cidade
sopro aberto
corpo de artérias
carne claustrofóbica
berro de desertas vidas
veias
veios
rios
rochas cegas
chaga infectada
trincheira adormecida
miragem imolada
horizonte amputado
multidão insone tropeçando nas palavras
trens cheios de gente
medusa mascarada
serpente intocada do idioma alheio
infinita ilha babilônica
moinho de atrair delírios
argamassa elétrica de arrastar tragédias
epiderme tectônica
ar que arranha o vidro
olho sem colírio
noturno monolito
ícaro de algum sol invertido
dédalo perdido
arquitetura de gargantas mortas
engrenagem enferrujada
tarde gangrenada
sal que marca
e arde na ferida aberta
margem que devora os mares
esperma de palavras brutas
lugar de exílio dos poetas
âmago inerte do quarto círculo do inferno
trânsito sonâmbulo do carbono
escafandros bruscos de perdidos hemisférios
mar que arrasta troços
e traz de volta
os destroços do naufrágio
submersas multidões
e o fôlego oprimido de tantas Áfricas
Salvador Passos
A Caverna
Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes
Jean Louis Battre, 2010
Jean Louis Battre, 2010
22 de novembro de 2016
7 de novembro de 2016
Matinê
Às vezes
saio do cinema
E me
ponho a andar
Cartografias
pessoas
Apenas
olhar
Ter a
leve impressão
De que a
cidade está grávida
De um outro lugarMarcelo Montenegro
El laberinto de la soledad
Yuri viu que a Terra é azul e disse a Terra é azul.
Depois disso, ao ver que a folha era verde disse
a folha é verde, via que a água era transparente
e dizia a água é transparente via a chuva que caía
e dizia a chuva está caindo via que a noite surgia
e dizia lá vem a noite, por isso uns amigos diziam
que Yuri era só obviedades enquanto outros
atestavam que tolos se limitavam a tautologias
e inimigos juravam que Yuri era um idiota
que se comovia mais que o esperado; chorava
nos museus, teatro, diante da televisão, alguém
varrendo a manhã, cafés vazios no fim da noite,
secos de carvão; a neve caindo, dizia é branca
a neve e chorava; se estava triste, se alegre,
essa mágoa; mas ria se via um besouro dizia
um besouro, e ria; vizinhos e cunhados decretaram:
o homem estava doido; mas sua mulher assegurava
que ele apenas voltara sentimental. O astronauta
lacrimoso sentia o peito tangido de amor total
ao ver as filhas brincando de passar anel
e de melancolia ao deparar com antigas fotos
de Klushino, não aquela dos livros, estufada
de pensões e medalhas, mas sua aldeia menina,
dos carpinteiros, da lua e lobisomens,
do seu tio Pavel, de sua mãe, do trem,
de seus primos, coisas assim, luvas velhas,
furadas, que servem apenas para fazer chorar.
Era constrangedor o modo como os olhos
de Yuri pareciam transpassar as paredes
nas reuniões de trabalho, nas solenidades,
nas dicsussões de metas para o próximo ano
e no instante seguinte podiam se encher de água
e os dentes ficavam quase azuis de um sorriso
inexplicável: um velho general, ironicamente
ou não, afirmara em relatório oficial que Yuri
Gagarin vinha sofrendo de uma ternura
devastadora; sabe-se lá o que isso significava,
mas parecia que era exatamente isso, porque
o herói não voltou místico ou religioso, ficou
doce, e podia dizer eu amo você com a facilidade
de um pequeno-burguês, conforme sentença
do Partido a portas fechadas. Certo dia, contam
caiu aos pés de Octavio Paz; descuidado, tropeçara
de paixão pelas telas cubistas degeneradas de Picasso.
Médicos recomendaram vodca, férias, Marx,
barbitúricos; o pobre-diabo fez de tudo
para ser igual a todo mundo; mas,
quando parecia apenas banal, logo dizia coisas
como a leveza é leve. Desde o início,
quiseram calá-lo; uma pena; Yuri voltou vivo
e não nos contou como é a morte.
Eucanaã Ferraz
Depois disso, ao ver que a folha era verde disse
a folha é verde, via que a água era transparente
e dizia a água é transparente via a chuva que caía
e dizia a chuva está caindo via que a noite surgia
e dizia lá vem a noite, por isso uns amigos diziam
que Yuri era só obviedades enquanto outros
atestavam que tolos se limitavam a tautologias
e inimigos juravam que Yuri era um idiota
que se comovia mais que o esperado; chorava
nos museus, teatro, diante da televisão, alguém
varrendo a manhã, cafés vazios no fim da noite,
secos de carvão; a neve caindo, dizia é branca
a neve e chorava; se estava triste, se alegre,
essa mágoa; mas ria se via um besouro dizia
um besouro, e ria; vizinhos e cunhados decretaram:
o homem estava doido; mas sua mulher assegurava
que ele apenas voltara sentimental. O astronauta
lacrimoso sentia o peito tangido de amor total
ao ver as filhas brincando de passar anel
e de melancolia ao deparar com antigas fotos
de Klushino, não aquela dos livros, estufada
de pensões e medalhas, mas sua aldeia menina,
dos carpinteiros, da lua e lobisomens,
do seu tio Pavel, de sua mãe, do trem,
de seus primos, coisas assim, luvas velhas,
furadas, que servem apenas para fazer chorar.
Era constrangedor o modo como os olhos
de Yuri pareciam transpassar as paredes
nas reuniões de trabalho, nas solenidades,
nas dicsussões de metas para o próximo ano
e no instante seguinte podiam se encher de água
e os dentes ficavam quase azuis de um sorriso
inexplicável: um velho general, ironicamente
ou não, afirmara em relatório oficial que Yuri
Gagarin vinha sofrendo de uma ternura
devastadora; sabe-se lá o que isso significava,
mas parecia que era exatamente isso, porque
o herói não voltou místico ou religioso, ficou
doce, e podia dizer eu amo você com a facilidade
de um pequeno-burguês, conforme sentença
do Partido a portas fechadas. Certo dia, contam
caiu aos pés de Octavio Paz; descuidado, tropeçara
de paixão pelas telas cubistas degeneradas de Picasso.
Médicos recomendaram vodca, férias, Marx,
barbitúricos; o pobre-diabo fez de tudo
para ser igual a todo mundo; mas,
quando parecia apenas banal, logo dizia coisas
como a leveza é leve. Desde o início,
quiseram calá-lo; uma pena; Yuri voltou vivo
e não nos contou como é a morte.
Eucanaã Ferraz
4 de novembro de 2016
chove na curva da palavra
queria ter os braços longos
para abraçar a chuva que cai sobre cidade
não os tenho
por isso estico as palavras como retas paralelas
encontro a eternidade nas palavras passageiras
consulto novamente o dicionário
como quem aprende uma língua estrangeira
estou à margem das palavras e do mundo
por isso estico os braços
como quem procura apoio
estico os braços como quem se afoga
e busca uma boia
chove na curva da palavra
há um refúgio nos dizeres das palavras
uma morte implícita na poesia
o ar se arrasta sobre a cidade lentamente
um vento frio
os relógios marcam horas repetidas
é sexta feira e chove
e o tempo já não basta para dizer tudo o que resta
os relógios marcam as mesmas horas
que marcavam sexta feira da semana passada
e a chuva cai sobre a cidade virgem
arrasta o lixo e a urina pelas ruas
já posso sentir o cheiro de urina em cada praça
nas linhas do poema o almíscar azedo invade a suposta civilização ocidental
cerveja e a urina misturados pela chuva no poema
o relógio marca horas repetidas
como o poema que usa sempre as mesmas palavras
buscando imagens novas
Salvador Passos
para abraçar a chuva que cai sobre cidade
não os tenho
por isso estico as palavras como retas paralelas
encontro a eternidade nas palavras passageiras
consulto novamente o dicionário
como quem aprende uma língua estrangeira
estou à margem das palavras e do mundo
por isso estico os braços
como quem procura apoio
estico os braços como quem se afoga
e busca uma boia
chove na curva da palavra
há um refúgio nos dizeres das palavras
uma morte implícita na poesia
o ar se arrasta sobre a cidade lentamente
um vento frio
os relógios marcam horas repetidas
é sexta feira e chove
e o tempo já não basta para dizer tudo o que resta
os relógios marcam as mesmas horas
que marcavam sexta feira da semana passada
e a chuva cai sobre a cidade virgem
arrasta o lixo e a urina pelas ruas
já posso sentir o cheiro de urina em cada praça
nas linhas do poema o almíscar azedo invade a suposta civilização ocidental
cerveja e a urina misturados pela chuva no poema
o relógio marca horas repetidas
como o poema que usa sempre as mesmas palavras
buscando imagens novas
Salvador Passos
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