Diante do espelho, não é mais incômodo o
barulho do lunático barbudo rugindo obscenidades para
recém-nascidos. Orgulho-me do maxilar inchado, prova definitiva
da superioridade da mandíbula sobre o encéfalo. Entretanto, só
os dentes frontais podem ser empregados no dilaceramento da
carne. Os caninos existem num presente neolítico - intocável
porque dolorido - e a protuberância monumental de minha arcada
se transforma em parafusos de Frankestein escondidos mal e mal
pela barba da semana. Bolachas, as rôo com paciência, quinze
minutos cada uma. Aceito com tranquilidade minha metamorfose em
capivara bípede, ainda que por dez dias.
O fumo narcotiza a dor e embebeda o tubérculo que
engulo na sopa das seis. Quisera um dia, ser corpo de tigre em
nadadeiras de golfinho para percorrer mares e selvas com a
naturalidade com que vazo pelas tardes inúteis. Mas afinal de
contas, qual o sentido da doença quando passa o martírio? Agora
que a febre se foi, o que sobra senão o medo da movimentação
do vírus rumo à fertilidade do escroto? Sinto a força da
doença substituindo a falsidade dos meus músculos por uma
vitalidade unicelular e transmorfa. E então vem à mente a mãe
de todas as perguntas felizes: não é um pecado destruir um
cristal genético que vive apenas para subverter os estatutos de
minhas veias?
Pois que nade até meu saco mole e enrugado e
infle todos os canais seminíferos com sua Boa Nova. Afinal de
contas, não querias o bom e o novo inflamando este mundo velho
sem deus nem Porteira, não eras tu, ó barbudo do campo, o homem
que sonhava em plantar videiras negras e patuás de chifres de
bode nos cemitérios da bocadolixo; não estavas cansado da
hipócrita preservação do dígito binário como única fonte da
evolução humana; não querias instituir o lastro-merda para
todos os seres vivos do planeta definitivamente excretarem sua
auto-suficiência? Pois bem, diz-me o vírus, eis tua chance...
Posso te fazer nadadeira de baleia debaixo do barco de alumínio;
posso afiar tua agonia até o êxtase. Posso transfigurar-te,
fazer de todos os teus cabelos unidos um único chifre de Nerval,
do escroto uma bigorna e de teus olhos meus irmãos. Seremos
Seiscentos e Sessenta e Seis trilhões de trindades habitando o
mesmo corpo.
Eu esgarço um sorriso e das frestas da saliva
dragões viróticos, asas são maiores que o mundo, enfiam o
pescoço pelo útero do universo. Abocanho de uma só vez todos
os anjos pernósticos da alameda Santos e os demônios
arrependidos a negociar bíblias na praça da Sé. Fetos
anônimos do Apocalipse. Abaixo minhas calças, os testículos
caem como corpos que acabaram de ser crucificados e passam a
acompanhar com interesse cruzadas, guerras santas, e batalhas
futurísticas nas arquibancadas de um estádio de futebol. Coço
o saco demoradamente. Ainda não chegou a hora do Pacaembu
escorrer sua gema vermelha para as ruas da cidade. Brigo com um
velho que insiste em chamar guerreiros de vândalos. Bah! A putaqueopariu com os sonhos pacíficos das Bucetas. Meu saco se foi e
já posso esporrar livremente pela boca aberta. Meu gozo se torna
um grito lançado pelo cu do mundo. E, acreditem, um dia os
machos parirão como os cavalos marinhos e as fêmeas governarão
a Terra. Continuarão, porém, apanhando de maridos suados,
peludos e fedidos e toda a essência do feminismo será o chip de
champanhe desalcoolizada que o amante sofisticado e bonito
oferecerá, com um sorriso de mestre cuca francês, à mulher de
cinta-liga preta, nos píxeis das revistas neomoderninhas...
Mas haverá casais sentados no banco da praça
para esperar o último crepúsculo. Aguçarão os ouvidos para
perceber o crepitar dos cometas invadindo nossa atmosfera. Ele
tocará os bicos dos seios dela com a ponta dos dedos que
avançarão mais e mais até que toda a extensão dos vales
caibam na palma de sua mão. Ela se divertirá com a semelhança
entre o pau dele e um chocalho. Não os incomodarão os policiais
e torcedores gritando ao horizonte enquanto masturbam-se com as
mãos decepadas de papas e políticos. Não, pelo contrário,
sorrirão e os abraçarão. E os casais virarão tríades,
quadrados, trapézios, losangos, pentateucos, octetos, cones,
elipses, espirais, até tornarem-se a tessitura viva do planeta
agonizante. Então, quando toda a galáxia gritar de revolta e
cuspir plasma para demonstrar nossa insignificância, o orgasmo
trespassará o apocalipse e um jato potentíssimo de esperma e
sucos vaginais foderá a ira santa do Universo, tornando-a o mais
mundano dos nasceres solares. E neste fim de ciclo, eu te
prometo, o mundo não vai acabar.
E não me venham depois me chamar de herético, ou
machista, ou reacionário, ou anacrônico, mesmo visionário,
profeta ou outra coisa qualquer! Serei então um bode velho e
caxumbento pastando asas em carcaças de anjos. O saco arrastando
no chão, os olhos a contemplar o vácuo do que foi o paraíso,
os chifres afiados nos escombros do Éden. Só faltará então a
alegre carreira desgovernada para, a cabeçadas, pôr abaixo os
portais do inferno.
Maurício Ferreira
Visão do Apocalipse com Caxumba"
foi originalmente publicado na revista Azougue #2
A Caverna
Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes
Jean Louis Battre, 2010
Jean Louis Battre, 2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário