HP
Qual era o ambiente literário quando a revista Azougue começou, e
quantos anos você tinha?
SC
A primeira Azougue saiu em 1994, quando eu tinha 20 anos. O contexto
em torno da revista era muito diferente de hoje. As coisas melhoraram muito
nesses 15 anos. Se você pensar a poesia brasileira daquele período, tinha
acontecido alguma coisa nos anos 80, que foi principalmente a publicação em
editoras profissionais dos poetas marginais da década de 1970, em coleções
como Cantadas Literárias, da Brasiliense, que editou o Waly Salomão, a Ana
Cristina César, o Chacal, o Cacaso e o Leminski, e Olho da Rua, da LP&M, que
editou nomes como o Roberto Piva. Os poetas que fizeram os anos 80 foram
poetas da década anterior, que começaram com a abertura a serem absorvidos
por uma juventude mais ampla. Então, uma poesia que seja uma tradução dos
anos 80 não existe, a não ser nas letras do rock brasileiro. Você vai ter
depois, no fim da década, uma coleção clássica que foi a Claro Enigma,
editada pelo Augusto Massi. Mas lá também, se você for ver os poetas, são
nomes como Rubens Rodrigues Torres Filho, Orides Fontella, Francisco Alvim,
que já estavam na estrada faz algum tempo. O que tem, e talvez seja o
primeiro poeta que possa dizer algo sobre o que surgiria nos anos 90, é o
Paulo Henriques Britto. Ele possui uma das características que aconteceriam
nos anos 90, que é uma volta às formas tradicionais, mas que não é por uma
reação a um movimento anterior de abertura, como é a geração de 45, mas uma
volta ao formalismo que me parece por motivos mais existenciais, porque tudo
estava tão fragmentado que as pessoas precisavam achar alguma baliza para a
sua poesia. É o que ocorre também com nomes como Carlito Azevedo e Claudia
Roquette-Pinto, que surgem no Rio de Janeiro na virada da década. A
experiência de linguagem talvez seja a grande marca da poesia que surge
nesse momento. Um caso exemplar é o Fernando Paixão, que faz um exercício
formal no livro 25 Azulejos, criando poemas numa forma fixa de 11
versos, alguns com grande beleza. Mas, quando eu tinha 20 anos, as livrarias
eram vazias de poesia. O grande fator é esse.
HP
É o contrário do exagero que existe hoje.
SC
Isso. A Brasiliense havia quebrado, você tinha os resquícios dos livros dela
nas estantes apenas. A Companhia das Letras tinha um livro ou outro de
poesia contemporânea no catálogo, mas era exceção. Então, em 1994, a
Iluminuras começa a publicar uma nova geração de poetas, que foram muito
importantes para a gente, como primeiro surgimento de uma poesia que tinha a
cara dos anos 90. Eram livros como o Solarium, do Rodrigo Garcia
Lopes, e o LSD Nô, do Ademir Assunção. Dois poetas que vinham de
Londrina. E os dois tinham uma característica que acho muito forte nos anos
90, que é um pluralismo de linguagem. Eram poetas que traziam, no mesmo
livro, experimentos que se aproximavam do concretismo e poemas que se
aproximavam da geração Beat, por exemplo. Você tinha desde o hai-cai até
poemas quase em prosa. Esses poetas liam com a mesma naturalidade Augusto de
Campos e Roberto Piva. O perigo que havia neles é que algumas vezes é
difícil encontrar a voz do poeta por trás dessas experiências. Cada poema é
tão diverso um do outro que você não consegue identificar o autor por trás
dos textos. O perigo dessa abertura total é de virar tudo um exercício de
estilo. A poesia dos anos 90 não cria uma cara muito definida, ele se
caracteriza pela pluralidade, pelo exercício de linguagem e muitas vezes por
um certo afastamento entre poesia e vida. É o fica claro anos depois, com o
boom da editora Sette Letras, que utilizando o avanço tecnológico que
permitia edições baratas em baixa tiragem, publica dezenas de livros de
poetas novos em pouquíssimo tempo. E daí sim a poesia dos anos 90 se
apresenta a público. A Sette Letras virou a casa da poesia brasileira dos
anos 90, todo mundo está lá, e a importância dela ainda precisa ser contada.
HP
Mas isso já foi posterior ao surgimento da Azougue.
SC
Sim. Quando a Azougue surgiu, como falei, as livrarias estavam vazias
de poesia. E não havia revistas de poesia circulando, também. Eu me lembro
de uma revista que circulava com mais afinco, que era a Cigarra. Uma
revista pequena, simpática, de Santo André, que apresentava textos de poetas
novos. Ela publicou um poema meu, e recebi uma carta elogiosa do Uilcon
Pereira, que é um escritor fantástico de Araraquara que merecia mais
atenção. Ele dizia que meu poema era “uma boa surpresa do final dos tempos”.
Aquilo foi muito importante para mim. O curioso é que ele morreu pouco
depois. Mas, voltando à questão do vazio, a Azougue foi uma reação a esse
cenário. O que a gente percebeu, e se tornou a grande questão para a gente,
é que os poetas que a gente lia eram inacessíveis para a nossa geração. O
Claudio Willer estava há 13 anos fora de catálogo, o Roberto Piva estava há
nove anos sem publicar, o Afonso Henriques Neto estava sumido. As nossas
referências não existiam para a nossa geração, não tínhamos como
compartilhar eles.
HP
E como aconteceu desses caras, que eram fantásticos, virarem referência para
vocês? Quem eram vocês e onde vocês descobriram eles?
SC
Foi um bom acaso. Quando adolescente eu gostava de poesia, mas havia um
problema porque a poesia brasileira que circulava, que a gente tinha acesso,
não nos respondia, digamos assim. Ela parecia muito longe da minha vida. Eu
encontrava o retrato mais próximo do que eu era na letra de música. O que
aconteceu é que um dia mágico da minha vida, um dia fundamental, eu e dois
amigos, o Juliano e o Ferraz, que posteriormente fariam o Azougue comigo,
adolescentes ainda, fomos fazer um sarau simbolista para tomar uma garrafa
de absinto que eu havia ganho do meu avó. Ela estava perdida, empoeirada na
estante, e eu pedi para ele que me deu. Então pegamos o absinto, fomos para
um sítio, e levamos os livros de poesia que a gente lia na época, o
Matrimônio do Céu e do Inferno do William Blake, o Temporada no
Inferno do Rimbaud, Pequenos poemas em prosa do Baudelaire. As
nossas referências eram todas antigas. E eu levei, por acaso, um livro do
Edson Passetti chamado Das fuméries ao narcotráfico. Era uma análise
sobre o tráfico de drogas, e que no fim dizia que se era para discutir
drogas, era necessário ver os textos literários que foram feitos sob ou
sobre o efeito de drogas. E tinha uma parte chamada Estilhaços, que
era uma série de textos baseados em drogas. De Rimbaud a Ginsberg. Meu pai
estava lendo o livro como sociólogo, e eu peguei ele sem avisar e pus na
mochila. Então, a gente tomou absinto, fumou, e começou a leitura. Estava
chovendo forte, e a água entrava pela persiana fechada. De repente, o
Juliano pega o livro do Passetti e começa a ler um poema: “Eu direi as
palavras mais terríveis esta noite/ enquanto os ponteiros se dissolvem/
contra o meu poder/ contra o meu amor...” E o poema acabava com “eu apertava
uma árvore contra meu peito como se fosse um anjo/ meus amores começam
crescer/ passam cadillacs sem sangue os helicópteros mugem/ minha alma minha
canção bolsos abertos da minha mente/ eu sou uma alucinação na ponta de teus
olhos”. Ele acaba de ler o poema e nós estávamos estatelados. Nunca tivemos
antes uma experiência como aquela. E nós passamos o resto da noite só lendo
esse poema, tentando entender aquilo. Porque ali havia a mesma voz que a
gente encontrava num Jim Morrison ou num Lou Reed, só que falando sobre São
Paulo. Havia a referência existencial e a referência geográfica. Era uma voz
que a gente podia entender como nossa. Naquele momento a poesia apareceu
como uma possibilidade. Ela não era mais uma coisa presa a um passado, mas
fazia parte de nosso tempo. A única referência ao autor do poema, o Roberto
Piva, era uma nota de pé de página dizendo que era um poeta entregue à
rebelião constante e que tinha passado 13 anos experimentando cogumelo e
ácido lisérgico. Perfeito para encantar adolescentes...
HP
E daí?
SC
Daí eu voltei para São Paulo obcecado pelo Piva, sai em busca de qualquer
coisa dele. Eu comprei a Antologia Poética, que a LP&M tinha lançado
dele, e procurei meses e meses pelo Paranóia, que era o livro dele
onde estava o poema que tínhamos lido no sítio, o Meteoro. Daí um dia
eu estava com a minha namorada na época, que também faria parte da
Azougue, a Priscila, e a gente entra num sebo escondido numa galeria na
rua Augusta, e eu pergunto para o vendedor: “Você tem o Paranóia do
Roberto Piva?” Ele vira e fala “Você veio no lugar certo, garoto”. E pega,
tira uma chave do bolso, vai até a escrivaninha, abre a primeira gaveta,
tira uma caixa de madeira, abre a caixa, tem um papel celofane violeta,
desembrulha e lá está o Paranóia. Eu deixei quatro mesadas minhas lá.
Quando estávamos indo embora, o cara chegou para a Priscila e cochichou
“larga esse cara, porque ele é perigoso”. O que criou um clima mais
fascinante para a gente. O Piva significava perigo. Não há coisa mais
maravilhosa, quando você é adolescente, do que descobrir que a poesia pode
significar perigo. E o Paranóia virou um tipo de amuleto para mim, um
objeto de poder, para usar a terminologia do próprio Piva.
HP
Isso com quantos anos?
SC
Eu devia ter uns dezessete, dezoito anos. E começamos a pesquisar o Piva e
os poetas em torno dele. Eu e a Priscila íamos todas as tardes para a
Biblioteca Municipal Mário de Andrade, no centro de São Paulo, e ficávamos
lendo poesias e copiando a mão. A Pri foi uma companheira maravilhosa
naquele momento. Ela tem um bloco de 500 páginas de poemas que eu copiei e
passei a limpo a mão. E foi lá que tive acesso ao Willer, ao Afonso
Henriques Neto. A gente começou a mergulhar nessa geração, guiados pelos
próprios livros dos poetas, que sempre, em algum momento, falavam uns dos
outros. Havia uma intertextualidade nos poemas que nos serviam de guia de
leitura. Você ia criando uma rede, descobrindo cada vez mais poetas. O
Roberto Piva e o Claudio Willer, especialmente, são poetas-críticos, a
poesia deles está dialogando abertamente com outros textos, não apenas
citando, mas interpretando eles.
HP
Então parece que a ditadura foi menos brava com a poesia do que foi com a
música, porque vocês encontravam os livros na biblioteca.
SC
Pelo contrário. Um dos grandes problemas que a gente tinha era exatamente
esse. Entre 1964 e 1981, os livros não existiam na biblioteca. Então você
tinha o Paranóia e o Piazzas do Piva, que são de 1963 e 1964,
e você depois só ia encontrar depois o 20 poemas com brócolis, que é
de 1981. O Willer também, você tinha o Anotações para um apocalipse,
de 1964, e depois só o Jardins da Provocação, de 1981. Os livros
intermediários eram inacessíveis. Era um vazio de 17 anos.
HP
Mas a produção editorial também ficou parada nesse tempo, não?
SC
Mais ou menos. A partir de 1976 ela começa a ser retomada. Sai o 26
poetas hoje, da Heloísa Buarque de Hollanda, o Massao Ohno volta a
publicar em São Paulo. O Piva e o Willer ficaram sem publicar entre 1964 e
1976, e o Piva tem um discurso de que foi por motivos existenciais, mas eu
duvido. Se um editor batesse na porta deles certamente eles teriam algo para
publicar debaixo do braço, e deve ter livros do Piva perdidos ou guardados
em seus armários...
HP
E como você conheceu pessoalmente eles?
Um dia eu descubro por
uma nota no jornal que o Claudio Willer faria uma palestra numa biblioteca
pública na zona norte de São Paulo, do outro lado da cidade. E eu e a
Priscila pegamos um ônibus correndo para lá. E teve uma coisa importante
para mim, porque eu estava fazendo cursinho, e perguntei para o Willer qual
curso eu devia prestar vestibular para ser poeta. E ele respondeu “qualquer
um, menos letras”. Ele até hoje fica bravo quando lembro isso, mas o
argumento era perfeito, que o curso de letras iria me domesticar a um certo
grupo de autores e interpretações. Eu fui fazer filosofia, não deu certo,
mas tudo bem. E foi a primeira vez que eu fiquei cara a cara com um poeta
que admirava. Eu lembro que o texto da quarta capa da Antologia Poética
do Piva dizia que ele era como um fantasma andando pelas ruas da cidade. E
eu andava por aquelas mesmas ruas que ele freqüentava, me perguntando se ele
estava lá, se eu tinha passado por ele. Porque eu não sabia como era a cara
dele. Havia toda uma mística em volta disso, “quem são esses caras que
frequentam a mesma cidade que eu mas ao mesmo tempo são invisíveis?”
HP
Daí vocês começaram a revista?
SC
Eu e o Danilo Monteiro, que era um amigo meu que também escrevia poesia, já
estávamos conversando fazia um tempo em editar uma revista. Um dia,
conversando num bar na Rua da Consolação, o Chamego, sobre entrevistar esses
caras e fazer uma publicação, decidimos ligar para o Piva. Estávamos eu, o
Danilo, a Priscila e o Daniel Chaia, que depois virou cineasta. Eu fui até o
caixa do bar e peguei uma lista telefônica, achei o telefone do Piva e
liguei para ele de um telefone público que tinha dentro mesmo do bar, ao
lado da porta. Quando atendem, pergunto se podia falar com o Roberto Piva.
“É ele”. “O poeta Roberto Piva”. “Sim”. E eu conto a história, que queríamos
entrevistá-lo para uma revista, que éramos jovens fãs de sua poesia. E ele
diz “me encontre em quinze minutos num bar na Angélica, o Luar de Agosto, eu
vou estar com calça jeans, um tênis de caminhada e uma camisa de caçador”. O
bar era lá perto, então a gente vai à pé e encontra ele. A primeira coisa
que ele fez foi se recusar a sentar de costas para a rua, dizendo que
aprendeu isso com os gangsteres. A gente conversou por horas, ele deu de
presente para a gente uns exemplares do Piazzas e o livro da Maria
Sabina, que é uma curandeira mexicana que fazia uma vigílias com cogumelos,
uns poemas lindos, completamente surrealistas. Depois eu publiquei um texto
fantástico do Jerome Rothenberg sobre ela. E a gente começa a manter contato
com o Piva, começa uma relação pessoal de amizade, de freqüentar a casa
dele. A gente ia lá e passava tardes e tardes tomando cerveja, ele lendo
poesia para a gente, os poetas expressionistas alemães, os surrealistas, o
Pasolini. A casa era minúscula, em Santa Cecília, entulhada de livros. A
gente enchendo a cara de cerveja e mergulhando em poesia. O Piva tem uma
capacidade incrível de viver a poesia.
HP
E a revista começou.
SC
Não. A revista não ia para a frente, até que aconteceu uma coisa curiosa. Um
dia, eu estava tomando cerveja com o Daniel Chaia na escola de comunicação e
artes da USP, e quando a gente vai embora, no carro dele, tem um cara
pedindo carona, com aquelas pastas gigantes de artistas plásticos. E a gente
dá uma carona para ele. Ele entra, a gente começa a conversar e está tocando
o Loki, do Arnaldo Baptista. E a gente começa a cantar juntos as
músicas, ele conhecia todas as músicas de cor também. E eu falo para ele que
sempre sonhei fazer uma reportagem new journalism on the road,
entrevistando o Arnaldo Baptista em Juiz de Fora. E ele disse que também Era
um artista plástico, o Eduardo Verderame, que ficou logo nosso amigo. A
balada seguiu noite adentro. A gente ficou enchendo a cara, andando pela
cidade, fomos ver o Império dos sentidos na Cinemateca, aquele filme
erótico japonês, conversamos a noite inteira. No dia seguinte ele me liga e
diz que queria apresentar outro amigo dele que também gostaria de fazer uma
revista, para a gente começar a trabalhar juntos. Esse amigo é o Alexandre
Barbosa, que morava no mesmo bairro que eu, o Brooklin. A Azougue
começou desse encontro por acaso na rua.
HP
Na época era um fanzine?
SC
Saíram dois números como fanzine, xerocados, 100 exemplares. E é uma coisa
curiosa, porque isso era em 1994 e ninguém tinha computador. Computador
ainda era uma coisa rara. Então a gente ia para a casa de amigos ricos,
digitava os textos, imprimia e ia montar os fanzines no processo
recorta-cola. As ilustrações eram por xérox. A gente não tinha nenhum
conhecimento de como fazer uma revista, de mancha de texto, etc. Era
completamente instintivo. No primeiro número, a gente traduziu Kenneth
Rexroth, cummings e Cortázar, e publicou alguns poemas nossos, que foi a
segunda questão que entrou na revista. O Alê Barbosa já tinha um livro de
poesia publicada. Ele tinha essa aura de “já sou poeta édito”. Mas eu tinha
total ciência de que não tinha texto para um livro. Estava com vinte anos,
estava aprendendo a escrever ainda, sabia disso, não tinha nenhuma chance de
ter um livro publicado tão cedo. Ao mesmo tempo queria escoar minha
produção. Eu escrevia poemas, o que eu não tinha era um livro. Se você não
tem 30 poemas bons para fazer um livro, você vai esperar dez anos até
mostrar suas coisas, ou precisa achar outra maneira de divulgá-los. E a
revista surgiu também como esse veículo de divulgação de nossos próprios
textos. A gente brincava que era como o disco compacto da poesia. E teve
resultado. A minha poesia amadureceu muito em torno das respostas que eu
tinha desses poemas que publicava na Azougue. As pessoas criticavam,
analisavam, elogiavam. O segundo número nós publicamos o Gary Snyder e
alguns poemas inéditos do Piva, inclusive um divertidíssimo e raro sobre o
Paulinho Paiakan. Esse número está perdido, não conheço mais ninguém que
tenha ele. A gente publicou esses dois números em xérox, com poucos
exemplares. Era divertido, mas era frustrante ao mesmo tempo, porque não
tinha uma circulação além dos amigos.
HP
E como virou uma revista?
SC
A gente começou a pensar como viabilizar uma tiragem maior, mas não tinha
dinheiro. Daí eu descobri que a ECA-USP tinha um programa de fomento a
revistas, utilizando a própria gráfica deles. O diretor era um espanhol que
estudava o Buñuel e companhia, e eu invadi a sala e fiz um sermão. Disse que
eles só fomentavam revistas de quadrinhos, e que era uma escola de
comunicação que precisava de outras linguagens, e que ele tinha que
financiar uma revista de poesia. O cara disse “Tá bom, tá bom, tá bom”, e
escreveu uma carta autorizando que eu imprimisse um número na gráfica,
assinou a carta e me despachou. O problema é que até hoje ele não sabe que
eu não era aluno da USP, e que então não poderia ter a permissão de usar a
gráfica. Como ele não me perguntou, eu também não disse nada. (risos) E daí
a gente tinha uma revista para fazer, com 48 páginas e tiragem de 500
exemplares. Então a gente começou a pensar no conteúdo da revista com outras
perspectivas. Naquele primeiro número nós publicamos o Orlando Parolini, que
era uma figura fantástica, um poeta que atuava nos filmes do Carlão
Reichenbach, mas que nunca teve seus livros publicados em vida, e que era
inteiramente desconhecido. Um dia eu estava de carro com o Daniel na avenida
Paulista, e a gente vê o Carlão, que era um diretor já importante, esperando
no ponto de ônibus, porque ele tinha a teoria de que cineasta de verdade tem
que andar de ônibus, para ver as pessoas. Uma teoria que devia ser melhor
difundida. E nós demos uma carona para ele, eu falei da revista, do meu
interesse pelo Parolini, e no dia seguinte ele me dá uma pasta de textos do
Parolini acompanhados por uma apresentação que ele tinha feito na época que
o Parolini morreu, alguns anos antes. Além disso, eu entrevistei o Claudio
Willer, que foi a primeira entrevista da minha vida. Eu tinha 20 anos, mas
era bastante inepto nessas coisas. Eu me lembro que fiquei em pânico, a sala
girava à minha volta. A entrevista foi excelente, mas quando fui transcrever
a fita eu tive um problema sério, porque todas as respostas dele começavam
com “não é bem assim” (risos). Então eu percebi que eu era um imbecil, mas
que não podia mostrar isso ao mundo. A entrevista foi boa pelas respostas,
mas não pelas perguntas. Então eu cortei todas as perguntas, e transformei a
entrevista em depoimento. Foi uma defesa minha. O engraçado é que esse
depoimento marcou a linguagem da Azougue, as pessoas começaram a
pensar os depoimentos seguintes usando como base esse texto do Willer. Então
se criou uma voz por um erro. O Willer fez uma entrevista muito generosa,
falava do contexto da poesia naquele momento e contava a história da geração
dele. Foi a introdução ideal para o que estávamos pensando em fazer. Mas
também refletia sobre o momento, inclusive falando com bastante lucidez
sobre a internet. Ele falava uma coisa maravilhosa, que assim como Buñuel
fez a poesia invadir a linguagem cinematográfica, tinha-se que fazer a
poesia invadir a internet. Não utilizar a internet como veículo de poesia,
mas ter uma visão poética da internet. Existe uma diferença muito grande
entre uma coisa e outra. E isso no começo de 1995. Ele já estava antenado e
preocupado com o que seria o impacto da internet na informação naquele
momento.
HP
Então vocês tinham a preocupação de dar voz ao poeta?
SC
Com certeza, essa era a nossa questão fundamental. A gente sabia muito bem
que não adiantava fazer textos críticos, porque as pessoas não conheciam a
poesia. Desde quando a gente começou a pensar a revista, a gente já sabia
que precisava apresentar o poeta e a sua poesia. Então as antologias de
textos da Azougue já começaram muito grandes, com 30, 40 textos por
poeta homenageado, quase um livro abrangendo toda a trajetória dele. E a
gente fazia isso porque sabia que ou a gente apresentava aqueles poetas, ou
as pessoas não teriam acesso, porque eles estavam fora das livrarias. E isso
norteou muito o trabalho da Azougue e acho que diferenciou ela das
outras revistas de poesia, mesmo quando houve um boom de revistas de
poesia alguns anos depois. O que marcou a Azougue e fez ela dar certo
foi essa preocupação didática, de formar leitor. Ao mesmo tempo, tentávamos
explicar o menos possível a revista. O editorial era um poema coletivo, sem
nenhuma referência direta sobre o conteúdo da revista. Na verdade, era um
comentário nosso, inteiramente poético, sobre o conteúdo, as intenções e o
processo de feitura. Mas de uma maneira bastante hermética. Os dois
primeiros eu fiz com o Maurício e o Danilo. E havia os agradecimentos, ou
“homenagens a trois”, que eram na verdade brincadeiras com pessoas ou
personagens que gostávamos, criando um tipo de hai-cai de pessoas. Como
“Alfred Jarry, Qorpo Santo & Campos de Carvalho”. Ou “Leonardo Pareja,
Unabomber & Edmundo, o animal”. Nós também homenageávamos revistas
independentes que gostávamos na época, como “Delicious babes on fire, Luke
Skywalker with diamonds & Strange things are happening”. Isso tudo confundia
um leitor que não tivesse senso de humor. Juntar o último marginal romântico
(Pareja) que tocava violão nos telhados da cadeia, com um terrorista
ecológico e um jogador de futebol era estranho dentro de uma revista de
poesia. Mas se pensarmos bem, era exatamente o que a gente queria, criar um
campo magnético de atitudes em torno da Azougue.
HP
E como vocês comercializaram a revista?
SC
A gente achou que a revista iria bombar. Quando o primeiro número ficou
pronto, o que demorou alguns meses, a gente saiu da gráfica com uns
exemplares tão fascinados com a beleza da revista (olhando hoje, vemos que
uma opinião inteiramente equivocada), que corremos empolgadíssimos para um
bar para comemorar, sem um puto no bolso, achando que ia vender alguns
números lá mesmo para pagar a conta. Não tínhamos dúvida que todo mundo iria
querer comprar aquele objeto maravilhoso. Mas é claro que até as duas da
manhã não tínhamos vendido nada, e nem sabíamos como pagar a conta. Eu tive
que ligar para uma amiga e pedir para ela ir lá no bar pagar a conta para a
gente. E daí começamos a sentir o peso da coisa, vimos que distribuição é
outra história. A gente não tinha acesso às livrarias, então decidimos fazer
eventos de lançamento. Havia uma oficina na Vila Madalena chamada Oficina
Pau-Pau, que era uma oficina de marcenaria para menores abandonados, e que
era um lugar muito interessante, porque era uma portinha toda pintada, se
não me engano pelo Enio Squeff, que ia dar num corredor com a oficina no
fundo. Eu sempre brincava que me lembrava o Lobo da Estepe. “Só para loucos”
devia estar escrito naquela porta, que só aparecia para alguns, passando
despercebida para os transeuntes. E eles emprestaram para a gente o espaço,
e a gente fez um evento com cerveja, shows e leituras de poesia lá. Shows de
bandas novas e leituras de poesia da gente. O Willer leu também. E a gente
fez o lançamento lá, a revista era o ingresso, e vendeu uns 300 exemplares
que possibilitou o capital para fazer o número seguinte. E aquilo tornou a
revista visível para o mundo. Porque foi um evento que reuniu estudantes de
artes plásticas, cinema, antropologia, letras, música. E todo mundo, com a
revista na mão, acabou por lê-la.
HP
E a coisa da poesia falada, existia em São Paulo?
SC
Não. Não existia poesia em São Paulo naquela época, seja falada ou escrita.
Em 1996 a gente lançou o segundo número, que foi impresso numa gráfica
profissional que o Massao Ohno conseguiu para a gente. Esse segundo número
tem o Roberto Piva e um texto do Antonio Bivar sobre o Celso Luiz Paulini. O
lançamento dele foi também na Oficina Pau Pau, e marcou a primeira ruptura
dentro da revista. Já existia uma tensão dentro da Azougue entre a
turma do Alê e do Edu, que não gostavam dos poetas que estávamos
homenageando, e eu, o Danilo e o Maurício Ferreira, que era um aluno de
cinema da ECA e poeta que virou um dos principais azougueiros. O Maurício
era de Jaú, a mesma terra da Hilda Hilst e do Celso Luiz Paulini. Chão de
poetas. O apartamento do Maurício na rua Frei Caneca virou nosso quartel
general, eu praticamente morava lá com a Pri. Descobri outro dia que a
namorada do Maurício na época lançou um livro de memórias onde ela trata eu
e a Pri de forma bastante agressiva, como dois vagabundos que vão viver de
favor lá...
HP
Maravilha. Falavam o mesmo do Guy Debord. (risos)
SC
Mas, voltando, a tensão começou a crescer dentro da revista, e explodiu no
lançamento. O Piva fez uma leitura, e recitou um poema em que ele dizia que
se o PT chegasse ao poder ele fugiria para a Colômbia “na penumbra de um
fusquinha verde”. Sempre adorei essa imagem, é uma grande demonstração do
tipo de humor dele. E um amigo do Alê começa a berrar da platéia que o Piva
era fascista. Daí o Piva leu o poema até o fim e começou a chamar quem
estava gritando para ir ao palco enfrentá-lo. Ninguém aparece, e daí
acontece uma coisa incrível. Porque o Piva pega uma garrafa de cerveja,
desse do palco, e começa a bater ela contra uma pilastra para quebrar ela e
atacar o cara. O Piva é um cara forte, mas por algum milagre, por mais que
ele batesse a garrafa não quebrava. O Roberto Biccelli, que é um poeta amigo
dele, vai acalmá-lo mas acaba pisando num pedaço de madeira com um prego, e
começa a pular. Então uma cena que era para ser trágica começa a ficar
cômica. E o Piva volta para o palco, já se divertindo, e pega um tambor e
diz: “então vamos cantar um mantra para expulsar os brochas do ambiente”. E
começa a bater o tambor e gritar “brocha, brocha”. E a platéia inteira
acompanha, e o pessoal dissidente vai embora. Lá fora rola uma briga entre a
gente, e a equipe se divide. Nós continuamos e o Alê e o Edu saem fora da
revista. Aquele dia foi incrível. O Piva lendo, eu li o Garota dadá,
que falava de uma trepada no banheiro de um bar com uma menina “com gosto de
porra na boca”. Por incrível que pareça, aquilo ainda incomodava em 1995. E
o Maurício leu o Visão do apocalipse com caxumba, que virou um
clássico. É um poema inacreditável. No poema tinha um verso que era “a puta
que o pariu com o sonho pacífico das bucetas”. E o Piva ficou fascinado com
aquilo, subiu no palco e fez outro mantra com isso por dez minutos, batendo
o tambor e repetindo esse verso. Depois o Maurício leu os Ghost tantras
do Michael McClure, os poemas que utilizam uma linguagem animal, “GRHHHHH,
RAHHHH, GRAHL”. Aquilo tudo era realmente maluco.
HP
E as pessoas se assustavam ou entravam nessa?
SC
Algumas se assustavam. Lembro que o Cazé, da MTV, estava chegando em São
Paulo e foi lá nos ver. E saiu dizendo que nós éramos uns selvagens. Mas era
claro para as pessoas que havia alguma coisa acontecendo ali, e era uma
coisa viva. E a gente viveu de algumas generosidades incríveis. No primeiro
número, nós fizemos dois lançamentos. O da Oficina Pau Pau e outro no Cinema
do Banco Nacional, que depois virou Unibanco, onde passou o Filme
demência, do Carlos Reichenbach, que tem o Parolini e o Willer no elenco
e é um dos maiores filmes brasileiros. Abrindo a sessão passou o
Juvenília do Paulo Sacramento. O Juvenília foi um filme que
marcou a nossa turma lá em São Paulo. Na primeira Azougue a
quarta-capa é um fotograma do filme. O Juvenília era um filme todo
feito com fotografias branco e preto, mostrando um grupo de jovens
sorridentes e saudáveis destrinchando um cachorro morto na rua. Muito pior
que chutar. E o filme acabava com um cachorrinho olhando a cena com cara de
triste, e aplausos ao fundo. Eu não conhecia o Paulo, mas a gente viu o
filme na estréia, numa sessão no MIS. Foi a Pri que me levou, porque ela
tinha visto o primeiro filme do Paulo, Ave, onde um cara degola uma
galinha e injeta o sangue dela na veia. E essa sessão tinha uma série de
curtas, que mostrava bem o clima da época. Eram filmes inteiramente inócuos,
um deles tinha cena de torturas denunciando a ditadura vinte anos depois. E
todo mundo aplaudia, por pior que fosse o filme. De repente, entre um filme
e outro, passa umas garotas vestidas de aeromoças dando sacos para vômito de
avião para a platéia. E fica aquele clima, o que está acontecendo. E passa o
Juvenília. Quando acaba o filme começa uma vaia terrível na platéia,
e levanta o Carlão Reichenbach e o Jairo Ferreira e começam a gritar “bravo!
Bravo!”. Daí o Maurício levanta também e começa a gritar, e eu também, e a
Pri. E ficou isso, uma vaia imensa e dez ou quinze cabeças gritando “bravo!”
A gente saiu da sessão e ficou andando pela cidade noite adentro,
conversando sobre o que tinha acontecido. De que ainda existia a
possibilidade de mexer tanto com a platéia a ponto de fazer ela vaiar.
Contra a impressão modorrenta de que estava tudo morto, aquela vaia foi um
sinal de vida incrível.
HP
As pessoas estavam aplaudindo domesticamente...
SC
E de repente ele conseguiu tirar uma vaia. Naquele momento a gente sentiu
que existia uma possibilidade, que a arte estava viva. Aquilo norteou muito
a gente para fazer a Azougue. E foi um grande orgulho meu passar o
Juvenília naquele lançamento. Eu me senti me aproximando da geração que
me interessava, comecei a achar os parceiros. E a revista toma um corpo
nesse sentido. O primeiro número foi ignorado, mas quando saiu o segundo
número a gente começa a ter notícias no jornal. Sai alguma coisa na Folha,
e rola uma história engraçada, porque o Jornal da USP faz uma
matéria. E meu pai fica orgulhoso, eu tinha desistido da universidade mas
agora ia sair no jornal dela, no lugar em que ele trabalhava. E espera
ansioso pela matéria. Mas quando sai a notícia a manchete é “Gangsteres,
poetas e delirantes”. Ele ficou possesso. (risos) Ao mesmo tempo, foi quando
realmente começamos a perceber que estávamos retomando uma geração de
poetas, que os nomes que nos interessavam estavam sempre unidos por amizade
e interesses. Uma noite, na casa do Maurício, ele me mostrou um livro de um
poeta que ele havia conhecido em Florianópolis, quando morou lá. O Maurício
tinha trabalhado como marinheiro, tentado se aventurar pelo mundo, e foi
parar na Ilha do Desterro. E, uma noite, foi num cinema lá ver um filme do
mestre Mizoguchi, o grande cineasta japonês. E, quando acabou o filme, ele
estava aos prantos e ficou com vergonha de se levantar para ir embora.
Quando finalmente decidiu sair, viu um homem também enxugando as lágrimas, e
os dois começaram a conversar. Era o Rodrigo de Haro, e ele deu um livro,
Amigo da labareda, para o Maurício. Nessa noite, ficamos lendo o livro
encantados com a beleza e a força dos poemas. E varamos a noite, lendo e
conversando. A gente passava noites em claro no apartamento do Maurício
lendo e discutindo. Aquela foi a nossa formação. Daí, nesse dia, ficamos
lendo um poema do de Haro sobre Dionísio, e fomos ler Baudelaire, a relação
do Dionísio com Midas, tudo isso. E uma hora lembramos que não tínhamos
jantado, e que como sempre não havia nenhuma comida na casa. E saímos, lá
pelas quatro da manhã, numa noite chuvosa, para caçar algum lugar aberto.
Estava tudo escuro, fechado, mas uma hora nós viramos na rua Augusta e está
lá o letreiro dourado: MIDAS LANCHES. O lugar virou imediatamente nossa
segunda casa, e foi a primeira de uma série de coincidências que aconteceram
em torno da descoberta do de Haro. A segunda foi que o posfácio do Amigo
da labareda era do Willer, que morava no prédio da frente do Maurício.
Nós esperamos até uma hora possível, umas nove da manhã, e corremos para
falar com ele. Quando ele abriu a porta, estava de roupão com um livro
aberto na mão do Rodrigo de Haro. Ele disse que fazia anos que não lia o
Rodrigo, e que nesse dia acordou com vontade de relê-lo. E nos passou o
telefone do Rodrigo. O Maurício não tinha telefone em casa, então corremos
para a minha casa, para ligar para ele. Quando liguei, o Rodrigo atendeu e
contei que tinha uma revista de poesia e gostaria de entrevistá-lo. E ele
perguntou o que estava saindo na revista. Falei do Piva e do Willer, que
agora já sabíamos amigos dele, mas quando falei do Paulini ficou um silêncio
na linha. Daí o Rodrigo falou que desde a morte do Paulini ele não tinha
mais lido ele, e que nessa manhã tinha acordado pensando nele e pegado o
livro para reler. E que estava fazendo isso naquele exato momento. Essa
série de coincidências, ou acasos objetivos, começaram a ser vistas por nós
como um sinal de que estávamos descobrindo algo poderoso.
HP
E daí a revista deslanchou?
SC
Depois do segundo número, acontece uma série de mudanças na revista. O
Maurício sai, por motivos pessoais, deixando inédito o melhor livro de
poesia da geração, Malasartes. E eu me separo da Pri. Assim, a equipe
sofre toda uma reformulação. Eu tinha convidado um amigo do Danilo, o Bruno
Zeni, para fazer um encarte na revista, que ele chamou de Várzea,
falando sobre outros assuntos que não poesia. Estava sentindo falta disso. E
ele acabou co-editando também a Azougue. O Alê Ferraz chegou de uma
temporada em Londres, e se aproximou da gente também. Formamos uma trinca
que editou os três números seguintes. A primeira mudança que fizemos foi
chamar artistas plásticos da nossa geração para ilustrar a revista. Nos
números anteriores, usávamos colagens de material, mas agora todas as
imagens eram feitas especialmente para a revista. Mas nós tínhamos um
problema, porque o dinheiro arrecadado nos lançamentos não era o suficiente
para financiar a impressão de um novo número. Consegui completar o pagamento
com o dinheiro que consegui por organizar um encontro de revistas
independentes para a Secretaria de Cultura de São Paulo. Foi um evento no
Centro Cultural Maria Antônia, que reuniu desde pessoal jovem, como a turma
da Grafitti e o Peter Baierstoff, o cineasta trash lá do sul, com veteranos
como Wladyr Nader, que editava a Escrita, e Toninho Mendes, que era
da Circo, a editora do Angeli e do Laerte. O Toninho fez uma palestra
brilhante, hilária. Contou que quando ele rompeu com a equipe do jornal
Versus, nos anos 70, por eles terem se aliado à Convergência Socialista,
ele ficou possesso e disse que iria embora sem levar nada daquele jornal,
nem mesmo a roupa do corpo. E voltou para a casa pelado. É bien trovato.
Mesmo assim, o dinheiro era pouco, e foi preciso usar a criatividade. Fazer
fotolito, naquela época, era coisa cara, e não podíamos nos dar a esse luxo.
Então decidi inventar, e entreguei para a gráfica cópias xérox das páginas
da revista, impressas em papel transparente ao avesso. Servia como um
fotolito digital. Infelizmente, era difícil para a gráfica adequar o tempo
de exposição do fotolito para a chapa, e as imagens perderam qualidade. O
Bruno se ressentiu bastante disso, talvez por ser mais amigo dos artistas.
Mas se não fosse dessa forma, a revista não teria existido.
Pouco depois, em 1997,
começa um boom de revistas de poesia e literatura no Brasil. Surgem
várias: Cult, Inimigo Rumor, Medusa, Sebastião... A coisa muda um
tanto de figura, e novos desafios são colocados. Uma coisa é atuar na
escassez, outra na fartura. As revistas precisavam ser mais do que espaços
abertos, era necessário criar uma cara, uma editoria, uma linguagem. Porque
agora as pessoas já possuíam espaços de publicação, então esse primeiro
problema não existia mais. Acho que muitas revistas de poesia sofreram com
isso, por se manterem muito abertas e não construírem uma identidade forte.
Outra questão é que essas revistas eram feitas por poetas de uma década
anterior. O Carlito, quando lança a Inimigo Rumor, já tem 35 anos, o
Ademir e o Rodrigo criam a Medusa com mais de 30. E a gente tinha 21,
22 anos, o que trazia outro frescor, outra possibilidade. Éramos mais
informais, conseguíamos fazer eventos mais abertos, que vendiam 200, 300
exemplares da revista. Isso fazia toda a diferença.
Na Azougue, a
Elisa Cardoso entrou e começou a fazer o projeto gráfico. Ela era mineira, e
tinha vindo para São Paulo fazer o Curso Abril, onde conheceu o Bruno.
Depois, os dois começaram a namorar. Ela é uma designer incrível, que agora
já é premiadíssima. Então pela primeira vez o projeto gráfico da Azougue
foi pensado por alguém que sabia do assunto, e isso trouxe uma outra riqueza
gráfica. Quando a Azougue começou, era o auge do David Carson, um
designer norte-americano que havia renovado o projeto gráfico da revista
Trip, e que tinha uma teoria completamente caótica de designer. Ele
tinha absorvido a confusão dos fanzines e trabalhava isso
institucionalmente. Só que as revistas eram muito difíceis de ler, o texto
era visto como um elemento secundário. Então, quando a gente começou a
revista, eu era completamente reativo a qualquer firula maior, dizia que
tínhamos que privilegiar a legibilidade do texto. E exagerei completamente
para esse lado. A Elisa me ensinou que não era bem assim, que havia um
caminho do meio. E fez os dois números mais belos e elegantes da revista,
com riqueza tipográfica, e, é claro, muito mais legibilidade e leveza. Tudo
o que sei de designer aprendi com ela, observando por cima do ombro dela
enquanto trabalhava. Essa foi uma questão, inclusive. Antes, as Azougues
eram feitas manualmente, todos em volta das páginas com os recortes,
pensando e mexendo, interagindo. Com a chegada da Elisa e do computador,
essa interação se enfraqueceu.
HP
É o problema da verticalidade. O monitor é vertical, não dá para ficar em
volta dele...
SC
Com certeza. Eu senti muito esse lado, acho que diminuiu a interação nossa
não só com o design, mas com o texto também. Porque antes estávamos lendo e
discutindo a seqüência dos poemas em tempo real, agora tudo era mais
distante, era preciso fazer a página, imprimir, e daí pensar as alterações.
Mas não foi isso que causou a primeira parada da revista, no fim de 1997,
depois de cinco números semestrais. O que aconteceu foi uma briga editorial
entre eu e o Bruno, por causa de uma entrevista que tínhamos feito com o
Planet Hemp. A entrevista era excelente, mas eu queria que fosse publicada
na Várzea e o Bruno no próprio corpo da Azougue. Nós dois
estávamos disputando espaço. Pelo dinheiro que tínhamos para imprimir, não
dava para aumentar o número de páginas, então eu teria que cortar textos
para substituir pelo Planet Hemp, e não estava disposto a fazer isso. O
Bruno contra argumentava que o interessante era pensar o rap enquanto
poesia, e não separá-lo. Na verdade, os dois estavam certos, mas acabamos
rompendo. O clima ficou horrível, acabamos a diagramação da revista
brigados, os lançamentos não foram para frente e quando vimos não tínhamos
dinheiro nem ânimo para outro número. Então achei que a revista havia
acabado.
HP
Mas não...
SC
Não, eu não conseguia parar de pensar nela. E em 1998 conheci o Pedro
Cesarino, que havia se formado em filosofia e estava começando a estudar
poesia indígena, que era um tema que também me fascinava. E nos juntamos com
a Ilana Gorban, que fazia teatro, e a Marina Weis, que fazia cinema. O Alê
Ferraz continuou na revista, e o Rogério Trezza começou a fazer o projeto
gráfico. Então decidimos retomar o projeto, mas de uma forma mais ambiciosa.
Em 1999 lançamos uma nova dentição da revista, bastante diferente. A idéia
era tentar realmente profissionalizá-la, conseguir um patrocínio ou
propagandas, ter mais fôlego e maior tiragem. A própria revista mudou, ficou
com muito mais páginas e ganhou três encartes: teatro, cinema e fotografia.
A revista ficou muito mais pesada, com lombada e tudo, e muito cara. Havia
coisas incríveis nela, mas até hoje acho que ela ficou meio confusa, sem a
simplicidade das anteriores. De qualquer forma, o lançamento foi incrível.
Fizemos no MAM, com a exibição de um filme do Pedro Moraes sobre os Novos
Baianos, um super-8 até então inédito, e uma jam-session com Jorge
Mautner, Nelson Jacobina, Bocatto e Lanny Gordin cantando Dorival Caymmi.
Lotamos o museu e tivemos uma venda recorde, em torno de 400 exemplares. Mas
a impressão ficou muito cara, e não conseguimos repor o dinheiro. E é claro
que não conseguimos também nenhum tipo de patrocínio. Assim, a equipe acabou
se desfazendo novamente, e ficamos apenas eu e o Pedro. Para o número
seguinte, decidimos simplificar, voltando a só falar de poesia. O número só
saiu no ano seguinte, por falta de dinheiro, e o lançamento foi novamente um
evento. Fechamos o galpão da Funarte, lotamos o lugar e tivemos bandas,
filmes e leituras. Junto com o Christian Saggarth e o Paulo Sacramento,
fizemos um curta especialmente para o evento, Ritual. A idéia era
brincar com o “cinema muscular”, conseguimos alguns rolos de 16 mm vencidos,
fomos para um sítio e fizemos uma fogueira. O filme consistia da relação das
pessoas com a fogueira, e o Paulo e o Christian foram um espetáculo a parte.
Uma hora entraram literalmente no fogo para fazer uma subjetiva da fogueira.
O filme foi bolado no domingo, filmado na segunda e exibido na quinta-feira.
Talvez um recorde. E acabou até sendo exibido no Festival de Curtas de São
Paulo. Junto com ele, houve outros momentos marcantes no lançamento, como a
exibição de Memória da destruição, um curta-metragem filmado em
negativo de som, com trilha sonora ao vivo feita pelos Tres Hombres do
Daniel Benevides, num dos últimos shows do Minho K, o guitarrista, com o
Jairo Ferreira à frente improvisando um discurso em homenagem a Aleister
Crowley.
HP
Foi nesse mesmo ano que você mudou para o Rio, certo?
SC
Sim, e foi muito em conseqüência da revista. No meio do ano, eu vim para o
Rio duas vezes, para entrevistar, junto com o Alberto Pucheu, o Leonardo
Fróes e depois o Fernando Ferreira de Loanda. Seria esse o próximo número da
revista. E eu já estava sem nenhuma perspectiva em São Paulo. Então, na
segunda viagem, encontrei um amigo de adolescência, o Gabriel, que estava
fazendo doutorado na FGV do Rio, e perguntei se ele topava dividir um
apartamento. Ele disse que sim, então fui atrás, consegui um lugar barato no
Humaitá, delicioso, com vista do Pão de Açúcar, e não voltei mais para São
Paulo. Liguei para a minha família, pedi para embalarem as minhas coisas e
mandarem. Poucos meses depois, a Azougue foi contemplada por uma
compra governamental, mas para isso precisava ter uma empresa por trás.
Desde a minha chegada ao Rio, eu estava procurando o que fazer, sem muita
sorte. Então decidi aproveitar a deixa e transformar a Azougue numa
editora, que era um sonho antigo meu. Corri atrás dos papéis, mas
infelizmente o processo demorou demais e perdemos a venda para o governo. De
qualquer forma, investi todo o meu dinheiro editando os livros da editora, e
tive que colocar a revista na geladeira até 2003, quando saiu o novo número.
Nesta época, eu já tinha entrado em contato com praticamente todo o ambiente
literário carioca, e o Pedro Cesarino havia se mudado para o Rio também,
onde fazia mestrado com o Eduardo Viveiros de Castro no Museu Nacional. A
equipe nova da Azougue contava com a Luiza Leite e o Daniel Bueno,
que eram dois poetas cariocas que partilhavam o interesse pelos mesmos
autores e assuntos que a gente. E também a Dri Simões e o Zuza, que fizeram
o projeto gráfico. Considero esse o melhor número da Azougue até
então. Ele misturava a juventude e a leveza dos primeiros números com a
maturidade dos dois números anteriores. E tinha preciosidades como a
entrevista que o Vinicius de Moraes fez com o Jayme Ovalle e um conto raro
do José Agrippino de Paula. Ali eu achei que estávamos de volta ao caminho
certo.
Mas então a revista
sofreu outra reviravolta, dessa vez bastante positiva. No fim do ano, saiu
uma resenha sobre o meu segundo livro de poesia, Horizonte de eventos,
na Folha de São Paulo. A resenha foi escrita pelo Manoel da Costa
Pinto, e começava falando que eu trabalhava com uma tradição “delirante” da
poesia brasileira, que passava por Roberto Piva, Claudio Willer, Afonso
Henriques Neto e Leonardo Fróes. Nesse dia fui tomar um chopp com o Daniel
Bueno, e conversamos sobre o texto. E ele, uma das figuras mais inquietas e
brilhantes que já conheci, colocou uma questão destruidora. Disse que o
papel primeiro da Azougue foi trazer para a tona uma série de poetas
que não tinham o espaço merecido reconhecido. E que com essa resenha estava
demonstrado que esses poetas estavam de volta, já sendo falado como uma
vertente importante da poesia brasileira em jornais de grande circulação.
Outra prova disso era que a maioria desses poetas estavam com obras
completas nas livrarias ou em vias de publicação. E que então a Azougue
teria que se repensar, para não se burocratizar e se fechar numa forma que
não fazia mais sentido. Concordei inteiramente com ele, e começamos
imediatamente a pensar o que seria uma nova revista Azougue. Fizemos
uma série de reuniões, eu, ele, o Pedro e a Luiza, no apartamento que eu
morava então no Jardim Botânico, conversando e anotando idéias. Mas não
conseguíamos nada concreto. Sabíamos que queríamos uma discussão mais atual,
colocar nossas idéias e questões na rua. Mas não conseguimos respostas
concretas, e aos poucos fomos nos dispersando.
O que publiquei foi um
volume comemorativo dos dez anos da revista, reunindo os principais
depoimentos e uma antologia dos autores homenageados. Era uma forma também
de mostrar a importância da nossa trajetória, e pensava na época que era
meio um canto do cisne da revista. Reuni num livro os 16 depoimentos feitos
nesse período (Afonso Henriques Neto, Antonio Fernando de Franceschi,
Armando Freitas Filho, Celso Luiz Paulini por Antonio Bivar, Claudio Willer,
Dora Ferreira da Silva, Fernando Ferreira de Loanda, Leonardo Fróes, Maria
Rita Kehl, Orlando Parolini por Carlão Reichenbach, Paulo Henriques Britto,
Roberto Piva, Rodrigo de Haro, Rubens Rodrigues Torres Filho e os prosadores
Campos de Carvalho e J.J. Veiga) com quatro entrevistas inéditas (Gerardo
Mello Mourão, Hilda Hilst, Jorge Mautner e Vicente Franz Cecim). Virou um
livro de mais de 400 páginas, que ficou pronto no dia do meu aniversário de
30 anos, em 16 de abril daquele ano. As entrevistas inéditas foram
realizadas especialmente para esse livro, tirando a Hilda Hilst, que fizemos
em 1999. Foi uma das entrevistas mais marcantes da Azougue. Nós
fomos, eu, o Fabio Weintraub, a Marina Weis e a Ilana Gorban, para o sítio
dela em Campinas, a Casa do Sol. Chegamos lá no comecinho da manhã, com duas
garrafas de vinho do porto, e já começamos a beber e conversar. Passeamos
pelo sítio, brincamos com as dezenas de cachorros dela, que ela conhecia
todos pelo nome, fizemos pedidos para a figueira que ficava em frente à sua
casa e nos sentamos na sala para entrevistá-la. Depois da conversa,
estávamos sentados em volta dela, já completamente bêbados, eu no parapeito
da janela, e ela pediu para lermos em voz alta alguns poemas dela. Fizemos
uma roda de poesia, cada um lendo os seus preferidos, enquanto ela chorava
no centro. Parecia um filme.
HP
E como vocês conseguiram reinventar a Azougue?
SC
Na semana que o meu filho Leo nasceu, em setembro de 2005, estava sentado ao
lado dele quando foi surgindo um poema na minha cabeça. Era um poema que
falava sobre o tempo, “o tempo é um aquário mergulhado em alto mar”, e
citava uma série de palavras que eu via sendo muito usadas nas conversas,
mas eram binômios um tanto complexos, como “saque/dádiva”,
“nomadismo/habitar” e “traição/vínculo”. São palavras usadas por uma
novíssima esquerda, só que de difícil compreensão. Então eu jogava com isso.
Conversando sobre isso com o Pedro Cesarino, chegamos à conclusão que seria
interessante fazer uma série de revistas investigando essas palavras,
entrevistando pessoas de diversas áreas para mapear alguns significados que
esses binômios, ou eixos temáticos não excludentes, poderiam ter para a
cultura e a poesia. Colocamos o projeto num edital de revistas do Ministério
da Cultura, dentro do Programa Cultura e Pensamento, e começamos a fazer as
entrevistas. Entrevistamos nomes como Eduardo Viveiros de Castro, Ronaldo
Lemos, Guile Wisnik, Agualusa, Hermano Vianna, Ericson Pires. E foi um
projeto que realmente mudou a minha percepção sobre o nosso tempo. Descobri
que existem questões importantíssimas sendo trabalhadas agora, e que não
estão visíveis nem mesmo para os pensadores de cultura. E que as questões
que envolvem as novas tecnologias são muito mais complexas do que parecem, e
precisam ser pensadas de uma forma crítica não excludente. A nossa idéia
inicial era fazer uma revista de poesia sem poesia, mas muito mais do que
isso virou um esboço de um mapa das questões contemporâneas, que gostaria
muito de aprofundar em projetos presentes e futuros. No fim, os eixos
temáticos, acrescidos do binômio “invenção/experiência”, se tornaram um
livro que reúne quatro números da revista, e que considero o trabalho mais
importante que já fiz.
HP
E a revista hoje?
SC
Em 2009 a revista faz 15 anos de existência, e estamos pensando num volume
especial, reunindo uma antologia dos poetas que editaram ou estrearam na
revista. Seria um olhar nosso sobre a nossa própria produção, algo que até
agora não foi feito. E também um mapeamento desse grupo de poetas que está
hoje na casa dos trinta anos, e que possui uma produção interessante que não
teve ainda um olhar atento da crítica. Nomes como Danilo Monteiro, Bruno
Zeni, Pedro Cesarino, Daniel Bueno, Luiza Leite, Maurício Ferreira,
Alexandre Ferraz, que editaram a revista, e Marcelo Sorrentino, por exemplo,
que estreou na revista e possui uma voz próxima da nossa, embora nunca tenha
participado dela mais efetivamente. De todos esses autores, eu sou o único
que possui mais de um livro, e que por isso já conseguiu alguma atenção de
crítica. Tirando isso, não sei se a revista irá permanecer. Só se aparecer
alguma idéia nova que a reinvente. Ainda me interessa trabalhar com
periódicos, tenho idéias e estou trabalhando em projetos de fomentos à
revistas de cultura, mas isso é outra conversa.
Revista Agulha, Fevereiro de 2009
Heyk Pimenta
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