Com samba, Cordão da Mentira problematiza os resquícios da ditadura
Partindo da estética para a política, ato questionou a repressão e violência policial no regime militar e na democracia atual.
Em ritmo de “samba-luta” e clima
de festa e contestação, o Cordão da Mentira levou às ruas, nesse 1º de
abril, o tema da Ditadura Civil-Militar e seus resquícios, oriundos de
uma transição incompleta. O grupo se concentrou diante da antiga sede do
DOPS (Departamento de Ordem Política e Social, órgão símbolo de
repressão do regime militar), no Largo General Osório, e foi caminhando
até a sede da Tradição Família e Propriedade em Higienópolis.
O
ato-cortejo reuniu cerca de 1500 pessoas, a maioria jovens, e foi
marcado pela originalidade. Na “comissão de frente” do protesto, um
grupo de pessoas imitava a tropa de choque da polícia, mas em seus
escudos estavam escritos nomes de movimentos e palavras de ordem
presentes no cenário nacional: “Contra o genocídio do povo negro”,
“guarani kaiowá”, “Mães de Maio”, “Não vai ter Copa”, “3,20 é roubo”,
“Todo preso é um preso político”, “Moinho Vivo”. A bateria entoava
sambas que faziam referência à ditadura e à repressão vivida hoje,
pessoas mascaradas representavam o terror do estado de exceção,
projeções de imagens históricas foram feitas em prédios próximos a
locais históricos da ditadura. Composto por coletivos políticos, grupos
de teatro e sambistas de diversos grupos e escolas de São Paulo, o
Cordão da Mentira “é diferente porque parte da estética para a
política”, segundo Thiago Mendonça, um dos organizadores do evento.
Pessoas mascaradas representavam o terror do estado de exceção
Pessoas mascaradas representavam o terror do estado de exceção
“É 2014, mas poderia ser 1964”
Durante
o trajeto, diversas falas e intervenções artísticas fizeram referência,
principalmente, à violência repressora do Estado que continua até hoje.
“Os desaparecidos durante a ditadura o foram pelos mesmos motivos e
através dos mesmos mecanismos pelos quais desapareceu Amarildo, pelos
quais a Cláudia foi arrastada pelas ruas do Rio de Janeiro pela PM. É
fundamental que nesse momento marquemos posições com relação à
desmilitarização das polícias”, disse Alípio Freire, jornalista,
ex-preso político e diretor do documentário “1964 – Um Golpe Contra o
Brasil”.
"É fundamental que nesse momento marquemos posições com relação à desmilitarização das polícias”
O
movimento Mães de Maio, criado pelas mães das pessoas assassinadas nas
chacinas ocorridas em São Paulo em maio de 2006, também estava presente.
Débora Maria da Silva falou emocionada sobre a necessidade de acabar
com a violência policial tão presente na periferia. “Se a ditadura
acabou, não avisaram a polícia”, disse. E completou: “Eu sou uma irmã de
um Amarildo”.
“Eu sou uma irmã de um Amarildo”
Ruivo
Lopes, do Cordão da Mentira, discursou por último e também fez um elo
entre o que aconteceu no passado da ditadura civil-militar brasileira e o
que ocorre hoje, em pleno regime democrático. “Numa recente tentativa
de fuga, dois adolescentes foram encontrados mortos no Rio Tietê. Foi em
2014, não foi em 1964. Cláudia Silva Ferreira foi baleada por policiais
militares no Morro do Congonha, onde morava. Mal socorrida na viatura,
seu corpo foi arrastado e esfolado por 350 metros. Os policiais
militares envolvidos na morte de Cláudia têm histórico de execuções
sumárias e violência policial. Foi em 2014, mas poderia ter sido em
1964”, disse Lopes.
Há um elo entre o que aconteceu no passado da ditadura civil-militar brasileira e as chacinas realizadas por policiais hoje
Chamou
atenção o grande número de viaturas da polícia que acompanhava o ato.
Houve dois momentos de tensão. Ao passar pelo Largo do Paissandú, os
manifestaram avistaram duas viaturas da polícia militar e os policiais,
portando armas e encarando os manifestantes, se retiraram quando as
pessoas começaram a gritar "não acabou, tem que acabar, eu quero o fim
da polícia militar". Após passar pela Praça da República, a polícia
voltou a acompanhar o ato, dessa vez com vários policiais a pé, que
formaram um cordão cercando os manifestantes. Estes responderam fazendo o
seu próprio cordão e impedindo a polícia de se aproximar.
“Eu espero que o povo brasileiro perca o medo”
Entre
os manifestantes que participavam pela primeira vez do Cordão da
Mentira estava Ana Camila Onofre, cearense de 29 anos que trabalha no
Memorial da Resistência, no prédio onde era a antiga sede do DOPS. Em
São Paulo há um ano, vinda de Fortaleza, disse que estranhou a atuação
da polícia: “Na primeira manifestação que eu fui, na semana passada,
achei curioso como a polícia cerca as pessoas, como a repressão aqui é
muito mais visível”, disse. “Embora eu não faça parte de nenhum
movimento, sou brasileira e também me sinto ultrajada por essas coisas”,
completou.
"a repressão aqui é muito mais visível"
Entre
o grande número de jovens presentes no ato, viam-se também pessoas mais
velhas e rostos conhecidos. Adriano Diogo, deputado estadual pelo PT e
presidente da Comissão Estadual da Verdade "Rubens de Paiva", participou
do Cordão da Mentira e ressaltou a importância do público jovem. “Eu
acho importantíssimo que a juventude associe a questão da ditadura, da
repressão do passado, com as dificuldades da sociedade no presente”,
disse. Com a efeméride dos 50 anos do Golpe Civil-Militar e a conclusão
dos trabalhos das Comissões de Verdade, revelou também que espera “que o
povo brasileiro perca o medo de falar da ditadura, da cobrança da
revisão da Lei de Anistia, de enfrentar os problemas do presente”.
A
professora aposentada de filosofia, Isabel Luiza Piragibe, de 65 anos,
acompanhava o ato e teceu críticas ao Brasil que se desenhou após 1964.
“O propósito principal dessa manifestação é dizer o quanto foi uma
mentira esses 50 anos. Ainda estamos num país com miséria, que não fez
reforma agrária, não tem saúde e educação de qualidade. São as heranças
malditas da interrupção ocorrida em 1964, quando se lutava por terra,
por educação plena... Primeiro de abril até hoje é uma mentira”,
afirmou.
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