A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

29 de janeiro de 2014

Inserção em circuitos ideológicos






Gravar nas garrafas de refrigerantes (embalagens de retorno) informações e opiniões críticas, e devolvê-las à circulação. Utiliza-se o processo de decalque (silk-screen) com tinta branca vitrificada, que não aparece quando a garrafa está vazia e sim quando cheia, pois então fica visível a inscrição contra o fundo escuro do liquido Coca-Cola.
Declarações Cildo Meireles:

Eu me lembro que em 1968-69-70, porque se sabia que estávamos começando a tangenciar o que interessava, já não trabalhávamos com metáforas (representações) de situações. Estava-se trabalhando com a situação mesmo, real. Por outro lado, o tipo de trabalho que se estava fazendo, tendia a se volatilizar e esta já era outra característica. Era um trabalho que, na verdade, não tinha mais aquele culto do objeto, puramente; as coisas existiam em função do que poderiam provocar no corpo social. Era exatamente o que se tinha na cabeça: trabalhar com a idéia de público. Naquele período, jogava-se tudo no trabalho e este visava atingir um número grande e indefinido de pessoas: essa coisa chamada público. Hoje em dia, corre-se inclusive o risco de fazer um trabalho sabendo exata­mente quem é que vai se interessar por ele. A noção de público, que é uma noção ampla e generosa, foi substituída (por deformação) pela noção de consumidor, que é aquela pequena fatia de público que teria o poder aquisitivo.

 Na verdade, as "Inserções em circuitos ideológicos" nasceram da necessidade de se criar um sistema de circulação, de troca de informações, que não dependesse de nenhum tipo de controle centralizado. Uma língua. Um sis­tema que, na essência, se opusesse ao da imprensa, do rádio, da televisão, exemplos típicos de media que atingem de fato um público imenso, mas em cujo sistema de circulação está sempre presente um determinado controle e um determinado afunilamento da inserção. Quer dizer, neles a 'inserção' é exercida por uma elite que tem acesso aos níveis em que o sistema se desenvolve: sofisticação tecnológica envolvendo alta soma de dinheiro e/ou poder. 



As "Inserções em circuitos ideológicos" nasceram com dois projetos: o projeto "Coca-Cola" e o projeto "Cédula". O trabalho começou com um texto que fiz em abril de 1970 e parte exatamente disso: 1) existem na sociedade deter­minados mecanismos de circulação (circuitos): 2) esses circuitos veiculam evidentemente a ideologia do produtor, mas ao mesmo tempo são passíveis de receber inserções na sua circulação: 3) e isso ocorre sempre que as pessoas as deflagrem. 


 As "Inserções em circuitos ideológicos" surgiram também da constatação de duas práticas mais ou menos usuais. As correntes de santos (aquelas cartas que você recebe, copia e envia para as pessoas) e as garrafas de náufragos jogadas ao mar. Essas práticas trazem implícita a noção do meio circulante, noção que se cristaliza mais nitidamente no caso do papel-moeda e, metaforicamente, nas embalagens de retorno (as garrafas de bebidas, por exemplo). 

 Do meu ponto de vista, o importante no projeto foi a introdução do conceito de 'circuito', isolando-o e fixando-o. E esse conceito que determina a carga dialética do trabalho, uma vez que parasita ria todo e qualquer esforço contido na essência mesma do processo (media). Quer dizer, a embalagem veicula sempre uma ideologia. Então, a idéia inicial era a constatação de 'circuito' (natural), que existe e sobre o qual é possível fazer um trabalho real. Na verdade, o caráter da 'inserção' nesse circuito seria sempre o de contra-informação. 

 Capitalizaria a sofisticação do meio em proveito de uma ampliação da igualdade de acesso à comunicação de massa, vale dizer, em proveito de uma neutralização da propaganda ideológica original (da indústria ou do Estado), que é sempre anestesiante. É uma oposição entre consciência (inserção) e anestesia (circuito), considerando-se consciência como função de arte e anestesia como função de indústria. Porque todo circuito industrial normal­mente é amplo, mas é alienante (ado).
 Por pressuposto, a arte teria uma função social e teria mais meios de ser densamente consciente. Maior densidade de consciência em relação à sociedade da qual emerge. E o papel da indústria é exatamente o contrário disso. Tal qual existe hoje, a força da indústria se baseia no maior coeficiente possível de alienação. Então as anotações sobre o projeto "Inserções em circuitos ideológicos" opunham justamente a arte à indústria. 

(...) 

 Porque tem uma transação em artes plásticas que se baseia ou na mística da obra em si (embalagem: tela, etc.) ou na mística do autor (Salvador Dali ou Andy Warhol, por oposição, são exemplos vivos e atuais): ou parte para a mística do mercado (o jogo da propriedade: valor de troca). A rigor, nenhum desses aspectos deveria ser prioritário. No momento em que há distinções nessa ou naquela direção, surge a distinção de quem pode fazer arte e quem não pode fazer. Tal como eu tinha pensado, as "Inserções" só existiriam na medida em que não fossem mais a obra de uma pessoa. Quer dizer, o trabalho só existe na medida em que outras pessoas o pratiquem. Uma outra coisa que se coloca, então, é a idéia da necessidade do anonimato. A questão do anonimato envolve por extensão a questão da propriedade. Não se trabalharia mais com o objeto, pois o objeto seria uma prática, uma coisa sobre a qual você não poderia ter nenhum tipo de controle ou propriedade. E tentaria colocar outras coisas: primeiro, atingiria mais gente, na medida em que você não precisaria ir até a informação, pois a informação iria até você; e, em decorrência, haveria condições de 'explodir' a noção de espaço sagrado. 

(...) 

Enquanto o museu, a galeria, a tela, forem um espaço sagrado da representação, tornam-se um triângulo das Bermudas: qualquer coisa, qualquer idéia que você colo­car lá vai ser automaticamente neutralizada. Acho que a gente tentou prioritariamente o compromisso com o público. Não com o comprador (mercado) de arte. Mas com a platéia mesmo. Esse rosto indeterminado, o elemento mais importante dessa estrutura. De trabalhar com essa maravilhosa possibilidade que as artes plásticas oferecem, de criar para cada nova idéia uma nova linguagem para expressá-la. Trabalhar sempre com essa possibilidade de transgressão ao nível do real. Quer dizer, fazer trabalhos que não existam simplesmente no espaço consentido, consagrado, sagrado. Que não aconteçam simplesmente ao nível de uma tela, de uma superfície, de uma representação. Não mais trabalhar com a metáfora da pólvora - trabalhar com a pólvora mesmo.  

*Extraído do depoimento de CM registrado na pesquisa Ondas do corpo, de Antônio Manuel Copy-desk e montagem do texto: Eudoro Augusto Macieira. Publicado no Livro "Cildo Meireles"  da FUNARTE. Rio de Janeiro, 1981.

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