A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

31 de março de 2017

esfinge de cimento

What sphinx of cement and aluminum bashed their skulls and ate up their brains and imagination?
Howl (Allen Ginsberg)

ando pelo brusco âmago
das feridas postergadas

escafandro das noturnas horas
soletrando a sombra de um sol insone

mil janelas cegas
trono de assombros 
moloch tectônico

lápides desertas que se erguem
na eterna noite dos milênios
trump tower

rachaduras no estranho monolito do ocidente

Salvador Passos

30 de março de 2017

percebe o enrijecimento da musculatura

percebe o enrijecimento
da musculatura,
das asas e das nadadeiras.
percebe que suas articulações
couberam perfeitamente num conto do murilo rubião.
e como uma lava-pé entusiasmada
com a formação da sua mandíbula
lê poemas no centro de uma caosfera,
lê poemas neste calabouço
arquitetonicamente barulho e cor da urbano-cidade.
lê poemas
seja na esmerilhadeira ou
na bicheira canina,
mesmo com gagueira, teimosia e cacofonia,
lê poemas
no aparelho de quimioterapia, na linha de produção fabril,
sem tímpanos, sem amígdalas,
sem colete e sem capacete;
lê poemas;
este mantimento, este armamento, estas ferramentas
usadas pelas trezentas e sessenta e cinco detentas
que escavaram um túnel de fuga da veia aorta
até a palavra resiliência.


Matheus José Mineiro

29 de março de 2017

Até quando

O amanhã fará estourar tempestades de eclipses da lua
ou jorrar relâmpagos de sódio
quando o verás como um vagão de gado
semelhante a um amontoado de polícias na neve
que queria comê-los
ou quando o chamarás como um fantasma
que te pela ovos duros como a Lista Telefônica
tão magra hoje em dia que parece um guarda-pó
que perdeu seus óculos como um mar que vê afundar
   sua ilha
O amanhã não é um ramo de azevinho numa cápsula
  de obus
O amanhã não é um almoço a preço fixo como um
  gafanhoto
nem um sorriso de zeladora que inveja a sorte dos
  arengues no seu caixote
nem um desfile de escoteiros conduzidos por uma
  bênção numa cueca
nem a erva que brota entre as pedras do calçamento
  envergonhadas de não estarem penduradas
  no pescoço de um afogado
mas se quiseres o amanhã é brilho entre os trilhos
  dos bondes
a noite
enquanto as manadas de escaravelhos vermelhos com
  olhos de siamês
murmuram a meus ouvidos como um pato exausto
Rosa foge Rosa foge
O amanhã jorrará do deserto como um oásis flutuante
onde as pedras gritam aos berros
Eu te vi bandeira de carvão com estrelas azuis


Benjamin Péret

28 de março de 2017

há pessoas que só querem ser vizinhos

há pessoas que só querem ser vizinhos
ler diariamente seus horóscopos
amarrar sapatos antes de sair de seus apartamentos
subir e descer nos elevadores

raramente abrem as cortinas
alegam sofrer de dolorosa artrite
não escutam o naufrágio em cada esquina 
sentem-se seguros com seus extintores
nunca assoviam nas escadas
prendem uma corda imaginária
em seus finos tornozelos
sentem frio no inverno
ligam seus ventiladores no verão
confundem sono com insônia

carregam sob os braços
a última versão da convenção do condomínio
certa feita permitiram crocodilos entre os escaninhos
(a convenção apenas proibia cães e gatos)
 
olham seus relógios como quem procura as horas
não percebem o incêndio infinito dos segundos
não escrevem nas paredes
dizem que adoram rimas
mas se perdem na arquitetura de seus corpos

Salvador Passos

22 de março de 2017

Um Nome



Um nome nunca é escrito corretamente –
eu é uma pessoa que espera
uma terceira pessoa na esquina
Ele é um mamífero alguém que não consegue dormir
uma caixa com eu dentro
um nome escrito errado –
Um nome escrito errado se fosse caixa
caixote se fosse um americano se fosse um
hipopótamo se fosse um rinoceronte
Ele é a terceira pessoa contando da esquerda
para a direita na fotografia –
Eu é alguém que escreve o endereço errado
num formulário
Um formulário é uma caixa de nomes
e endereços – uma caixa com o suco
de rinocerontes hipopótamos americanos
e franceses exilados no continente
africano –
seria legal se o mundo se
chamasse pablo picasso
mas é impossível com tanto peso
repetiu um dos mamíferos
Impossível com tanto nome

Franklin Alves Dassie


A Batida da Porta


A batida da porta é uma máquina
de pensar
melhor seria não pensar
porque pensar cansa
A batida da porta é apenas uma
batida de porta
pensar-batida
porque pensar é bater
A batida da porta não é apenas
uma batida de porta
é uma pessoa indo embora
porta-pessoa
A batida a porta
você pensando em ir embora
A batida da porta é uma máquina
uma cena
você não volta
você pensa
você cansa
você é a máquina de pensar em você
a batida da porta
a máquina-porta
você nunca volta
eu sabia
Eu vi a porta fechada atrás de você
a escada o portão
a máquina de pensar – nessa hora você se vira
pensa olha para trás
cala a boca
você não é uma porta
uma máquina de bater
Eu penso de porta fechada
na batida das coisas
na máquina
E você não pensa
você cansa
você isso você aquilo
etc. etc.
Porque vestido de porta
você é madeira
compensado
você porta
você você
uma máquina de você
Eu pensando em bater porta
a batida da máquina
que lembra
pensando por que sim
pensando por que não
a máquina das coisas
me cansa
A batida da porta é a porta
fechada
alguém dentro
alguém fora
alguém-alguém
A batida da porta é uma máquina
de lembrar
mas lembrar cansa
uma máquina cansa
você cansa
alguém dentro cansa
eu-trancado
A batida da porta é ninguém
escuta
ninguém abre
você bate lembra
ninguém lembra
você cansa
eu-porta
A batida da máquina é lembrar com
defeito
uma porta fechada
você engoliu a chave
eu engoli a chave
você-trancado
eu-dentro
Escuta
em algum momento
você imaginou
alguém trancado por fora
uma porta
que abre ao contrário
o caminho da chave
por dentro
um mal-estar
a porta-paisagem
eu-alguém do outro lado
deu com a cara na porta
você-alguém dentro
Escuta
cuidado com o vão
mind the gap
Eu penso de porta fechada
na batida das coisas
na máquina
no mapa que a batida desenha
na cara de alguém
Escuta
cuidado com o vão
lembra
e bate
A batida da porta é só uma
batida de porta
Mas aí alguém atribui um
sentido
você atribui
bate lembra
E a batida da porta não é só
batida
É alguém indo embora
é a fatia da pizza que sobra
é alguém falando sozinho
É o branco sobre branco do pintor
russo
é o espaço vazio na cama
é alguém copiando cem vezes um nome
num caderno verde
e depois riscando
cem vezes um nome
É isso aquilo
é um fiozinho de vida
a capacidade assustadora de esquecer
lembrar
lembrar que esqueceu
É um alívio
é um batente solto
é você repetindo a palavra “batente”
É a mensagem que não
chega
é a batida da porta inclusive
é a canseira
Espera
consegue ouvir
Não
mas vejo a porta fechada atrás de você
a escada o portão
a máquina de lembrar – nessa hora você se vira
pensa olha para trás
cala a boca
A batida da porta não é só batida
É um parafuso perdido
na rua
é uma fotografia e você nela
é uma máquina parada
é alguém que desafina
É você-trancado
o lado de dentro
o lado de fora
um filme em construção
é a primeira vez que te vi
Escuta
como isso tudo
dispara em mim
e fecha 

Franklin Alves Dassie