Chacal, poeta marginal, me recebe em seu apartamento no Baixo Gávea,
reduto da boemia carioca. Esse que viveu intensamente os anos 60,
sobreviveu aos setenta, ganhou dinheiro nos 80 e voltou à marginália nos
90 com CEP 20000 – Centro de Experimentação Poética, o sarau festa
anárquica, que ocorre mensalmente no teatro Sergio Porto no Humaitá,
berço de toda uma geração de artistas cariocas e palco de algumas das
experimentações poéticas mais criativas e libertárias há 24 anos.
“A poesia é uma das principais armas políticas, pra você conseguir vencer esse grande dragão que é a linguagem lógica.”
No dia 19 de junho se apresenta no Sesc Ipiranga com “Uma história à
margem”, um monólogo epopéia punk, onde a ficção vira realidade e o
in-verso. Espetáculo que teve estréia no Rio de Janeiro e que em suas
andanças passou por Harvard no início deste ano.
Poeta marginal histórico, Chacal vivenciou e por que não, ainda
vivencia, a experiência da contracultura no mais estrito senso da
palavra. “… Não tinha grana, mas fazia muita coisa, nossos woodstocks caboclos. O trabalho desvinculado do prazer é a morte, acho isso até hoje.”
Ao rememorar os anos 60/70, exemplifica: “A gente se divertia muito.
Era um dia heroína, um dia “Grande Sertão: Veredas”. Não sabia o que era
melhor.”
*
A palavra voltou a ocupar o espaço? Nunca se escreveu tanto com a internet, facebook, não?
É o que eu chamo de afloração da idade do ouro na idade da lata.
Tenho pra mim esta distinção, existiu uma idade do ouro, antes da
propriedade privada, onde todos cooperavam entre si. Tem histórias de
que o homem começa a matar os lobos. Os lobos comiam o gado dos homens.
Os homens inventam armas e lanças e matam os lobos. Começa o excesso de
gado, de búfalos, bisões. A partir daí, eles começam a negociar a
propriedade. É o mar de equívocos que até hoje prevalece, essa coisa da
grana e da propriedade. Eu acho que de vez em quando tem florações dessa
idade do ouro. São conjecturas, muito delirantes de minha parte. Na
idade do ouro não teria essa lógica linear, todas essas rupturas seriam
florações da idade do ouro na idade da lata. O carnaval é uma afloração,
a poesia é uma afloração e a internet é uma afloração.
A grande revolução é a internet?
Eu acho que ela é o ovo da serpente. Foi gerada dentro do sistema
capitalista, na sociedade de consumo, neoliberal. Nasceu deste sistema,
mas pra vencer este sistema.
O pensamento darwinista ajudou muito o capitalismo a se estruturar. O
homem não é o lobo do homem. Não é o mais forte que tem que vencer, não
é pra isso. Há muito mais indícios de que havia muito mais colaboração
do que choque e competição. Na natureza tem um sistema cooperativo
desde as moléculas. Desde a nossa gênese.
De onde surge o nome poesia marginal?
A gente começou a escrever poesia a partir do Oswald, do
Tropicalismo, Pessoa, Maiakovski, imerso na contracultura, então só
líamos os malditos e ouvíamos rock’n’roll. O Maiakovski
representava justamente essa mistura de romper com a linguagem lógica e
com o sistema político tradicional, com o capitalismo.
O nome Chacal veio de um treino da seleção de vôlei da seleção
carioca. Eu demorei a chegar no refeitório e vi a galera comendo em
silencio e falei. “Que onda Chacal”.
O que significava onda Chacal?
Uma gíria da época. Sei lá, uma onda devagar, calada.
Como você começou a escrever poesia?
Foi através do tropicalismo, que recuperaram o Oswald de Andrade e
eu fui ler. A ditadura rolando. Comecei a escrever ali, fiquei
obnubilado pelo Oswald, ele juntava a coisa sintética da poesia e da
música com a coisa bem humorada e era crítico, era bem político. Comecei
a escrever assim, parecido com ele. Isso misturado com a contracultura,
a psicodelia. Meu primeiro poema dizia: “Da orelha esquerda de Moisés
saltava um duende capenga nas noites de lua nova”. Tem a coisa
sintética do Oswald, um certo humor nonsense com a psicodelia.
Você participou dos movimentos de esquerda da época?
Eu comecei no movimento estudantil mas ele morre com o AI5, por que a
repressão baixou muito pesado. Só continuou quem foi pra luta armada.
Ou você acreditava muito que havia uma possibilidade de revolução ou
ia buscar outras alternativas. Fui buscar através da contracultura, onde
o mundo todo pudesse se libertar. Romper com uma estrutura patriarcal,
moral, que estava na sua cabeça.
A poesia era política pelo rompimento da estrutura, pela linguagem?
Essa lógica verbal é uma das principais ferramentas do sistema para
nos manter com uma visão linear do mundo, limitada. O mundo não é início
meio fim, sujeito verbo predicado. O mundo é tudo ao mesmo tempo agora,
que pra mim é uma ordem. Na minha cabeça a ordem é o caos. A partir do
caos você começa a se entender, começa a se dar formas. Mas volta e meia
você volta ao caos. E a linguagem, principalmente a poética, começa a
revolucionar, a subverter essa ordem do mundo. A poesia é uma das
principais armas políticas, pra você conseguir vencer esse grande dragão
que é a linguagem lógica.
A poesia marginal nasce na universidade?
A universidade neste período estava muito difícil, o AI5 fez o
serviço. Os professores estavam sendo expurgados… Nem passava pela
cabeça ser poeta. Não existia poeta. Existia músico, pintor, escritor.
Não tinha essa coisa da carreira literária. Eu escrevia em cadernos e
os amigos liam e falavam pra eu publicar. Eu não entendia.
Mal e porcamente. Nem sei como eu vivia. Eu fiz estágios em agências
de propaganda. Mas eu não conseguia. Eu tava bem no início. Queria
escrever poesia, viver a onda psicodélica. No estágio escrevi um
anúncio para as Óticas Fluminense: “se o mundo não vai bem aos seus
olhos use lente. Ou mude o mundo.” Eles acharam muito subversivo. Até
que um dia eu perdi um ácido lá e disse: nunca mais volto aqui. Essa
agência é muito baixo astral. Meu ácido caríssimo!
Essa palavra mercado ainda nem existia, ainda bem. Tinha pouca opção
pra quem escrevia. Tinha propaganda, mas era abominável. A mídia também
não tinha espaço, tudo bloqueado. A gente ainda não era letrista. Era
poeta. Publicamos em mimeógrafo. Deu um nó. Poesia em mimeógrafo? Os
caretas do sistema não entenderam. Os primeiros que elogiaram foram “os
caras”: Wally Salomão, Torquato Neto e Hélio Oiticica. A santíssima
trindade do subterrâneo brasileiro. Com esse trio dando aval eu
continuei. Dois anos depois é que a academia veio. Cacaso e Chico Alvim
ficaram encantados por que rompia com a sisudez, eles vinham do cânone.
Quando eles entraram em contato com a gente acharam bonito, engraçado,
rompia com o mundo acadêmico. Isso aconteceu enquanto eu tava em
Londres.
Por que você foi pra Londres?
Os amigos todos estavam indo. Tava muito chato por aqui. Fui preso
várias vezes, por vadiagem. Ficava doidão no baixo Leblon e rodava.
Andava sempre sem documento. Mas em 72 fui. Londres era meu sonho,a meca
do rock – Beatles, Rolling Stones. Eu vi o Allen Ginsberg lá. A
performance dele, num festival internacional de poesia. Ele tinha um
canto rock’n’roll e era poesia falada. Performática. Juntava a poesia com a música. Eu queria isso! Tinha as onomatopeias, as gargalhadas.
Mas ainda não chegamos no por que do nome poesia marginal.
Poesia era marginal porque rompia com o modo tradicional da indústria do livro: editora, distribuidora, padrinhos literários, etc. Quando volto ao Brasil já está tudo mais estruturado, o Cacaso já tinha organizado uma coleção chamada Frenesi.
Aí veio a Heloisa Buarque de Hollanda, e juntou o que normalmente não
juntaria. Mas naquela época todos eram contra a ditadura. A gente se
juntava por que o grande inimigo estava fora da gente, o governo
militar. Éramos diferentes mas não divergentes.
O inimigo fora ajuda a criar nosso exército?
Nos dá um ânimo para atuar. É um pouco o que a gente vive hoje, não
tem um inimigo fora. O mercado é furta cor. Dá pra ir contra ele, mas é
mais delicado. É menos visível a atuação. Naquela época tudo era
produto do sistema, até nossas fraquezas, nossa impotência. Tudo era
perdoado, o que também não era legal. A gente era muito benevolente com a
gente. Tudo era culpa da ditadura. A gente fazia pra se divertir
também.
Até hoje eu não sei o que é poesia marginal, não tem um manifesto, um
estatuto. Tudo pode ser poesia marginal. Para mim era tudo que não era
métrica, ou visual naquele período.
Juntava poetas, como o Wally que não gostava da poesia marginal, ele
achava inculta, o Leminski que também não gostava pela mesma razão e a
Ana Cristina César. Tudo isso entrava no saco da poesia marginal. Havia
uma parceria, mas não havia este acordo entre a gente, esteticamente
eram caminhos bem diferentes. Tinha toda esta mística do marginal na
cultura da época, poderia ter se chamado poesia underground também. A poesia marginal é considerada o último movimento poético do Brasil, uma coisa que já tem 40 anos.
E no mundo tem outros movimentos?
Não sei. Poesia foi muito atingida pelos meios audiovisuais. Numa
sociedade sensorial, a coisa da palavra vai perdendo a força. Poesia
exige uma reflexão. Esse tempo da poesia se foi. O CEP 20000 é uma tentativa de manter vivo isso trazendo a poesia para o palco, para o ao vivo.
Hoje em dia tem várias rodas de rimas, de slams na virada
cultural. Talvez o movimento seja a voz das periferias, o hip hop, que é
a forma atual da poesia popular. Pegou este bastão do cordel. E o hip
hop com a coisa eletrônica, com os ritmos.
Na periferia talvez exista o inimigo visível, em comum?
Sim. Tem razão. O que o governo militar foi pra classe média e pra
todos, hoje é a polícia espancando o preto pobre. Ele tem uma
necessidade de discurso. Onde a palavra é necessária. Na periferia é o
grito de guerra. A violência explícita. Eles tem que gritar.
Naquela época, nos anos 70, a gente falava do nosso dia a dia. A
gente falava pra gente mesmo. A polícia nos calcanhares. Não podia sair
à noite, não podia tomar ácido.
Ácido não pode tomar até hoje!
Não pode tomar ácido até hoje, não é?
Acho que a gente tem muitos pontos de contato com hoje em dia. Mas
falta uma expressão artística pra isso. As pessoas já foram pra rua, mas
falta alguma coisa. Falta um tropicalismo pós pra pensar e questionar
estes valores. Acho que alguma coisa com a mídia livre, mídia ativismo.
Eu tenho uma metáfora que aquele período era o espantalho, colocavam
na horta para assustar. Uma coisa bufa, cruel, malvada. Os generais eram
totalmente bufos e hoje em dia o espantalho deu lugar ao agrotóxico.
Você não vê o inimigo, você ingere o inimigo. Antigamente a censura te
censurava. Agora é o mercado que tá introjetado, que te censura. Vai
reclamar com quem? É o sistema dissimulado, que não tem cara.
Anos 80 foi uma época mais alienada?
Foi a vitória do mercado. Os anos 80 foi muito yuppie,
muito sucesso. A grande estrela era o cartão de crédito, que estava
chegando. Os marginais foram para o palco. Ganhando dinheiro ao mesmo
tempo se prostituindo. Aproveitei bem essa absorção da cultura marginal
dos anos 70 pela indústria cultural. Comprei um telefone, aluguei um quarto e sala. Mas isso se esgotou no final dos anos 80. O sistema é autofágico. De uma hora para outra eu me senti um velhinho, bagaço cuspido fora. Não
gostava dos homens de gravadora definindo quem ia tocar nas rádios. Eu
acho que os anos 80 foi a reação do sistema. E agora vem essa geração
digital. Não segue o analógico. Outro paradigma, outra velocidade.
Essa não era a busca da contracultura?
O berço da era digital é a Califórnia que é o berço do movimento hippie.
Mas a cara é tão diferente. Dos hippies para os nerds. É curioso esse parentesco.
O Timothy Leary, pai do ácido, e todos, eram adeptos da computação
eletrônica. A falta de linearidade. Depois de muito ácido o sujeito
entende que não tem sujeito predicado verbo. O que é o hipertexto? É
tudo ao mesmo tempo. Tem muito mais a ver com a realidade do que a
linearidade de um livro.
Anos 80 virou a chave, como se deu isso?
Nos anos 60/70 a gente se divertia muito. Não tinha grana, mas fazia muita coisa, nossos woodstocks caboclos.A
gente não queria cumprir ordem unida para o sistema. O trabalho
desvinculado do prazer é a morte, acho isso até hoje. Ninguém mais
queria seguir o sistema e isso foi barbaramente engolido pela mídia. O
sistema percebeu o perigo. Mas começa a ruir mesmo com as mortes do
Jimi Hendrix, Janis Joplin e aqui o Torquato. Foi uma época muito pesada
em suicídios e overdose. Eu tomei uma overdose em Londres.
Comecei a tomar heroína em Londres. Era difícil conseguir, mas era a
droga para o inverno europeu. Era o nirvana. Prazer absoluto. Tomei uma
dose de junky e foi tudo apagando, acordei no hospital. Eu
tomava dia sim dia não, eu queria todo dia mas não tinha grana. E foi
nessa época que caiu na minha mão o “Grande Sertão: Veredas”. Então era
assim, um dia heroína, um dia “Grande Sertão”. Não sabia o que era
melhor.
Mas como que o sistema devorou o movimento hippie?
Chamavam os hippies de natureba, riponga. E as pessoas foram se drogando muito. Isso tudo foi desacreditando o movimento hippie. Então nos anos 70 o que vigora é o movimento punk, no future,
vamos nos acabar. Acabou o paz e amor. Mas foi absorvido pelo mercado
também. Não precisa mandar a polícia, é só desacreditar. O sistema é
ambíguo, a gente vive dele, se vira dentro dele, ao mesmo tempo não
concorda com ele. Mas não conseguem acabar nunca com a gente, com os
malucos.
Quem são os malucos hoje?
Os caras que estão na rua. Que partem pra cima mesmo. Até o ano
passado achei que não tinha mais maluco. Tem os malucos na poesia, que
querem fazer dentro da sua arte. Mas fora disso eu não via manifestações
contra o sistema, era um pouco impensável. Isso já é fruto da era
digital.
Tudo fruto desta monstruosidade chamada sistema neoliberal, que agride, bate, estupra.
Segundo Zygmunt Bauman sobrou pro Estado punir. A única função é não
permitir que as pessoas se revoltem. Botar a repressão na rua, das
formas mais modernas. Em nome da ordem, da produção e do trabalho. As
empresas são transnacionais e os interesses são só sugar. Desmantelar
tudo que o ser humano conquistou, o welfarestate (bem estar social).
O CEP 20000 era completamente anárquico, uma catarse coletiva, não tinha muito limite palco plateia, ainda é assim?
Não. Era inacreditável. O desencanto com o ouro de tolo, com a
indústria cultural e volta o prazer de estar junto fazendo barulho. Se
divertir e mostrar os seus trabalhos. E juntou uma galera muito
competente. Era um delírio. Um palco e tudo escuro, a garotada se
pegando, se encontrando e fazendo poesia. Um período muito feliz.
O CEP é o maior bunker de resistência da poesia?
O CEP 20.000 faz 24 anos agora em
agosto. Depois de tanto tempo, a Secretaria Municipal de Cultura do Rio
de Janeiro não deu apoio ao projeto esse ano. Mas não conseguiu acabar
com o CEP. O Imperator no Méier, da Prefeitura, convidou o CEP para dar
uma cara mais experimental ao lugar, que para se manter, promove shows e
peças do mainstream. E continuo com o tradicional CEP do Humaitá, no Sergio Porto, à base de bilheteria. Espaço conquistado não se entrega. O
CEP é um projeto de base, estruturante, que abre espaço para novos
talentos. Devia haver um como ele em cada bairro. Sem isso, novas
gerações de artistas ficam sem espaço para se expressar e implodem. Se
transformam em pessoas frustradas que poderiam estar felizes. O CEP é um
lugar de encontro, de afeto, de insurreição. Isso a Instituição quer
acabar. A noite do Rio acaba cedo agora, toda uma caretice planetária
que não permite uma vida noturna, o encontro. Porque as pessoas são
feitas para trabalhar, consumir e produzir. As pessoas com medo em casa,
se anestesiando diante do monitor ou da televisão. O CEP 20000 quebra
com isso. CEP 20000: só indo, só vendo, ouvindo, vivendo.
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