A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

28 de julho de 2014

Violência de direito

Os manifestantes tidos por “ilegítimos” ajudam a democracia a avançar. Direito e justiça nem sempre andam juntos 

 
por Vladmir Safatle publicado 27/07/2014
 

O cenário era previsível. Governos acuados por ondas de manifestações que parecem, por um momento, sair completamente do controle e atingir todos os partidos, imprensa e instituições respondem normalmente de maneira idêntica. Eles começam por afirmar existir manifestantes legítimos e ilegítimos. Os primeiros respeitam o Estado Democrático de Direito e estão lá para referendar a festa da democracia brasileira. Eles sairão às ruas, mas no fundo não devem ser ouvidos. Como se diz, quem está descontente que use o voto, mesmo se as eleições se transformaram, em grande parte, em um jogo viciado no qual uma partidocracia define as opções possíveis e associações escusas entre classe política e empresariado determinam quais dessas opções terão fôlego real.

Ou seja, afirmar que a melhor resposta é o voto tem, atualmente, algo de silêncio imposto. Escolhas limitadas não são escolhas reais. Se a classe política não se sentir pressionada até o limite a ouvir o que vem das ruas, a dar à insatisfação popular uma forma, ela simplesmente não ouvirá e nada fará. Pensem, por exemplo, no que aconteceu com as ditas reformas que circulavam no Congresso Nacional, depois das manifestações de junho. Em larga medida, elas desapareceram. 

No entanto, quem força até o limite a classe política são aqueles que os governos gostam de chamar de “manifestantes ilegítimos”, ou seja, esses que agem “fora do Estado Democrático de Direito”. Quando pacifistas impedem a circulação de armamentos, ecologistas vão à Rússia impedir navios de despejarem lixo no mar, quando grevistas fazem piquetes e camponeses invadem latifúndios, ouvimos sempre a mesma coisa: trata-se de criminosos que agem à margem do Estado Democrático de Direito, obrigando o Estado e sua polícia a tomar medidas violentas a fim de fazer respeitar a legalidade democrática. 

No entanto, são esses os que atuam à margem do Estado Democrático de Direito e que fazem a democracia avançar. Pois eles nos lembram que a democracia é o único regime que reconhece sua própria imperfeição e incompletude. Por isso, ela é o único que aceita que há momentos nos quais direito e Justiça se dissociam. Há uma violência que vem da urgência da necessidade de mudança. Por isso, ela é uma violência política.

Nesse exato momento, dezenas de manifestantes estão presos ou foragidos por se indignarem contra os gastos da Copa do Mundo, a miséria de nosso sistema político e o caráter lastimável de nossos serviços públicos. Segundo a polícia, eles preparavam um grande ataque, com direito a bombas, assassinatos de policiais, megadepredações, em suma, o caos.  Sim, a mesma polícia que mais tortura, da América Latina, que costuma fazer pessoas simplesmente desaparecerem na representação ontológica do nada (como o senhor Amarildo), que foi filmada infiltrando-se em manifestações a fim de insuflar violência, que ficou famosa pela mistura de ineficiência, truculência e barbarismo agora vem à imprensa dizer que descobriu um complô formado por advogados, professoras de Filosofia e ativistas para criar o mais fantástico ato terrorista da Nova República. Em seus inquéritos, ela acusa de “formação de quadrilha” pessoas que nem sequer se conheciam e faz apelo à vidência para afirmar que agiu de maneira preventiva para evitar o pior. As gravações telefônicas, ao menos as apresentadas pela imprensa, são de fragilidade aterradora.

O resultado são ativistas na cadeia, sem que em momento algum a população ouvisse suas versões, assim como uma advogada que pediu asilo político ao vizinho Uruguai. Que uma parte da população aplauda isso, dizendo que devemos ter braços firmes contra arruaceiros, eis algo nada surpreendente. São os mesmos que falavam as mesmas coisas na época da ditadura. E de nada adianta dizer que nossa situação não é ditatorial. Nem só ditaduras cometem atos de exceção. As democracias parlamentares têm uma zona cinzenta de suspensão da lei ou de torção da lei usada quando o poder se sente acuado. Que o digam Julian Assange e Edward Snowden. Já para quem chama de vândalos os que jogam pedras em vidraças de banco, eu diria: pior vândalo é quem funda bancos. Se esses vândalos que quebram a economia de países pagassem por seus crimes, certamente não haveria hoje aqueles que quebram vidraças. A resposta a essas pessoas que agem de maneira cada vez mais violenta é a política, não a polícia.

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