A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

23 de dezembro de 2016

o poeta acorda

o poeta acorda
escova os dentes
troca de roupa
sente dores por conta da idade avançada
o poeta escreve, chora, rí, esquece

olha as mãos já trêmulas
sente a noite e suas entranhas
olha a rua vazia
escuta ecos distorcidos de outras épocas

o poeta não escolhe as palavras
elas lhe são impostas pelo mundo
pela força gravitacional do corpo
e seu desassossego inerente,
inerte no lugar que ocupa
inevitável,
como a língua que ele habita feito hábito
como quem toma café todas as manhãs
como a morte: este peso nas cabeças

o poeta recolhe o resto das inércias
exerce o peso dos esquecimentos
tropeça nas fadigas
escolhe as horas mortas entre os pontos esquecidos
marca as margens derradeiras
e não desiste dos fracassos

Salvador Passos

sargaço

sonhava com os teus trajetos

marcos
            rumos
                       traços

passos pela escuridão do quarto
tatos mansos
cegos de nascença
que renegam a visão
como profana maldição
somos só pedaços do escuro
peixes num aquário mudo
madrugada aberta nas janelas surdas
um ballet em braile suicida

naus que se arremessam
contra as pedras
rochas
que se escondem sob as ondas

braços
           bocas
                      e naufrágios

rastros do teu cheiro
no sargaço
& noturnas praias à espreita

poros
           pelos

frêmitos abertos sob a chuva fina que ameaça o dia

acordar é um mistério
nossos corpos remam
contra a maré da noite
prolongando a renúncia das palavras
que apenas rimam incompletas

nos tornamos escafandros
bruscos
habitando fendas
âmagos
náufragos renunciando ao fôlego incompleto das palavras
somos plenos órgãos
únicos
ungidos pelo infinito
sangramos o sagrado
pelas mãos
sem pregos

gestos cegos
que exploram
a imensa noite que naufraga
lanças
penetrando oceanos esquecidos
breves mortes
terra conquistada e logo abandonada

frágil morte assim sonhada
delicada pálpebra esquecida
sangra a noite em seu eterno pranto
breve morte que renasce cega
mar cerrado
nomes sussurrados
vento que começa no vazio
e termina sem palavras

Salvador Passos

Lição de Casa



enumeração

as ruas da cidade ampliavam-no
era variado pelas caminhadas
mordia as vitrines nas esquinas
sentia o sabor da morte repetida
o vento das palavras esquecidas
masturbava sonhos no engarrafamento
abismava buracos na calçada
soletrava os solavancos do silêncio
chovia verbos e lambia a urina das calçadas
cansava a tarde entre os prédios
dormia outras mortes
acordava outras vidas
apostava versos pelas praças
pernoitava esquinas soltas
resgatava sóis noturnos
descolonizava os delírios

Salvador Passos

21 de dezembro de 2016

Julho (Uma Introdução)



Essa nossa cidade drives the people
A gente tem vontade de pegar o 436 grajaú pra ir ver a rosa weber, rosa luxemburgo, rosa rosa
Mas o sistema público de transporte
não é rima, não tem graça
e nem é solução
Pra esse tipo de vontade

Eu agradeço a essa vontade
porque ela, viva,
continua viva
a cidade,

Apesar de

A cidade está tão perigosa
A cidade está tão cara
Ela disse
Eu tenho medo de sair depois de escurecer e não saber voltar pra casa

Você tem que aprender
que a vida sempre é
Apesar de

Aqui da fila do banco pensar no mar é
O momento de luxo prensado entre o edifício e o automóvel
O assalto ao apartamento no alto Leblon
O perigo

Aqui,
onde o carpete é grama brotada azul e crespa
regada a ar condicionado e insulfilm roxo

Dá pra ver que certa estava minha tia avó tereza,
Que me ensinou a pegar o ônibus sozinho pra ir pra escola e a pisar no pé das pessoas que não me deixassem passar quando chegasse o ponto

A violência
Vive junto com a cidade, no meio da cidade, por dentro
A cidade somos nós, a violência são os outros

Mal sabiam eles
que o paraíso
são os outros

Mas
É verão no Rio de Janeiro
O relógio marca sete horas
e ainda faz sol
A felicidade não é
Mas é quase como se fosse

E hoje, pelo menos até umas seis,
Parece que a vida aqui ainda é
E que talvez até mereça
E que talvez ainda por cima valha a pena
Continuar sendo

Mesmo que
Muitas vezes ela seja só
Como se fosse

Pedro Sodré e Lucas van Hombeeck


8 de dezembro de 2016

kansai street food

1. kansai street food
kansai 2032
o retrowave está morto e placas
de trânsito são uma mentira recorrente

nós
enquanto jovens
pressionamos a
ponta dos dedos contra o nariz dos desconhecidos
(we can’t wait for this wonderful celebration of brazilian culture )

não é nossa culpa
esses sintetizadores ainda
persistentes
na paisagem morta da
                                          pequena kansai

2. make torey pudwill great again
quando as tuas e as
minhas artérias forem inevitáveis
transmissores de sinal AM

teremos mais infinidades
a postos         e muros a erguer
                    an endless ledge on the way
tudo o mais será por falta de velas,
todo o fracasso que possa
nos ocorrer

3. lohanne vekanandre stephanie smith bueno hahaha de raio laser bala de icekiss
        (...) aqui é onde as ideologias vêm para morrer
        O hippie malcriado cheirando cocaína em notas de 20
        tudo isso me lembra uma comédia do michael cera, the vegetable
Police
        um jogo de pôquer em que apostamos a nossa dignidade
// CANÇÕES DE PROTESTO S/A
        we are the victims of
a new form of lscknewfsca

        aqui é onde as ideologias vêm para morrer (...)

Italo Dantas

5 de dezembro de 2016

trago em meus joelhos

trago em meus joelhos
o testemunho das quedas passadas
e os olhos enfermos da noite

sou uma saudade envelhecida
onde deuses construíram um abismo

cada músculo do meu corpo
é uma ilha feita de cicatrizes
todas banhadas na nossa antiga desordem

as sílabas destes versos ainda chamam teu nome
vocábulo feito guilhotina escrito na calçada de casa
tumor animal que não curei

que fiquei com tua mandíbula irrepetível em meus seios
estou sempre onde poderia ter sido

o meu sangue, uma geografia acidentada
onde eu mesma mal respiro
onde, na tontura, transbordamento e vazio
se confundem

a cada noite eu temo que não amanheça
mas há pássaros que cantam no meu temor
sinto que estou grávida de tantos sóis

não importa como, sempre haverá a queda
cancro que nunca sara, nunca se despede

ontem a noite,
martelei uma Olivetti até que nela aparecesse minha própria ruína
sei que agora posso ser noite sem o terror de doer.

Raquel Gaio

3 de dezembro de 2016

Chacina never stops

troia destruída, restam-nos
as ruínas de Bagdá, chuva de mísseis,
capacetes made in united states
of américa, mãos decepadas e olhares
que ainda miram lugar nenhum, talvez
a névoa sob um céu de escombros,
picotada por rajadas de fuzis fabricados
numa pacata cidadezinha do texas,
moloch esculpido na retina intacta, dervixe
do terror com os olhos vazados, crucifixos
radiativos lançados sobre cabul
por um helicóptero ianque, pearl jam,
iron maden e nirvana a todo volume
no headphone do soldado imberbe, casas
incineradas, embaixadas fumegando,
sonhos da noite passada retalhados
antes que a luz do sol pudesse
iluminar o caminho de volta, o retorno
a uma ítaca estampada nas páginas
de um gibi amarelado, ou de um jornal
que embrulha o peixe na feira, ante
o espanto da velhinha aposentada
que sempre se queixa da alta dos preços
 
Ademir Assunção
(do livro "A voz do ventríloquo", Edith)

1 de dezembro de 2016

sargaço

sonhava com os teus trajetos
marcos
rumos
traços
passos pela escuridão do quarto
tatos
mansos
cegos de nascença
que renegam a visão
como profana maldição
somos só pedaços do escuro
peixes num aquário mudo
madrugada aberta nas janelas surdas
num ballet em braile suicida

naus que se arremessam
contra as pedras
rochas
que se escondem sob as ondas
braços
bocas
e naufrágios
rastros do teu cheiro
no sargaço
em noturnas praias à espreita
poros
pelos
frêmitos abertos
sob a chuva fina que ameaça o dia

acordar é um mistério
que não faz sentido
nossos corpos remam
contra a maré da noite
prolongando
a renúncia das palavras
que apenas rimam
incompletas

nos tornamos escafandros
bruscos
habitando fendas
âmagos
náufragos renunciando ao fôlego

somos plenos órgãos
únicos
ungidos pelo infinito
sangramos o sagrado
pelas mãos
sem pregos

gestos cegos
que exploram a imensa noite que naufraga
lanças
penetrando oceanos esquecidos
breves mortes
terra conquistada
e logo abandonada

frágil morte assim sonhada
delicada pálpebra esquecida
sangra a noite em teu eterno pranto
breve morte que renasce cega
mar cerrado
nomes sussurrados
vento que começa no vazio
e termina sem palavras





Salvador Passos

22 de novembro de 2016

medusa mascarada

cidade
sopro aberto
corpo de artérias

carne claustrofóbica
berro de desertas vidas
veias
veios
rios
rochas cegas

chaga infectada
trincheira adormecida
miragem imolada
horizonte amputado
multidão insone tropeçando nas palavras
trens cheios de gente

medusa mascarada
serpente intocada do idioma alheio
infinita ilha babilônica
moinho de atrair delírios
 
argamassa elétrica de arrastar tragédias
epiderme tectônica 

ar que arranha o vidro
olho sem colírio
noturno monolito
ícaro de algum sol invertido

dédalo perdido 
arquitetura de gargantas mortas
engrenagem enferrujada
tarde gangrenada
sal que marca 
e arde na ferida aberta
margem que devora os mares
esperma de palavras brutas
lugar de exílio dos poetas

âmago inerte do quarto círculo do inferno
trânsito sonâmbulo do carbono

escafandros bruscos de perdidos hemisférios
mar que arrasta troços

e traz de volta 
os destroços do naufrágio
submersas multidões 

e o fôlego oprimido de tantas Áfricas  
 
Salvador Passos

7 de novembro de 2016

Matinê



Às vezes saio do cinema
E me ponho a andar
Cartografias pessoas
Apenas olhar
Ter a leve impressão
De que a cidade está grávida
De um outro lugar

Marcelo Montenegro

El laberinto de la soledad

Yuri viu que a Terra é azul e disse a Terra é azul.

Depois disso, ao ver que a folha era verde disse

a folha é verde, via que a água era transparente

e dizia a água é transparente via a chuva que caía

e dizia a chuva está caindo via que a noite surgia

e dizia lá vem a noite, por isso uns amigos diziam

que Yuri era só obviedades enquanto outros

atestavam que tolos se limitavam a tautologias

e inimigos juravam que Yuri era um idiota

que se comovia mais que o esperado; chorava

nos museus, teatro, diante da televisão, alguém

varrendo a manhã, cafés vazios no fim da noite,

secos de carvão; a neve caindo, dizia é branca

a neve e chorava; se estava triste, se alegre,

essa mágoa; mas ria se via um besouro dizia

um besouro, e ria; vizinhos e cunhados decretaram:

o homem estava doido; mas sua mulher assegurava

que ele apenas voltara sentimental. O astronauta

lacrimoso sentia o peito tangido de amor total

ao ver as filhas brincando de passar anel

e de melancolia ao deparar com antigas fotos

de Klushino, não aquela dos livros, estufada

de pensões e medalhas, mas sua aldeia menina,

dos carpinteiros, da lua e lobisomens,

do seu tio Pavel, de sua mãe, do trem,

de seus primos, coisas assim, luvas velhas,

furadas, que servem apenas para fazer chorar.

Era constrangedor o modo como os olhos

de Yuri pareciam transpassar as paredes

nas reuniões de trabalho, nas solenidades,

nas dicsussões de metas para o próximo ano

e no instante seguinte podiam se encher de água

e os dentes ficavam quase azuis de um sorriso

inexplicável: um velho general, ironicamente

ou não, afirmara em relatório oficial que Yuri

Gagarin vinha sofrendo de uma ternura

devastadora; sabe-se lá o que isso significava,

mas parecia que era exatamente isso, porque

o herói não voltou místico ou religioso, ficou

doce, e podia dizer eu amo você com a facilidade

de um pequeno-burguês, conforme sentença

do Partido a portas fechadas. Certo dia, contam

caiu aos pés de Octavio Paz; descuidado, tropeçara

de paixão pelas telas cubistas degeneradas de Picasso.

Médicos recomendaram vodca, férias, Marx,

barbitúricos; o pobre-diabo fez de tudo

para ser igual a todo mundo; mas,

quando parecia apenas banal, logo dizia coisas

como a leveza é leve. Desde o início,

quiseram calá-lo; uma pena; Yuri voltou vivo

e não nos contou como é a morte.

Eucanaã Ferraz

4 de novembro de 2016

chove na curva da palavra

queria ter os braços longos
para abraçar a chuva que cai sobre cidade
não os tenho
por isso estico as palavras como retas paralelas
encontro a eternidade nas palavras passageiras
consulto novamente o dicionário
como quem aprende uma língua estrangeira
estou à margem das palavras e do mundo
por isso estico os braços
como quem procura apoio
estico os braços como quem se afoga
e busca uma boia

chove na curva da palavra
há um refúgio nos dizeres das palavras
uma morte implícita na poesia
o ar se arrasta sobre a cidade lentamente
um vento frio
os relógios marcam horas repetidas
é sexta feira e chove
e o tempo já não basta para dizer tudo o que resta
os relógios marcam as mesmas horas
que marcavam sexta feira da semana passada
e a chuva cai sobre a cidade virgem
arrasta o lixo e a urina pelas ruas
já posso sentir o cheiro de urina em cada praça
nas linhas do poema o almíscar azedo invade a suposta civilização ocidental
cerveja e a urina misturados pela chuva no poema

o relógio marca horas repetidas
como o poema que usa sempre as mesmas palavras
buscando imagens novas

Salvador Passos

28 de outubro de 2016

Arrastão 3

1)

sinto meus braços
acenando para
místicas peregrinações

A cidade cresce
desenha e apaga
a superfície negra
que não dorme

O muro cresce
por trás da cortina
está vivo

o ninho feito no teu colo
Era meu território

Sonhava que era tudo nosso
simultaneamente

Há um resíduo de futuro
na avenida
entre carros e caminhões
parados
banhados pela tarde
acenando para
minha carne

Sou meu próprio vizinho
por isso eu respiro
a tradução do poema chileno

 Salvador Passos

2)

na avenida
entre carros e caminhões
parados
banhados pela tarde
sinto meus braços
acenando para
místicas peregrinações
dizendo

minha carne

é quando vem à tona
a tradução do poema chileno

Salvador Passos

3)

na avenida
entre carros e caminhões
parados
banhados pela tarde
sinto meus braços
acenando para
místicas peregrinações
dizendo:

Sou meu próprio vizinho


Salvador Passos

4)

sinto meus braços
acenando para
místicas peregrinações
dizendo:

Sou meu próprio vizinho
por isso eu respiro
a tradução do poema chileno

o ninho feito no teu colo
Era meu território

Sonhava que era tudo nosso
simultaneamente

Salvador Passos


Boletim de Ocorrência: Inventário dos Versos Subtraídos


a lágrima

a glândula a carrega            cega
( como na ostra a pérola )
( como no arco a seta )
o sal na medida certa
( no escuro        algo coagula )
pedra
até que a concha da pálpebra
abra
é quando a gota vem à tona )
( fria e quente
( simultaneamente

mapa de tesouro

menino vestido de pirata
eu sei que os carnavais
têm sua graça

por isso eu respiro
engraçado

quanto te vejo
sinto meus braços

acenando para
navios parados

Desmembramento de um semicírculo

Certo que nos dedicamos
a místicas peregrinações.
Exercitamos a respiração,
lutamos brigas orientais,
praticamos uma e sete vezes
a tradução do poema chileno.
Mas no fundo sabemos
que o que importa mesmo
é roçar a superfície negra
da pele do peito do anjo
que está vivo
que não dorme

Campo Limpo Taboão

Quando nasci tinha seis anos.
No lugar em que nasci,
Sonhava que era tudo nosso.
Tinha os campinhos e os terrenos baldios.
Era meu território.
Já foi interior,
Hoje periferia com as casas cruas.
As vacas com tetas gruas
Não existem mais.
A cerca virou muro. Óbvio.
A cidade cresce.
O muro cresce.
Vieram os prédios, as delegacias, os puteiros
E as Casas Bahia.
Também cresci,
Fiquei grande.
Já não caibo dentro de mim
E de tão solitário
sou meu próprio vizinho.
E de tão solitário
Sou meu próprio vizinho

mnemo

Há um resíduo de futuro
no vento, fotograma ante-
cipado, montagem de fragmentos
induzindo à cena. Como
aquela árvore se curvando com-
placente aos invisíveis pesos,
como o mormaço
predizendo chuva. Repito,
há um canto anterior
a qualquer canto, uma réstia,
um eco primeiro, como um som
que ressoa por dentro de cada
palavra, como todo gesto se
desenha e apaga, então
novamente. Há o revés,
o diáfano, o termo, beleza
posta e perdida, o desen-
cadeamento, assim
como a sede do vapor
por uma forma, assim
como tudo retorna
à imaginação
por trás da cortina
da memória.

[alçar voo]

alçar voo
na avenida
entre carros e caminhões
banhados pela tarde
como um falcão mirando
o ninho feito no teu colo
me perguntando
por que ainda gosto tanto do sol
rascunho uma resposta
dizendo:
é por causa da vitamina d
mas logo risco
eu gosto do sol
porque ele marcou
minha carne

27 de outubro de 2016

julgamento

Não é sua tarefa tentar dirigir - isso apenas o desviaria de seu caminho - e sim se deixar conduzir. Se ele souber enfrentar o destino como uma atitude de aceitação, certamente encontrará a orientação correta.

I Ching ou Livro das Mutações

26 de outubro de 2016

Instruções para dar Corda no Relógio

Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.

Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não correm, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.

Julio Cortázar

24 de outubro de 2016

Arrastão 2

esquecerei minha infância
no elevador entre o décimo e o nono andar e até
tenho miojo e a tv aberta
badalação conta bancária — nadas

o açúcar da sua voz
me roubou a bolsa e com o choque tive amnésia
não lembrarei o meu nome

na última hora disse que ia para o havaí
na praia
ouviria o tumulto
do mar
pedindo esmola e perdão

Se eu encostasse
meu ouvido
no meu peito
ouviria o tumulto
e as escadas magírus
ditando este e-mail para minha vizinha

adiós muchacha

isso é pra você que insiste esquecer o guarda-chuva só pra ter a esperança de um dia voltar atrás

não sairá dos meus ossos
(can’t you see?)

Salvador Passos




Boletim de Ocorrência: Inventário de versos subtraídos



Minas

Se eu encostasse
meu ouvido
no seu peito
ouviria o tumulto
do mar
o alarido estridente
dos banhistas
cegos de sol
o baque
das ondas
quando despencam
na praia

Vem
escuta
no meu peito
o silêncio
elementar
dos metais

querida angélica

querida angélica não pude ir fiquei presa
no elevador entre o décimo e o nono andar e até
que o zelador se desse conta já eram dez e meia

querida angélica não pude ir tive um pequeno
acidente doméstico meu cabelo se enganchou dentro
da lavadora na verdade está preso até agora estou
ditando este e-mail para minha vizinha

querida angélica não pude ir meu cachorro
morreu e depois ressuscitou e subiu aos céus
passei a tarde envolvida com os bombeiros
e as escadas magírus

querida angélica não pude ir perdi meu cartão
do banco num caixa automático fui reclamar
para o guarda que na verdade era assaltante
me roubou a bolsa e com o choque tive amnésia

querida angélica não pude ir meu chefe me ligou
na última hora disse que ia para o havaí
de motocicleta e eu tive que ir para o trabalho
de biquíni portanto me resfriei

querida angélica não pude ir estou num
cybercafé às margens do orinoco fui sequestrada
por um grupo terrorista por favor deposite
dez mil dólares na conta 11308-0 do citibank
agência valparaíso obrigada pago quando voltar

Poesia e Realidade

o açúcar da sua voz
não sairá dos meus ossos —

minha vida será triste
perderei os meus amigos

venderei minha família
por um copo de cachaça

vagarei pelas cidades
pedindo esmola e perdão

esquecerei minha infância
não lembrarei o meu nome

morrerei como indigente
não serei reconhecido

meu corpo cheio de escaras
será jogado no mar —

o açúcar da sua voz
não sairá dos meus ossos


elogio do fracasso
bye bye mecenas que eu nunca vi
patronos bancos prizes marmeladas
adiós muchachas
            ninfas depiladas
iates vulvas
     que sequer comi

sayonara sucesso
            (can’t you see?)
badalação conta bancária — nadas
que tudo me dariam nas bancadas
da glória em cosmopolitan party

fico tranquilo
            a fome é coisa pouca
tenho miojo e a tv aberta
não deixa que eu me perca
                   em zap a esmo

penhoro o notebook
            corto a coca
dispenso a secretária
                    (é a coisa certa)
e fico de office-boy para mim mesmo



inverno dentro dos tímpanos

Isso é pra você que é um desses caras fumando o último cigarro do maço antes de atravessar a Rua dos Pingüins Tristonhos. É pra você que insiste esquecer o guarda-chuva só pra ter a esperança de um dia voltar atrás. É pra você que come cheeseburguers com recheio de neve e catchup esperando a noite chegar num banco qualquer de uma praça chamada No Meio do Nada. É pra você que cruza a Rodovia do Café dentro dum ônibus voltando da Cidade Industrial por volta da 23:45, carregando uma sacolinha cheia de desilusão. É pra você que é aí das quebradas e tem o tórax inchado e os olhos melados ganindo pra lua com intervalos peripatéticos de tosse. É pra você que espera os créditos acabarem antes de sair do filme. Isso é pra você em quem os analgésico não fazem mais efeito.