RIO - Em setembro de 2011, o antropólogo americano David Graeber estava no grupo que planejou um acampamento coletivo no Parque Zuccotti, em Nova York, para protestar contra a desigualdade econômica. Foi o início do movimento Occupy Wall Street, que nos meses seguintes mobilizou milhares de pessoas e colocou em circulação slogans como “Nós somos os 99%”. Até então um acadêmico pouco conhecido, autor de uma pesquisa de campo no arquipélago africano de Madagascar, Graeber havia publicado meses antes o livro “Dívida: os primeiros 5.000 anos” (Três Estrelas), que se tornou um inesperado best-seller ao retratar a história da economia do ponto de vista da relação entre credores e devedores. Graeber falou ao GLOBO por e-mail sobre o livro, que chega ao Brasil ao mesmo tempo que “Um projeto de democracia” (Paz & Terra), seu ensaio sobre a história e o legado do Occupy Wall Street.
Em
“Dívida”, você diz que “a dívida dos consumidores é a força vital da economia e
a dívida externa é o tema central da política internacional”. Como a dívida se
tornou o centro das relações econômicas e quais são as consequências disso?
Estamos
acostumados a pensar que o sistema de crédito é relativamente recente. A
história padrão é que primeiro veio o escambo, depois o dinheiro físico e, só
então, o crédito. Na verdade, parece ter acontecido o oposto. O crédito veio
antes. A moeda foi inventada bem mais tarde, talvez dois mil anos depois das
primeiras transações de crédito conhecidas. E o escambo — do tipo “eu te dou 20
galinhas em troca dessa vaca” — só ocorre mesmo de forma ampla em lugares onde
as pessoas estão acostumadas a usar dinheiro, mas de uma hora para outra perdem
o acesso à moeda. Então, desse ponto de vista, crédito e dívida sempre
estiveram no centro da economia. E o que o registro histórico revela é que hoje
estamos fazendo tudo errado. Normalmente, em períodos dominados pelo crédito, são
criadas instituições para proteger os devedores: os reis divinos da Mesopotâmia
que anistiavam dívidas ou leis medievais antiusura, por exemplo. Do contrário,
aqueles que têm o poder de criar crédito acabam dominando todo mundo. E agora,
o que fazem? O exato oposto. Instituições como o FMI protegem credores contra
devedores. O resultado é previsível: uma série sem fim de crises da dívida.
Você
viveu em Madagascar e costuma citar o país como exemplo das contradições da
dívida externa. Como sua experiência lá influenciou suas reflexões sobre a
dívida?
Madagascar
foi conquistado pela França, em teoria, porque não conseguia pagar suas
dívidas. Um jovem príncipe inocente assinou um tratado prometendo concessões de
livre comércio e, quando se tornou rei e tentou implementá-lo, foi derrubado.
Então o governo francês exigiu indenização e, como Madagascar não pôde pagar,
decidiu invadir o país. Mas mesmo depois de a França ter explorado o país por
65 anos e da conquista da independência, Madagascar ainda devia dinheiro à
França! Como aconteceu isso, e não o contrário? Como o resto do mundo aceitou
isso?
No livro
você fala sobre a “dimensão moral” da dívida. Como ela funciona?
Dívida
sempre foi uma questão de poder. Os verdadeiramente poderosos só precisam pagar
suas dívidas se quiserem. Donald Trump faliu várias vezes — quem liga? Olhando
para a História, o mais perturbador é o grande poder moral que a dívida tem
para fazer relações de dominação violenta parecerem moralmente justificáveis e,
mais que isso, para fazer parecer que a culpa é da vítima. E as pessoas aceitam
isso. Mesmo quando eu falava do colapso do sistema de saúde em Madagascar
causado pelos ajustes econômicos, e das mortes que isso provocou, se eu
sugerisse que a dívida do país deveria ser abolida, mesmo os mais liberais
diziam: “Mas eles pegaram dinheiro emprestado! Eles têm que pagar”. E eu estava
falando da morte de milhares de crianças. Esse é o poder da dívida.
Você já
disse que muitos participantes do Occupy Wall Street eram “refugiados da
dívida”. Como a dívida fomentou os protestos?
Não fazíamos
ideia de quem iria aparecer quando planejamos as ações no Parque Zuccotti.
Vieram milhares de jovens que não conhecíamos, então alguns dos organizadores
começaram a fazer entrevistas. A surpresa foi como a história deles era
parecida. “Estudei duro, entrei numa boa universidade, fiz um empréstimo porque
era necessário. Mas de repente os agentes financeiros quebraram a economia com
seus negócios escusos e não havia mais empregos. Eles foram socorridos pelo
governo, mas eu não fui socorrido. O governo vai assegurar que eles me tirem
cada centavo, ainda que não haja emprego algum porque eles quebraram a economia
e, como resultado, vou ter que passar o resto da vida escutando que sou
caloteiro e imoral porque devo dinheiro a eles. Isso não é justo”
Quais
foram as contribuições do Occupy para o debate público?
Fizemos
os americanos discutirem classes sociais outra vez. Desde quando isso não
acontecia, os anos 1930? E não só isso, mas também poder de classe — esse é o
significado do 1% e dos 99%. O 1% é a fração que não apenas detém o lucro do
crescimento econômico, mas também faz a maior parte das contribuições de
campanha, portanto consegue transformar sua riqueza em poder político e usar
esse poder para aumentar sua riqueza. Por isso nos recusamos a participar do
processo político, da forma como está ele é apenas suborno institucionalizado.
Se não fosse o Occupy, acredito que em 2012 teríamos tido um presidente Romney
(lembre-se que no início da campanha a experiência dele em Wall Street era
considerada uma vantagem). E veja o que acontece em 2016. Nos dois partidos (Democrata
e Republicano) há grandes rebeliões que, de formas muito diferentes, se
insurgem contra a corrupção do sistema político.
Depois
dos protestos antiglobalização dos anos 1990 e do movimento Occupy, no início
deste década, quais são as frentes atuais da luta contra a desigualdade?
Acredito
que, desde 2011, houve um realinhamento da compreensão sobre o que significa um
movimento democrático. Não é mais possível pensar em democracia como apenas
partidos políticos assumindo governos. Tem que significar algo mais, algo que
opere também fora do Estado. Isso é verdade na Bósnia, em Hong Kong, no Praça
Taksim (Istambul), ou mesmo em lugares como Rojavia, na Síria, que estão
fazendo experiências com democracia direta. Está claro que o sistema existente
atingiu um ponto de ruptura. Para mim, a grande questão é o renascimento da
imaginação econômica, política e social, porque a única sustentação do capitalismo
nas últimas décadas, quando perdeu fôlego como força de progresso econômico,
foi barrar a imaginação, dizer às pessoas que nada além disso é possível. Acho
que precisamos usar muito nossa imaginação, e rápido, ou estaremos em apuros.
Sobre o filme: A revolucao ao contrario
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