A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

11 de agosto de 2016

Reino dos bichos e dos animais é o meu nome

Picture 11

Stela do Patrocínio nasceu em 1941, e viveu, desde 1962, internada na Colônia Juliano Moreira, assim como Arthur Bispo do Rosário (1911 - 1989). Sua fala poética chegou a nós transcrita de cassetes por Viviane Mosé, que organizou essa textualidade no volume Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2002).


O trabalho de Stela do Patrocínio, em sua fala poética, chamou a atenção de vários artistas, como Georgette Fadel, Juliana Amaral e Lincoln Antonio, que encenaram com seus textos o espetáculo "Entrevista com Stela do Patrocínio" (São Paulo, 2005), e o documentarista Márcio de Andrade, que preparou o documentário Stela do Patrocínio - A mulher que falava coisas. Num país como o Brasil, machista e racista, não é de admirar que a poesia de uma mulher negra e tida como louca não tenha tido mais atenção, com sua textualidade que por vezes nos leva a uma forma de logopeia pelo viés da loucura.

FALATÓRIO DE STELA DO PATROCÍNIO

Ainda era Rio de Janeiro, Botafogo
Eu me confundi comendo pão
Eu perdi o óculos
Ele ficou com o óculos
Passou a língua no óculos para tratar o óculos com a língua
Ela na vigilância do pão sem poder ter pão
Essa troca de sabedoria de ideia de esperteza
Dia tarde noite janeiro fevereiro deszembro
Ficou pastando no pasto à vontade
Um homem chamado cavalo é meu nome
O bom pastor dá a vida pelas ovelhas

§

Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam para nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo deles
§

É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo


§

Meu nome verdadeiro é caixão enterro
Cemitério defunto cadáver
Esqueleto humano asilo de velhos
Hospital de tudo quanto é doença
Hospício
Mundo dos bichos e dos animais
Os animais: dinossauro camelo onça
Tigre leão dinossauro
Macacos girafas tartarugas
Reino dos bichos e dos animais é o meu nome
Jardim Zoológico Quinta da Boa Vista
Quinta da Boa Vista

§

Eu sei que você é uma olho
Uma espiã que faz espionagem
É um fiscal um vigia também
É uma criança prodígio precoce poderes
Milagre mistério
É uma cientista
Já nasce rica e milionária


§

Só depois de relação sexual é que eu posso
carregar tudo pela língua e pela boca


§

Tinha terra preta no chão
Um homem foi lá e disse
Deita aí no chão pra mim te foder
Eu disse não
Vou me embora daqui
Aí eu saí de lá vim andando
Ainda não tinha esse prédio
Não tinha essa portaria
Não tinha esse prédio
Não tinha essa portaria

Não via tinta azul pelas paredes

A parede ainda não era pintada de tinta azul
§
Nasci louca

Meus pais queriam que eu fosse louca

Os normais tinham inveja de mim

Que era louca
§
Eu já fui operada várias vezes
Fiz várias operações
Sou toda operada
Operei o cérebro, principalmente
Eu pensei que ia acusar
Se eu tenho alguma coisa no cérebro
Não, acusou que eu tenho cérebro
Um aparelho que pensa bem pensado
Que pensa positivo
E que é ligado a outro que não pensa
Que não é capaz de pensar nada e nem trabalhar
Eles arrancaram o que está pensando
E o que está sem pensar
E foram examinar este aparelho de pensar e não pensar
Ligados um ao outro na minha cabeça, no meu cérebro
Estudar fora da cabeça
Funcionar em cima da mesa
Eles estudando fora da minha cabeça
Eu já estou nesse ponto de estudo, de categoria

Stela do Patrocínio

Nenhum comentário:

Postar um comentário