A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

2 de abril de 2015

O herói que não morreu de overdose


Chacal, poeta marginal, me recebe em seu apartamento no Baixo Gávea, reduto da boemia carioca. Esse que viveu intensamente os anos 60, sobreviveu aos setenta, ganhou dinheiro nos 80 e voltou à marginália nos 90 com CEP 20000 – Centro de Experimentação Poética, o sarau festa anárquica, que ocorre mensalmente no teatro Sergio Porto no Humaitá, berço de toda uma geração de artistas cariocas e palco de algumas das experimentações poéticas mais criativas e libertárias há 24 anos.
“A poesia é uma das principais armas políticas, pra você conseguir vencer esse grande dragão que é a linguagem lógica.”
No dia 19 de junho se apresenta no Sesc Ipiranga com “Uma história à margem”, um monólogo epopéia punk, onde a ficção vira realidade e o in-verso. Espetáculo que teve estréia no Rio de Janeiro e que em suas andanças passou por Harvard no início deste ano.
Poeta marginal histórico, Chacal vivenciou e por que não, ainda vivencia, a experiência da contracultura no mais estrito senso da palavra. “… Não tinha grana, mas fazia muita coisa, nossos woodstocks caboclos. O trabalho desvinculado do prazer é a morte, acho isso até hoje.”
Ao rememorar os anos 60/70, exemplifica: “A gente se divertia muito. Era um dia heroína, um dia “Grande Sertão: Veredas”. Não sabia o que era melhor.”

A palavra voltou a ocupar o espaço?  Nunca se escreveu tanto com a internet, facebook, não?
É o que eu chamo de afloração da idade do ouro na idade da lata. Tenho pra mim esta distinção, existiu uma idade do ouro, antes da propriedade privada, onde todos cooperavam entre si. Tem histórias de que o homem começa a matar os lobos. Os lobos comiam o gado dos homens. Os homens inventam armas e lanças e matam os lobos. Começa o excesso de gado, de búfalos, bisões. A partir daí, eles começam a negociar  a propriedade. É o mar de equívocos que até hoje prevalece, essa coisa da grana e da propriedade. Eu acho que de vez em quando tem florações dessa idade do ouro. São conjecturas, muito delirantes de minha parte. Na idade do ouro não teria essa lógica linear, todas essas rupturas seriam florações da idade do ouro na idade da lata. O carnaval é uma afloração, a poesia é uma afloração e a internet é uma afloração.
A grande revolução é a internet?
Eu acho que ela é o ovo da serpente. Foi gerada dentro do sistema capitalista, na sociedade de consumo, neoliberal. Nasceu deste sistema, mas pra vencer este sistema.
O pensamento darwinista ajudou muito o capitalismo a se estruturar. O homem não é o lobo do homem. Não é o mais forte que tem que vencer, não é pra isso. Há muito mais indícios de que havia muito mais colaboração do que choque e competição.  Na natureza tem um sistema cooperativo desde as moléculas. Desde a nossa gênese.
De onde surge o nome poesia marginal?
A gente começou a escrever poesia a partir do Oswald, do Tropicalismo, Pessoa, Maiakovski, imerso na contracultura, então só líamos os malditos e ouvíamos rock’n’roll. O Maiakovski representava justamente essa mistura de romper com a linguagem lógica e com o sistema político tradicional, com o capitalismo.
O nome Chacal?
O nome Chacal veio de um treino da seleção de vôlei da seleção carioca.  Eu demorei a chegar no refeitório e vi a galera comendo em silencio e falei. “Que onda Chacal”.
O que significava onda Chacal?
Uma gíria da época. Sei lá, uma onda devagar, calada.
Como você começou a escrever poesia?
Foi através do tropicalismo, que recuperaram o Oswald  de Andrade e eu fui ler. A ditadura rolando. Comecei a escrever ali, fiquei obnubilado pelo Oswald, ele juntava a coisa  sintética da poesia e da música com a coisa bem humorada e era crítico, era bem político. Comecei a escrever assim, parecido com ele. Isso misturado com a contracultura, a psicodelia. Meu primeiro poema dizia: “Da orelha esquerda de Moisés saltava um duende capenga nas noites de lua nova”.  Tem a coisa sintética do Oswald, um certo humor nonsense com a psicodelia.
Você participou dos movimentos de esquerda da época?
Eu comecei no movimento estudantil mas ele morre com o AI5, por que a repressão baixou muito pesado.  Só continuou quem foi pra luta armada.
Ou você acreditava muito que havia uma possibilidade de revolução ou ia buscar outras alternativas. Fui buscar através da contracultura, onde o mundo todo pudesse se libertar. Romper com uma estrutura patriarcal, moral, que estava na sua cabeça.
A poesia era política pelo rompimento da estrutura, pela linguagem?
Essa lógica verbal é uma das principais ferramentas do sistema para nos manter com uma visão linear do mundo, limitada. O mundo não é início meio fim, sujeito verbo predicado. O mundo é tudo ao mesmo tempo agora, que pra mim é uma ordem. Na minha cabeça a ordem é o caos. A partir do caos você começa a se entender, começa a se dar formas. Mas volta e meia você volta ao caos. E a linguagem, principalmente a poética, começa a revolucionar, a subverter essa ordem do mundo. A poesia é uma das principais armas políticas, pra você conseguir vencer esse grande dragão que é a linguagem lógica.
A poesia marginal nasce na universidade?
A universidade neste período estava muito difícil, o AI5 fez o serviço. Os professores estavam sendo expurgados… Nem passava pela cabeça ser poeta.  Não existia poeta. Existia músico, pintor, escritor.  Não tinha essa coisa da carreira literária. Eu escrevia em cadernos e os amigos liam e falavam pra eu publicar. Eu não entendia.
Como você se sustentava?
Mal e porcamente. Nem sei como eu vivia. Eu fiz estágios em agências de propaganda. Mas eu não conseguia. Eu tava bem no início. Queria escrever poesia, viver a onda psicodélica.  No estágio escrevi um anúncio para as Óticas Fluminense: “se o mundo não vai bem aos seus olhos use lente. Ou mude o mundo.” Eles acharam muito subversivo. Até que um dia eu perdi um ácido lá e disse: nunca mais volto aqui. Essa agência é muito baixo astral. Meu ácido caríssimo!
Inserção no mercado?
Essa palavra mercado ainda nem existia, ainda bem. Tinha pouca opção pra quem escrevia. Tinha propaganda, mas era abominável. A mídia também não tinha espaço, tudo bloqueado. A gente ainda não era letrista. Era poeta. Publicamos em mimeógrafo. Deu um nó. Poesia em mimeógrafo? Os caretas do sistema não entenderam. Os primeiros que elogiaram foram “os caras”:  Wally Salomão, Torquato Neto e Hélio Oiticica. A santíssima trindade do subterrâneo brasileiro. Com esse trio dando aval eu continuei. Dois anos depois é que a academia veio. Cacaso e Chico Alvim ficaram encantados por que rompia com a sisudez, eles vinham do cânone. Quando eles entraram em contato com a gente acharam bonito, engraçado, rompia com o mundo acadêmico. Isso aconteceu enquanto eu tava em Londres.
Por que você foi pra Londres?
Os amigos todos estavam indo. Tava muito chato por aqui. Fui preso várias vezes, por vadiagem.  Ficava doidão no baixo Leblon e rodava. Andava sempre sem documento. Mas em 72 fui. Londres era meu sonho,a meca do rock­ – Beatles, Rolling Stones. Eu vi o Allen Ginsberg lá. A performance dele, num festival internacional de poesia. Ele tinha um canto rock’n’roll e era poesia falada. Performática. Juntava a poesia com a música. Eu queria isso! Tinha as onomatopeias, as gargalhadas.
Mas ainda não chegamos no por que do nome poesia marginal.
Poesia era marginal porque rompia com o modo tradicional da indústria do livro: editora, distribuidora, padrinhos literários, etc. Quando volto ao Brasil já está tudo mais estruturado, o Cacaso já tinha organizado uma coleção chamada Frenesi. Aí veio a Heloisa Buarque de Hollanda, e juntou o que normalmente não juntaria. Mas naquela época todos eram contra a ditadura. A gente se juntava por que o grande inimigo estava fora da gente, o governo militar. Éramos diferentes mas não divergentes.
O inimigo fora ajuda a criar nosso exército?
Nos dá um ânimo para atuar. É um pouco o que a gente vive hoje, não tem um inimigo fora. O mercado é  furta cor. Dá pra ir contra ele, mas é mais delicado. É menos visível a atuação. Naquela época tudo era produto do sistema, até nossas fraquezas, nossa impotência. Tudo era perdoado, o que também não era legal. A gente era muito benevolente com a gente. Tudo era culpa da ditadura. A gente fazia pra se divertir também.
Que é poesia marginal?
Até hoje eu não sei o que é poesia marginal, não tem um manifesto, um estatuto.  Tudo pode ser poesia marginal. Para mim era tudo que não era métrica, ou visual naquele período.
Juntava poetas, como o Wally que não gostava da poesia marginal, ele achava inculta, o Leminski que também não gostava pela mesma razão e a Ana Cristina César. Tudo isso entrava no saco da poesia marginal. Havia uma parceria, mas não havia este acordo entre a gente, esteticamente eram caminhos bem diferentes. Tinha toda esta mística do marginal na cultura da época, poderia ter se chamado poesia underground também. A poesia marginal é considerada o último movimento poético do Brasil, uma coisa que já tem 40 anos.
E no mundo tem outros movimentos?
Não sei. Poesia foi muito atingida pelos meios audiovisuais. Numa sociedade sensorial, a coisa da palavra vai perdendo a força. Poesia exige uma reflexão. Esse tempo da poesia se foi. O CEP 20000 é uma tentativa de manter vivo isso trazendo a poesia para o palco, para o ao vivo.
Hoje em dia tem várias rodas de rimas, de slams na virada cultural. Talvez o movimento seja a voz das periferias, o hip hop, que é a forma atual da poesia popular. Pegou este bastão do cordel. E o hip hop com a coisa eletrônica, com os ritmos.
Na periferia talvez exista o inimigo visível, em comum?
Sim. Tem razão. O que o governo militar foi pra classe média e pra todos, hoje é a polícia espancando o preto pobre. Ele tem uma necessidade de discurso. Onde a palavra é necessária. Na periferia é o grito de guerra. A violência explícita. Eles tem que gritar.
Naquela época, nos anos 70,  a gente falava do nosso dia a dia. A gente falava pra gente mesmo.  A polícia nos calcanhares. Não podia sair à noite, não podia tomar ácido.
Ácido não pode tomar até hoje!
Não pode tomar ácido até hoje, não é?
Acho que a gente tem muitos pontos de contato com hoje em dia. Mas falta uma expressão artística pra isso. As pessoas já foram pra rua, mas falta alguma coisa. Falta um tropicalismo pós pra pensar e questionar estes valores. Acho que alguma coisa com a mídia livre, mídia ativismo.
Eu tenho uma metáfora que aquele período era o espantalho, colocavam na horta para assustar. Uma coisa bufa, cruel, malvada. Os generais eram totalmente  bufos e hoje em dia o espantalho deu lugar ao agrotóxico. Você não vê o inimigo, você ingere o inimigo. Antigamente a censura te censurava. Agora é o mercado que tá introjetado, que te censura. Vai reclamar com quem? É o sistema dissimulado, que não tem cara.
Anos 80 foi uma época mais alienada?
Foi a vitória do mercado. Os anos 80 foi muito yuppie, muito sucesso. A grande estrela era o cartão de crédito, que estava chegando.  Os marginais foram para o palco. Ganhando dinheiro ao mesmo tempo se prostituindo. Aproveitei bem essa absorção da cultura marginal dos anos 70 pela indústria cultural. Comprei um telefone, aluguei um quarto e sala. Mas isso se esgotou no final dos anos 80. O sistema é autofágico. De uma hora para outra eu me senti um velhinho, bagaço cuspido foraNão gostava dos homens de gravadora definindo quem ia tocar nas rádios. Eu acho que os anos 80 foi a reação do sistema. E agora vem essa geração digital. Não segue o analógico. Outro paradigma, outra velocidade.
Essa não era a busca da contracultura?
O berço da era digital é a Califórnia que é o berço do movimento hippie.
Mas a cara é tão diferente. Dos hippies para os nerds. É curioso esse parentesco.
O Timothy Leary, pai do ácido, e todos, eram adeptos da computação eletrônica. A falta de linearidade. Depois de muito ácido o sujeito entende que não tem sujeito predicado verbo. O que é o hipertexto? É tudo ao mesmo tempo. Tem muito mais a ver com a realidade do que a linearidade de um livro.
Anos 80 virou a chave, como se deu isso?
Nos anos 60/70 a gente se divertia muito. Não tinha grana, mas fazia muita coisa, nossos woodstocks caboclos.A gente não queria cumprir ordem unida para o sistema. O trabalho desvinculado do prazer é a morte, acho isso até hoje. Ninguém mais queria seguir o sistema e isso foi barbaramente engolido pela mídia. O sistema percebeu o perigo.  Mas começa a ruir mesmo com as mortes do Jimi Hendrix, Janis Joplin e aqui o Torquato. Foi uma época muito pesada em suicídios e overdose. Eu tomei uma overdose em Londres.
De heroína?
Comecei a tomar heroína em Londres. Era difícil conseguir, mas era a droga para o inverno europeu. Era o nirvana. Prazer absoluto. Tomei uma dose de junky e foi tudo apagando, acordei no hospital. Eu tomava dia sim dia não, eu queria todo dia mas não tinha grana. E foi nessa época que caiu na minha mão o “Grande Sertão: Veredas”. Então era assim, um dia heroína, um dia “Grande Sertão”. Não sabia o que era melhor.
Mas como que o sistema devorou o movimento hippie?
Chamavam os hippies de natureba, riponga. E as pessoas foram se drogando muito. Isso tudo foi desacreditando o movimento hippie. Então nos anos 70 o que vigora é o movimento punk, no future, vamos nos acabar. Acabou o paz e amor. Mas foi absorvido pelo mercado também. Não precisa mandar a polícia, é só desacreditar. O sistema é ambíguo, a gente vive dele, se vira dentro dele, ao mesmo tempo não concorda com ele. Mas não conseguem acabar nunca com a gente, com os malucos.
Quem são os malucos hoje?
Os caras que estão na rua. Que partem pra cima mesmo. Até o ano passado achei que não tinha mais maluco. Tem os malucos na poesia, que querem fazer dentro da sua arte. Mas fora disso eu não via manifestações contra o sistema, era um pouco impensável. Isso já é fruto da era digital.
Tudo fruto desta monstruosidade chamada sistema neoliberal, que agride, bate, estupra.
Segundo Zygmunt Bauman sobrou pro Estado punir. A única função é não permitir que as pessoas se revoltem. Botar a repressão na rua, das formas mais modernas.  Em nome da ordem, da produção e do trabalho. As empresas são transnacionais e os interesses são só sugar. Desmantelar tudo que o ser humano conquistou, o welfarestate (bem estar social).
O CEP 20000 era completamente anárquico, uma catarse coletiva, não tinha muito limite palco plateia, ainda é assim?
Não. Era inacreditável. O desencanto com o ouro de tolo, com a indústria cultural e volta o prazer de estar junto fazendo barulho. Se divertir e mostrar os seus trabalhos. E juntou uma galera muito competente. Era um delírio. Um palco e tudo escuro, a garotada se pegando, se encontrando e fazendo poesia. Um período muito feliz.
O CEP é o maior bunker de resistência da poesia?
O CEP 20.000 faz 24 anos agora em agosto. Depois de tanto tempo, a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro não deu apoio ao projeto esse ano. Mas não conseguiu acabar com o CEP. O  Imperator no Méier, da Prefeitura, convidou o CEP para dar uma cara mais experimental ao lugar, que para se manter, promove shows e peças do mainstream. E continuo com o tradicional CEP do Humaitá, no Sergio Porto, à base de bilheteria. Espaço conquistado não se entregaO CEP é um projeto de base, estruturante, que abre espaço para novos talentos. Devia haver um como ele em cada bairro. Sem isso, novas gerações de artistas ficam sem espaço para se expressar e implodem. Se transformam em pessoas frustradas que poderiam estar felizes. O CEP é um lugar de encontro, de afeto, de insurreição. Isso a Instituição quer acabar. A noite do Rio acaba cedo agora, toda uma caretice planetária que não permite uma vida noturna, o encontro. Porque as pessoas são feitas para trabalhar, consumir e produzir. As pessoas com medo em casa, se anestesiando diante do monitor ou da televisão. O CEP 20000 quebra com isso. CEP 20000: só indo, só vendo, ouvindo, vivendo.

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