um exercício de liberdade independente dessa ética. Alguns com
mais, outros com menos radicalismo. E esse desvio vai para onde? Não sei. É um
desvio histórico. Platão já não gostou desse desvio lá atrás. Achou esquisito. Falou
que é melhor nem ter esses caras por perto. E essa luta veio vindo. Você pode
rastrear isso ao longo dos séculos. E o engraçado é que os poetas mais
radicais, que vivem intensamente seu momento, muitas vezes passam a vida
tomando porrada, e só são recuperados dois, três séculos depois. Villon é um
exemplo disso.
E você acha que esta linguagem desviante permanece com o tempo? Que François Villon, por exemplo, continua possuindo uma força de estranheza, ou virou um clássico?
A estranheza certamente permanece. A linguagem pode
parecer envelhecida, ou absorvida por um discurso oficial, mas quando olhamos
com calma vemos que não é bem assim. Vamos pegar o caso do Machado de Assis,
para ficar com um escritor que tem uma linguagem em princípio sem tantas
quebras. Eu gosto de ler ele abrindo uma página ao acaso. Já conheço a
história, então leio uma página, duas, e pronto. E de repente você percebe que
o grande personagem daquelas páginas não é Brás Cubas ou então Capitu, mas a
linguagem. É a linguagem colocada de uma forma estranha para mim, para todos,
apesar de aparentemente estar dentro de uma lógica linear, quase de revista. E
não é. O que é aquilo que encanta e encanta e encanta? É uma maneira de
trabalhar a linguagem. E o escritor, e mais radicalmente ainda o poeta, é
aquele cara que tem essa consciência do que é a linguagem. Ele sabe que aquela
linguagem, se for colocada de uma determinada forma, presta serviço ao poder.
Mas se você torcê-la, você começa a criar estranhezas, a libertá-la. Acredito
que esta é a primeira consciência do escritor. Traduzi recentemente o “Bateau
ivre”, do Rimbaud. Estava numa livraria e abri o poema ao acaso, e comecei a
relê-lo. E o que me motivou a traduzi-lo não foram apenas as imagens
delirantes, que são belas e novas. Eu vi também uma forma de trabalhar a língua
muito interessante, muito precisa, usando cada palavra no lugar certo, com
quebras muito interessantes. Quando o texto começava a ficar mais próximo de uma
poesia oficial da época, ele colocava uma palavra que rompia com tudo isso, um
“cataractant”. Não sei por que aquela palavra entrou ali, mas sem ela o poema
se enfraqueceria muito. O “Bateau ivre” só está de pé por causa disso. Porque
há transporte, há sonho, e há também essa consciência de linguagem. Rimbaud, ao
contrário da imagem corrente dele como um aventureiro louco, era um erudito.
Ele leu, estudou tudo. Ele escrevia correntemente latim com 14 anos. E leu
todos os poetas latinos no original. É importante algumas vezes desmistificar
um pouco, para ver com mais clareza. Ele não foi um ser encantado que subiu aos
céus. Ele foi um ser humano com todas as crises, com todo o trabalho que é
necessário para se transformar em um grande escritor. E esse trabalho é essencialmente
solitário.
Para finalizar, gostaria de lembrar um verso seu:
“Nada existe, celebremos aventura”. Isso é liberdade livre?
De certa forma sim. É curioso, porque algumas pessoas
lêem esse poema de uma forma negativa. Ele incomoda por um aparente niilismo. E
eu vejo como o contrário. Esse poema é exatamente a compra de uma certa
liberdade, a percepção de que de fato tudo é transitório e fluído. Nesse
sentido, tudo existe e nada existe. É a mesma coisa. Só que não coloquei o “tudo
existe”. Poderia ter feito, mas o poema perderia irremediavelmente em força. As
pessoas temem esta transitoriedade, e ficam então construindo estátuas. A
estátua é uma coisa sólida, enquanto o discurso poético é fluido. Ao mesmo
tempo que é pedra, também é ar. Então, estou criando neste verso uma
consciência desta transitoriedade, e a liberdade que ela traz. E também o
direito de celebrá-la. Sempre tive esta preocupação com a minha poesia. Não
vejo a liberdade de uma maneira mítica. Ela é um exercício, uma busca. É uma
discussão permanente, são as escolhas de cada momento. E qualquer um pode viver
a qualquer instante a liberdade. É claro que isso pressupõe o direito de errar.
Nós tropeçamos o tempo todo, erramos aqui, acertamos acolá, mas vamos tentando
encontrar um caminho mais ensolarado. E passar essa tentativa de percepção para
os outros, usando uma linguagem, no caso, poética. Podia estar usando outras
linguagens, mas a poesia está mais próxima da liberdade. Sempre.
Afonso Henriques Neto (Revista Azougue 2006-2008)
Afonso Henriques Neto (Revista Azougue 2006-2008)