A Caverna
Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes
Jean Louis Battre, 2010
Jean Louis Battre, 2010
22 de maio de 2013
Laranja Mecânica, a liberdade assistida da imaginação
O clássico ‘Laranja Mecânica’ (1971), dirigido por Stanley Kubrick, desvela desde o princípio um cenário escatológico. Em um bar alucinógeno, em meio ao qual simulacros de mulheres nuas fazem as vezes de mesas, o protagonista Alex – interpretado magistralmente por Malcolm McDowell – e seus três comparsas tomam leite mesclado a uma série de drogas sintéticas como preparação para a descarga de ultraviolência.
Londres fica premida entre as duas superpotências que regem o mundo durante a Guerra Fria. Não à toa, então, o inglês articulado pelas personagens recebe o aporte de palavras oriundas do russo. “Moloko” (leite), “devotchka” (garota), “glaz” (olho), “govorit’” (falar), “noje” (faca). A língua híbrida modula a atmosfera fílmica, como se a contraditória democracia dos Estados Unidos, democracia que faz os vietnamitas votar à base de napalm e bombas incendiárias, e a ditadura soviética, que convence os tchecos e húngaros sobre as vantagens do socialismo com tanques e AK-47, estivessem (oni)presentes entre os escombros da outrora capital da Revolução Industrial.
Alex e sua gangue entorpecida logo colidem com uma gangue rival – inusitadamente, a trupe de Alex impede que os escroques de Billy Boy estuprem uma moça no palco de um velho teatro abandonado. Quiçá uma metáfora metalinguística de Kubrick para a posição dos espectadores de ‘Laranja Mecânica’: assistimos à cena em que Alex e seus comparsas assistem ao prenúncio de estupro sobre um palco teatral. Kubrick nos torna cúmplices da profunda ruptura ética a que sua obra dá vazão. Billy Boy só não estupra a jovem porque o ímpeto de ejacular a ultraviolência contra os rivais é maior do que a vontade sexual estrita. (O filme apreende a contiguidade subterrânea entre a libido e a violência; “não matarás” e “não cometerás adultério”, historicamente, são tabus violados de forma muitas vezes concomitante durante as guerras; que nos digam os soldados que tomam seus butins de saques, assassínios e estupros com a aquiescência de seus generais cúmplices.) Mas a madrugada de pilhagens havia começado com os uivos de um mendigo bêbado e senil que, antes de ser espancado a mando de Alex, traz uma síntese para nossas cicatrizes éticas:
− Homens na Lua e homens girando ao redor da Terra! Ora, e ninguém mais presta atenção na lei e na ordem aqui embaixo!
Os astronautas americanos e os cosmonautas soviéticos representam a ponta de lança das corridas aeroespacial e armamentista. Ainda assim, Kubrick faz com que um mendigo articule os sentidos e os ressentimentos da utopia enquanto seu corpo é vergado por pauladas e chutes de coturno.
− Qual o problema de vocês? – pergunta o senhor Deltoid, o agente pós-correcional que precisa responder aos superiores burocráticos sempre que o sistema de reabilitação coercitiva não consegue devolver um ex-detento à linha de produção do cotidiano. Devolvamos a palavra ao emparedado senhor Deltoid:
− Já estudamos o problema há mais de um século, mas não fizemos progressos. Você tem um bom lar, Alex, seus pais são carinhosos. Seu cérebro não é ruim. É algum demônio que se apossa de você?
O bom lar de Alex apresenta aos espectadores uma mãe permissiva e proletária que toma comprimidos para poder ser explorada com mais eficiência na fábrica. O pai trêmulo sequer pensa em ditar a Alex o que fazer. Alex, o líder, não tem um cérebro ruim. Eis algumas leituras sublimares que a narrativa de Stanley Kubrick nos sugere como possíveis raízes para a crise. Quanto a um suposto “demônio” que se apodera de Alex, os reacionários (e) resignados dos mais diversos matizes fazem coro com relação à origem dos problemas sociais:
− Trata-se da natureza humana. Somos inequívoca e irremediavelmente maus.
O burguês ressoa seu mantra sempre que envia ao departamento de recursos humanos o relatório mensal que lista a nova leva de funcionários desempregados. Em seguida, uma partida de golfe e uma dose de 12 anos driblam os vestígios de sua consciência. Afinal, “trata-se de leis impessoais. Se eu não demitir, meu concorrente me ultrapassará; se minha empresa naufragar, não serão apenas 500 funcionários e suas respectivas famílias que passarão a ver o mundo pelo olho da rua”. Alex, o líder algo cerebral, entende a lógica burguesa. No entanto, quando o proletário quer agir segundo os mesmos princípios hedonistas, o cálculo utilitário e concorrencial não o favorece. Trabalhar (para os outros) é preciso. Sendo assim, é possível maximizar as satisfações pessoais através de atalhos. Pela interpretação de Alex, o Sermão da Montanha se converte em Sermão da Estepe:
− Vocês querem um carro? É só colher das árvores. Vocês querem uma gostosa? É só pegar.
Logo a vontade de poder de Alex colide com a polícia. De nada adiantam os estudos e as admoestações do senhor Deltoid. Alex acaba cometendo um assassinato e recebe um novo nome no presídio onde é encalacrado: 655321. (Nosso nome é mais prolixo na interminável sequência de números do CPF, a identidade que viabiliza nossa liberdade condicional.)
Em seu novo condomínio gradeado, o ardiloso 655321 logo se aproxima do padre que, por meio do Evangelho segundo Talião, tenta inculcar o medo do inferno nos detentos para fazer com que os lobos vistam peles de cordeiro. Mas o Partido, em sua sanha de atender às demandas dos eleitores para se perpetuar no poder, já tem o devido respaldo estatístico para concluir que os métodos religiosos e prisionais não mais conseguem extirpar a criminalidade. [Os esquadrões de extermínio seguem a rota da periferia (paulistana), mas ainda assim não impedem as metástases do crime.] É preciso lançar mão da revolucionária “Técnica Ludovico”, por meio da qual a ciência asfixia o ímpeto da transgressão quando o delinquente pretende executá-la. Alex se torna a primeira cobaia da técnica que utiliza uma exposição maciça de filmes de violência associada à administração de remédios. Tudo isso para estrangular a imaginação e o livre arbítrio.
Alex 655321: É engraçado como as cores do mundo real só parecem realmente reais quando você as vê numa tela.
A ficção se apodera autoritariamente da realidade e a converte no espetáculo da realidade ficcional. Assim, as frustrações de uma sociedade estruturada sobre a escassez da abundância desigual, a competitividade e o isolamento em meio à massa podem ser canalizadas para a arte rebaixada a entretenimento. A transformação ficcional pressupõe a manutenção da realidade tal como ela circunda a sala de cinema. A tensão se estabelece quando nos damos conta de que o belo filme de Kubrick desenvolvido no coração de Hollywood questiona de maneira crítica (e algo cínica) a erradicação da criminalidade aliada à impossibilidade de agir com liberdade. A “Técnica Ludovico” causa uma náusea profunda e, no limite, um ímpeto suicida naquele que pretende cometer um crime. Assim, Caim deixará de matar seu irmão Abel não pelo fato de não querer fazer o mal, mas por não mais poder agir livremente. Mas eis que o padre irrompe e retoma as vestes da inquisição para colocar o primeiro ministro contra a parede:
− A bondade vem de dentro, ela deve ser fruto de escolhas. Mas, ora, o rapaz na verdade não tem escolha! Ele deixa de ser um malfeitor, mas também deixa de ser uma criatura capaz de escolhas morais.
Eis que o primeiro ministro, após pedir a bênção, esboça uma réplica às críticas sacras:
− Padre, isso são sutilezas. Não estamos preocupados com as éticas elevadas, mas apenas com a diminuição da criminalidade e com a solução para a superlotação de nossas prisões. (Palmas entusiasmadas da plateia de correligionários.) Alex 655321 será o seu verdadeiro cristão pronto a oferecer a outra face, pronto a ser crucificado em lugar de crucificar, profundamente enojado pela ideia de matar até mesmo uma mosca! Redenção, alegria ante os anjos de Deus... E o importante é que a técnica funciona!
O importante é que a realidade funcione, isto é, que se (re)produza através e a despeito de nós mesmos. Os princípios da “Técnica Ludovico” permanecem atualíssimos, se pensarmos que, em nosso cotidiano de liberdade assistida, já não é preciso haver camisas-de-força. A Guerra Fria se foi, já não há antíteses efetivas para o capitalismo de massas. As trombetas dos apologistas ressoam o fim da história. Assim, a imaginação é arregimentada e emoldurada desde o nascimento do olhar. Laranja Mecânica nos faz refletir sobre a introjeção das grades do presídio, sobre o princípio autoritário que aposenta o carrasco para dar lugar à violência etérea e espetacular da indústria cinematográfica – e publicitária. Quando houver um desvio chamado Stanley Kubrick a narrar e a questionar os limites impostos à criatividade, Hollywood logo lhe dará um Oscar e, em meio ao mar de mediocridade que dialoga com a (de)formação do público consumidor, os produtores e investidores converterão a aguda crítica social do filme em ficção sem efetivo enraizamento na realidade.
− Mera imaginação! – sentencia o inventor da “Técnica Ludovico”. Qualquer semelhança com a realidade é mera reincidência.
*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
Retirado da Carta Maior
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