http://passapalavra.info/2014/06/96524
O momento errado para dizer certas coisas
Passaremos todo este mês e talvez o próximo arrecadando recursos para libertar os presos políticos dos governos do PT e da FIFA e em campanha exclusiva contra a criminalização. Por Daniel Caribé
Meus companheiros dizem que faço análises certeiras, porém em momentos errados. E se eles têm razão na segunda parte da afirmação, já na primeira eu tenho as minhas dúvidas. Dessa vez serei xingado não só por eles, mas também pelos Black Blocs e pelos governistas, mostrando todo o meu talento para o inoportuno. Vou errar no momento e no foco, mas faço assim porque me deprime ver tanta energia militante desperdiçada em espetáculos inúteis. E não me refiro à Copa.
Como o Coletivo Tarifa Zero Salvador, movimento que tenho por referência na cidade, decidiu não participar de atos que não fossem construídos por movimentos sociais, fui para o “evento” no Campo Grande de observador e já prevendo a carnificina. Através do Facebook, partidos de esquerda e anarquistas passaram a semana convocando um ato para poucas horas antes do primeiro jogo da Copa que aconteceu em Salvador.
Chegando lá vi que, além do PSTU e do PSOL — e eu já sabia que não entrariam na fria de encarar o Exército e a Polícia Militar — havia uma centena de pessoas vestidas de preto. Após uma rápida assembleia, elas decidiram ir para a Fan Fest da FIFA, na Barra, sentido oposto ao estádio da Fonte Nova, onde o jogo já havia começado. Para quem ainda não sabe, a Fan Fest é a festa imposta pelo governo da FIFA aos governos locais, para animar as cidades que eles mesmos deixaram desertas. Sem a possibilidade de acertar o alvo maior, os manifestantes apostaram na fragilidade de um segundo.
Uma tropa de cem pessoas, andando contra o território proibido, sem nenhuma faixa expondo os motivos do ato, seguiu em direção ao seu próprio extermínio. Ora, pelo que eu saiba, Black Bloc é tática e não movimento. A grande mídia e os governistas passaram um ano tentando confundir as pessoas a respeito disso e nós, do outro lado, fomos fuzilados (ainda não passa de uma figura de linguagem, mas até quando?) por continuarmos sustentando outra tese. Os Black Blocs são importantes para garantir a segurança dos manifestantes, para barrar momentaneamente a polícia quando ela tenta implementar o terror contra os atos puxados pelas organizações da esquerda e por isso acabam ajudando àqueles que não estão preparados para o confronto. É a contraposição direta ao terrorismo de Estado e uma das expressões da rede de movimentos, organizações e táticas que se forma para construir mobilizações por fora do modelo tradicional e hierarquizado dos partidos de esquerda.
Mas se não há movimento social, por dedução lógica não pode haver também Black Bloc, e por isso fui embora. Sem essa rede que justifica a existência dos “Blocs”, eles não têm função a cumprir, a não ser que queiram ser eles mesmos o movimento que deveriam defender. Deixei para trás companheiros, Advogadas e Advogados Populares, com a tarefa que eles se deram de combater a criminalização de militantes tão em moda em tempos de governos de esquerda. Admirável e inglória tarefa. Ainda mais que nem um centavo dos milhões ganhos anualmente pelas centrais sindicais é direcionado para ajudá-los quando o “bicho pega”. A esquerda voltou a ser artesanal, com todas as dores e delícias que isso traz.
Claro que não ouvi de ninguém ali no Campo Grande uma auto-declaração de Black Bloc. É bem provável que tenham a clareza que de fato não são. E é importante que todos não os vejam dessa forma. Mas se eles não eram Black Blocs, não me pareciam movimento social e evidentemente não eram partidos e sindicatos. O que era aquilo? Talvez seja minha ignorância que me leve a fazer este texto inoportuno, mas me deixaria feliz se alguém viesse aqui me mostrar que de fato sou. E por quê?
Apesar da evidente falta de organização prévia, havia a denúncia à Copa do Mundo que acabou de começar, e isso fazia deles pelo menos militantes de uma causa que entendo ser necessária, e portanto pertencentes a um campo o qual eu também construo. A forma como foram reprimidos também acaba por evidenciar o processo de criminalização dos movimentos sociais em especial, mas também de qualquer um que tente se posicionar contra os atuais governos, entre eles o temporário da FIFA. Mas isso não tira de mim o questionamento: qual é a efetividade do que se propuseram fazer?
Quinze minutos depois de ter ido embora recebo as primeiras mensagens vindas dos Advogados e Advogadas Populares: bombas de gás, balas de borracha e prisões ao final do Corredor da Vitória. Vinte e seis presos ao total (dezessete maiores de idade e nove menores). Os maiores de idade estão sendo enquadrados na Lei de Segurança Nacional e ficarão detidos até o final da Copa, no mínimo. E devem responder criminalmente por isso. Os menores de idade provavelmente serão liberados. Em um país que não rompeu com a Ditadura Militar no período que ficou conhecido como Transição Democrática, não se poderia esperar outra coisa. Vamos ter que pedir anistia também?
Agora passaremos todo este mês e talvez o próximo arrecadando recursos para libertar os presos políticos dos governos do PT e da FIFA e em campanha exclusiva contra a criminalização.
É fato que em Salvador não se desenhava nenhum tipo de mobilização significativa, e a prova é que hoje não havia sequer um coxinha no ato e até o que restou da esquerda pouco se fez presente. Por outro lado, o PT e seus satélites ainda exercem uma grande hegemonia dentro dos aparelhos e movimentos historicamente construídos pela esquerda aqui em Salvador, paralisando parte significativa da energia militante da cidade. A Copa ganhou a cidade de goleada. Os que há um ano se somaram à esquerda para preencher as ruas passavam direto sem olhar de lado, e chegariam finalmente à Fonte Nova, sem a nossa companhia dessa vez e sem deixar saudades uns para os outros.
Mas este mês poderia ser, ainda assim, um momento para evidenciar os processos de venda da cidade, como o Edital de Transportes e outras tantas demandas latentes. E por solidariedade de classe teremos que direcionar as energias que nos restam para libertar estes companheiros presos em um ato que não teve nenhuma repercussão e que não somou em nada. Não me resta aqui fazer outra coisa a não ser convidar a todos para se somar a essa campanha. Mas também não dá mais para fingir que não concordo com determinadas táticas.
Sim, precisamos denunciar os empresários e suas artimanhas de ampliação da exploração dos trabalhadores. Precisamos denunciar os governos e seus aparatos repressivos, inclusive os geridos pela esquerda. Mas precisamos, antes disso tudo, criar uma consciência de classe que nos coloque no mundo para além dos nossos desejos individuais e dos resquícios de cristianismo que nos empurram para os movimentos somente para curar nossas frustrações pessoais ou para nos livrar da culpa.
***
O Passa Palavra publicou no final de Fevereiro o artigo «Autodefesa em manifestações, para quê?» http://passapalavra.info/2014/02/92329 e agora este artigo de Marcelo Lopes de Souza. Parecem-me ambos muito importantes, para mais tendo em conta o artigo «Teoria do caos» http://passapalavra.info/2014/03/92961 porque encetam uma reflexão sobre estratégia e táctica em manifestações, abandonando o plano das banalidades ou dos apelos emocionais. Todavia, com facilidade se esquecem duas coisas.
1) Frequentemente, o uso de acções consideradas violentas serve apenas para ocultar ou a incapacidade de mobilização de massa ou a vontade de manter a massa na passividade. E isto não ocorre apenas com grupos minúsculos. Assim, por exemplo, um certo movimento social pode contar com centenas de milhares de aderentes mas preferir usar duas ou três dezenas de militantes profissionais para bloquear uma auto-estrada com pneus a arder. Não consegue assim conquistar simpatias para a causa e corre até o risco de provocar a hostilidade de outros trabalhadores, especialmente camioneiros. É que o objectivo desse tipo de acções não consiste em organizar mas somente conquistar espaço nos noticiários, ou seja, trata-se de uma autopromoção.
2) Em muitos casos — receio mesmo que na maioria dos casos — é inútil explicar aos fanáticos das acções violentas em qualquer circunstância e a todo o preço que elas podem ser prejudiciais e não benéficas, que podem ser antipedagógicas, dificultarem a organização de massas e afastarem muitos trabalhadores. É inútil explicar porque é precisamente isso que eles querem. Em vez de pretenderem mobilizar as pessoas comuns, pretendem o contrário: destacar-se delas, cavar um fosso intransponível entre uma pequeníssima minoria activa e a esmagadora maioria dos trabalhadores relegados para a passividade. A fronteira é estreita e pouco definida entre o vanguardismo e o elitismo, e nestes casos trata-se de puro elitismo, com todas as consequências que daí advêm.
Chegando lá vi que, além do PSTU e do PSOL — e eu já sabia que não entrariam na fria de encarar o Exército e a Polícia Militar — havia uma centena de pessoas vestidas de preto. Após uma rápida assembleia, elas decidiram ir para a Fan Fest da FIFA, na Barra, sentido oposto ao estádio da Fonte Nova, onde o jogo já havia começado. Para quem ainda não sabe, a Fan Fest é a festa imposta pelo governo da FIFA aos governos locais, para animar as cidades que eles mesmos deixaram desertas. Sem a possibilidade de acertar o alvo maior, os manifestantes apostaram na fragilidade de um segundo.
Uma tropa de cem pessoas, andando contra o território proibido, sem nenhuma faixa expondo os motivos do ato, seguiu em direção ao seu próprio extermínio. Ora, pelo que eu saiba, Black Bloc é tática e não movimento. A grande mídia e os governistas passaram um ano tentando confundir as pessoas a respeito disso e nós, do outro lado, fomos fuzilados (ainda não passa de uma figura de linguagem, mas até quando?) por continuarmos sustentando outra tese. Os Black Blocs são importantes para garantir a segurança dos manifestantes, para barrar momentaneamente a polícia quando ela tenta implementar o terror contra os atos puxados pelas organizações da esquerda e por isso acabam ajudando àqueles que não estão preparados para o confronto. É a contraposição direta ao terrorismo de Estado e uma das expressões da rede de movimentos, organizações e táticas que se forma para construir mobilizações por fora do modelo tradicional e hierarquizado dos partidos de esquerda.
Mas se não há movimento social, por dedução lógica não pode haver também Black Bloc, e por isso fui embora. Sem essa rede que justifica a existência dos “Blocs”, eles não têm função a cumprir, a não ser que queiram ser eles mesmos o movimento que deveriam defender. Deixei para trás companheiros, Advogadas e Advogados Populares, com a tarefa que eles se deram de combater a criminalização de militantes tão em moda em tempos de governos de esquerda. Admirável e inglória tarefa. Ainda mais que nem um centavo dos milhões ganhos anualmente pelas centrais sindicais é direcionado para ajudá-los quando o “bicho pega”. A esquerda voltou a ser artesanal, com todas as dores e delícias que isso traz.
Apesar da evidente falta de organização prévia, havia a denúncia à Copa do Mundo que acabou de começar, e isso fazia deles pelo menos militantes de uma causa que entendo ser necessária, e portanto pertencentes a um campo o qual eu também construo. A forma como foram reprimidos também acaba por evidenciar o processo de criminalização dos movimentos sociais em especial, mas também de qualquer um que tente se posicionar contra os atuais governos, entre eles o temporário da FIFA. Mas isso não tira de mim o questionamento: qual é a efetividade do que se propuseram fazer?
Quinze minutos depois de ter ido embora recebo as primeiras mensagens vindas dos Advogados e Advogadas Populares: bombas de gás, balas de borracha e prisões ao final do Corredor da Vitória. Vinte e seis presos ao total (dezessete maiores de idade e nove menores). Os maiores de idade estão sendo enquadrados na Lei de Segurança Nacional e ficarão detidos até o final da Copa, no mínimo. E devem responder criminalmente por isso. Os menores de idade provavelmente serão liberados. Em um país que não rompeu com a Ditadura Militar no período que ficou conhecido como Transição Democrática, não se poderia esperar outra coisa. Vamos ter que pedir anistia também?
Agora passaremos todo este mês e talvez o próximo arrecadando recursos para libertar os presos políticos dos governos do PT e da FIFA e em campanha exclusiva contra a criminalização.
É fato que em Salvador não se desenhava nenhum tipo de mobilização significativa, e a prova é que hoje não havia sequer um coxinha no ato e até o que restou da esquerda pouco se fez presente. Por outro lado, o PT e seus satélites ainda exercem uma grande hegemonia dentro dos aparelhos e movimentos historicamente construídos pela esquerda aqui em Salvador, paralisando parte significativa da energia militante da cidade. A Copa ganhou a cidade de goleada. Os que há um ano se somaram à esquerda para preencher as ruas passavam direto sem olhar de lado, e chegariam finalmente à Fonte Nova, sem a nossa companhia dessa vez e sem deixar saudades uns para os outros.
Sim, precisamos denunciar os empresários e suas artimanhas de ampliação da exploração dos trabalhadores. Precisamos denunciar os governos e seus aparatos repressivos, inclusive os geridos pela esquerda. Mas precisamos, antes disso tudo, criar uma consciência de classe que nos coloque no mundo para além dos nossos desejos individuais e dos resquícios de cristianismo que nos empurram para os movimentos somente para curar nossas frustrações pessoais ou para nos livrar da culpa.
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Recomendo muito a leitura da série de artigos de Marcelo Lopes de Souza, “Diferentes faces da “propaganda pela ação”: Notas sobre o protesto social e seus efeitos nas cidades brasileiras” e, dentro dela, o primeiro comentário postado por João Bernardo, por indicar mais dois textos e por deixar a seguinte reflexão:
O Passa Palavra publicou no final de Fevereiro o artigo «Autodefesa em manifestações, para quê?» http://passapalavra.info/2014/02/92329 e agora este artigo de Marcelo Lopes de Souza. Parecem-me ambos muito importantes, para mais tendo em conta o artigo «Teoria do caos» http://passapalavra.info/2014/03/92961 porque encetam uma reflexão sobre estratégia e táctica em manifestações, abandonando o plano das banalidades ou dos apelos emocionais. Todavia, com facilidade se esquecem duas coisas.
1) Frequentemente, o uso de acções consideradas violentas serve apenas para ocultar ou a incapacidade de mobilização de massa ou a vontade de manter a massa na passividade. E isto não ocorre apenas com grupos minúsculos. Assim, por exemplo, um certo movimento social pode contar com centenas de milhares de aderentes mas preferir usar duas ou três dezenas de militantes profissionais para bloquear uma auto-estrada com pneus a arder. Não consegue assim conquistar simpatias para a causa e corre até o risco de provocar a hostilidade de outros trabalhadores, especialmente camioneiros. É que o objectivo desse tipo de acções não consiste em organizar mas somente conquistar espaço nos noticiários, ou seja, trata-se de uma autopromoção.
2) Em muitos casos — receio mesmo que na maioria dos casos — é inútil explicar aos fanáticos das acções violentas em qualquer circunstância e a todo o preço que elas podem ser prejudiciais e não benéficas, que podem ser antipedagógicas, dificultarem a organização de massas e afastarem muitos trabalhadores. É inútil explicar porque é precisamente isso que eles querem. Em vez de pretenderem mobilizar as pessoas comuns, pretendem o contrário: destacar-se delas, cavar um fosso intransponível entre uma pequeníssima minoria activa e a esmagadora maioria dos trabalhadores relegados para a passividade. A fronteira é estreita e pouco definida entre o vanguardismo e o elitismo, e nestes casos trata-se de puro elitismo, com todas as consequências que daí advêm.
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