Os manifestantes tidos por “ilegítimos” ajudam a democracia a avançar. Direito e justiça nem sempre andam juntos
por Vladmir Safatle—
publicado
27/07/2014
O cenário era
previsível. Governos acuados por ondas de manifestações que parecem, por
um momento, sair completamente do controle e atingir todos os partidos,
imprensa e instituições respondem normalmente de maneira idêntica. Eles
começam por afirmar existir manifestantes legítimos e ilegítimos. Os
primeiros respeitam o Estado Democrático de Direito e estão lá para
referendar a festa da democracia brasileira. Eles sairão às
ruas, mas no fundo não devem ser ouvidos. Como se diz, quem está
descontente que use o voto, mesmo se as eleições se transformaram, em
grande parte, em um jogo viciado no qual uma partidocracia define as
opções possíveis e associações escusas entre classe política e
empresariado determinam quais dessas opções terão fôlego real.
Ou seja, afirmar que a melhor resposta é o
voto tem, atualmente, algo de silêncio imposto. Escolhas limitadas não
são escolhas reais. Se a classe política não se sentir pressionada até o
limite a ouvir o que vem das ruas, a dar à insatisfação popular uma
forma, ela simplesmente não ouvirá e nada fará. Pensem, por exemplo, no
que aconteceu com as ditas reformas que circulavam no Congresso
Nacional, depois das manifestações de junho. Em larga medida, elas
desapareceram.
No entanto, quem força até o limite a
classe política são aqueles que os governos gostam de chamar de
“manifestantes ilegítimos”, ou seja, esses que agem “fora do Estado
Democrático de Direito”. Quando pacifistas impedem a circulação de
armamentos, ecologistas vão à Rússia impedir navios de despejarem lixo
no mar, quando grevistas fazem piquetes e camponeses invadem
latifúndios, ouvimos sempre a mesma coisa: trata-se de criminosos que
agem à margem do Estado Democrático de Direito, obrigando o Estado e sua
polícia a tomar medidas violentas a fim de fazer respeitar a legalidade
democrática.
No entanto, são
esses os que atuam à margem do Estado Democrático de Direito e que
fazem a democracia avançar. Pois eles nos lembram que a democracia é o
único regime que reconhece sua própria imperfeição e incompletude. Por
isso, ela é o único que aceita que há momentos nos quais direito e
Justiça se dissociam. Há uma violência que vem da urgência da
necessidade de mudança. Por isso, ela é uma violência política.
Nesse exato momento, dezenas de
manifestantes estão presos ou foragidos por se indignarem contra os
gastos da Copa do Mundo, a miséria de nosso sistema político e o caráter
lastimável de nossos serviços públicos. Segundo a polícia, eles
preparavam um grande ataque, com direito a bombas, assassinatos de
policiais, megadepredações, em suma, o caos. Sim, a mesma polícia que
mais tortura, da América Latina, que costuma fazer pessoas simplesmente
desaparecerem na representação ontológica do nada (como o senhor
Amarildo), que foi filmada infiltrando-se em manifestações a fim de
insuflar violência, que ficou famosa pela mistura de ineficiência,
truculência e barbarismo agora vem à imprensa dizer que descobriu um
complô formado por advogados, professoras de Filosofia e ativistas para
criar o mais fantástico ato terrorista da Nova República. Em seus
inquéritos, ela acusa de “formação de quadrilha” pessoas que nem sequer
se conheciam e faz apelo à vidência para afirmar que agiu de maneira
preventiva para evitar o pior. As gravações telefônicas, ao menos as
apresentadas pela imprensa, são de fragilidade aterradora.
O resultado são ativistas na cadeia, sem
que em momento algum a população ouvisse suas versões, assim como uma
advogada que pediu asilo político ao vizinho Uruguai. Que uma parte da
população aplauda isso, dizendo que devemos ter braços firmes contra
arruaceiros, eis algo nada surpreendente. São os mesmos que falavam as
mesmas coisas na época da ditadura. E de nada adianta dizer que nossa
situação não é ditatorial. Nem só ditaduras cometem atos de exceção. As
democracias parlamentares têm uma zona cinzenta de suspensão da lei ou
de torção da lei usada quando o poder se sente acuado. Que o digam
Julian Assange e Edward Snowden. Já para quem chama de vândalos os que
jogam pedras em vidraças de banco, eu diria: pior vândalo é quem funda
bancos. Se esses vândalos que quebram a economia de países pagassem por
seus crimes, certamente não haveria hoje aqueles que quebram vidraças. A
resposta a essas pessoas que agem de maneira cada vez mais violenta é a
política, não a polícia.
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