A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

24 de fevereiro de 2015

Instruções para compor um folk

Na Teodoro, me parece, nenhum momento é insignificante o bastante, como queríamos crer. A qualquer instante, entre vendedores de doces ou filmes pirata & algum grupo fazendo piadas com a nova estrela do futebol paulista, encontramos aquela garota com olhos cheios d’água carregando um pequeno vaso com flores da Nicarágua. Então ficamos em dúvida se deixamos na secura do ar aquela memória triste ou se a encharcamos com cerveja gelada – naquela lanchonete que vende os salgadinhos mais vagabundos da cidade, mas tem as mesas limpas & três ou quatro belas reproduções de Rothko. Inevitável não lembrar daqueles folks que falam dessa vida maltratada que levamos neste planeta. Aliás, para retomar aquele assunto sobre a composição de um folk, penso que, para compor um, precisamos do repouso pós-degustação das inflorescências femininas do cânhamo, da Berenice das insônias de Murilo, de rimar kiddin’ you com didn’t you. Precisamos de oferendas & arranjos florais. Precisamos nos imaginar Jean-Luc Godard vendendo, em um qualquer sebo parisiense, os livros autografados por Valéry roubados ao valerianum (a ilustre biblioteca de seu avô). O tema é tão antigo quanto um sorriso, homens decapitados & ervas daninhas. Tão conhecido quanto a caganeira de Pedro I, a gagueira de George VI & a demência do Führer. (Aliás, rimar esfíncter com Hitler daria uma boa fluidez à composição, além de funcionar como uma poderosa alegoria). Antes de cruzar a avenida & entrar na Oscar Freire, imagino que as pernas nuas da mulher amada poderão dar um perfume acústico à melodia. Mas, sabe que é estranho compor um folk? Há uma certa urgência, um desmentir, uma espécie de não-lugar fantasmagórico. Veja só: o que terá nomeado primeiro o primeiro poeta? Ao percorrer com as retinas alumbradas Vieira da Silva conseguiremos desadoecer a lâmina que insiste renomear nossa jugular? Que ansiedade porta um poliedro de fogo quando sabemos que poliedros de fogo não nos servem mais como inspiração? E, nesta praia de ossos, que inspiração? Não tendo como responder a isso, é necessário sujar os dedos de sangue. Não se deve ter medo das metáforas, já que a apregoada “morte da metáfora” é já, por si, uma metáfora. Se isso não for possível, talvez um sorvete de frutas vermelhas que, derretendo, escorra sua calda açucarada sobre a mão esquerda num domingo de sol enquanto se diz à namorada que nem os mais altos & complexos malabarismos da mente valem uma violeta. Mas, para ser mais preciso, insisto, seria mais bacana sangue. Ser duro (às vezes, cruel). Saber que a tristeza é a primeira flor do tempo, que nela é que, queiramos ou não, viveremos intensamente o suicídio de nossos desejos. Um a um. Então a morte novamente dará as cartas. Isso nos dissolverá. Um carinho ausente – por pura escolha. É muito válido, para compor um folk, uma nova reunião. & outra. Mais outra. De versos, de beijos, de amigos, de nãos, de figurinhas da Copa da Espanha. Ter a perfeita noção de que as pessoas a quem se destina o folk estarão interessadas exclusivamente em situações inesquecíveis. Pois quem já tocou a pele de seda & vidro moído da vida sabe que só o alumbramento vale o vexame de definhar-se, dia após dia, frente às contorções de tantas datas. Comprar certas brigas, respeitando sempre aquilo que nos eleva a nós mesmos & que, por isso, nos leva leves aos outros. Por exemplo: não precisa ser pró-Cuba nem anti-Cuba para entender que esta noite milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo etc. Um folk, meu caro amigo, é um silêncio brutal, é um hesitar, evitando relações com gente de temperamento sórdido, quando os vermes da alta patifaria endinheirada dizem que “o que fazemos não presta, porque andamos com uma roupa sovada & o colarinho sujo”. Sim, eu sei éramos o tipo de garotos que não costumavam chorar, nem mesmo sobre pesados invernos onde cai pesada, dentro da sessão da tarde, a solidão. Creio que, para compor um folk, não é preciso estudar numa escola rural & depois ingressar num seminário. Não é preciso trabalhar como tipógrafo, nem ter morado em Petrogrado. Não são necessários arranjos florais ou oferendas, nem padrinhos ou projetos aprovados pelo ministério da cultura. Conversar com Mársias sobre possíveis parcerias, sim – afinal, as flautas! Não é preciso devorar a comida siciliana, mas vale muito a pena comer as mil cortesãs de Corinto. Não é preciso rodar as ruas & vielas do Rio, como um zumbi, trincando de bêbado, à caça de Luísa Porto, nem é preciso emular as extravagâncias de William Cannastra. Lembra-se quando falei sobre o sangue? Pois então, levemos Iessiênin para passear pela Praça da República: Adeus, amigo, sem mãos nem palavras etc., imagine um poetic gore movie, imagine as curvas no rosto da garota Podolski quando caligrafava & desenhava O país onde tudo é permitido. Para compor um folk, turvos de amores & horrores, observando andorinhas chocando balas de fuzil, nós, indecisos pobres ossos de nós mesmos, na arena dessa desgraça portátil, tendo ou não colhido tulipas negras ou dálias azuis, devemos compreender que o horror não nos divide, o horror nos cerca. Observar a precisão astronômica dos moai do Pacífico Sul & ter em mente que todas as regras de construção só são válidas para os poemas que são cópias de outros poemas. Por isso: caminhar, caminhar – sabendo que, quando a ave sangria cantar três mil vezes, entraremos no império do transe & do delírio, onde, diria um carbonário, o planeta entra na órbita do coração.




Fabiano Calixto
Do livro Nominata morfina

13 de fevereiro de 2015

Os Malditos

(A aparição do poeta)

Quantos somos, não sei... Somos um, talvez dois, três, talvez, quatro; cinco, talvez nada
Talvez a multiplicação de cinco em cinco mil e cujos restos encheriam doze terras
Quantos, não sei... Só sei que somos muitos - o desespero da dízima infinita
E que somos belos deuses mas somos trágicos.

Viemos de longe... Quem sabe no sono de Deus tenhamos aparecido como espectros
Da boca ardente dos vulcões ou da órbita cega dos lagos desaparecidos
Quem sabe tenhamos germinado misteriosamente do sono cauterizado das batalhas
Ou do ventre das baleias quem sabe tenhamos surgido?

Viemos de longe - trazemos em nós o orgulho do anjo rebelado
Do que criou e fez nascer o fogo da ilimitada e altíssima misericórdia
Trazemos em nós o orgulho de sermos úlceras no eterno corpo de Jó
E não púrpura e ouro no corpo efêmero de Faraó.

Nascemos da fonte e viemos puros porque herdeiros do sangue
E também disformes porque - ai dos escravos! não há beleza nas origens
Voávamos - Deus dera a asa do bem e a asa do mal às nossas formas impalpáveis
Recolhendo a alma das coisas para o castigo e para a perfeição na vida eterna.

Nascemos da fonte e dentro das eras vagamos como sementes invisíveis o coração dos mundos e dos homens
Deixando atrás de nós o espaço como a memória latente da nossa vida anterior
Porque o espaço é o tempo morto - e o espaço é a memória do poeta
Como o tempo vivo é a memória do homem sobre a terra.

Foi muito antes dos pássaros - apenas rolavam na esfera os cantos de Deus
E apenas a sua sombra imensa cruzava o ar como um farol alucinado...
Existíamos já... No caos de Deus girávamos como o pó prisioneiro da vertigem
Mas de onde viéramos nós e por que privilégio recebido?

E enquanto o eterno tirava da música vazia a harmonia criadora
E da harmonia criadora a ordem dos seres e da ordem dos seres o amor
E do amor a morte e da morte o tempo e do tempo o sofrimento
E do sofrimento a contemplação e da contemplação a serenidade ínperecível

Nós percorríamos como estranhas larvas a forma patética dos astros
Assistimos ao mistério da revelação dosTrópicos e dos Signos
Como, não sei... Éramos a primeira manifestação da divindade
Éramos o primeiro ovo se fecundando à cálida centelha.

Vivemos o inconsciente das idades nos braços palpitantes dos ciclones
E as germinações da carne no dorso descarnado dos luares
Assistimos ao mistério da revelação dos Trópicos e dos Signos
E a espantosa encantação dos eclipses e das esfinges.

Descemos longamente o espelho contemplativo das águas dos rios do Éden
E vimos, entre os animais, o homem possuir doidamente a fêmea sobre a relva
Seguimos… E quando o decurião feriu o peito de Deus crucificado
Como borboletas de sangue brotamos da carne aberta e para o amor celestial voamos.

Quantos somos, não sei... somos um, talvez dois, três, talvez quatro; cinco, talvez, nada
Talvez a multiplicação de cinco mil e cujos restos encheriam doze terras
Quantos, não sei… Somos a constelação perdida que caminha largando estrelas
Somos a estrela perdida que caminha desfeita em luz.

Vinícius de Moraes

Death


2 de fevereiro de 2015

Precisamos

de inteligências radar
e sonar
para captação de formas.
A poesia é um repto.
Não
(necessariamente)
um conceito.
Uma identificação de ecos
por onde o ininteligível
se entende.

Sebastião Uchoa Leite, De Cortes/Toques (1985)