A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

28 de março de 2014

A tortura na poesia de Alex Polari: Inventário de Cicatrizes


retirado de Socialista Morena: 

A tortura na poesia de Alex Polari: Inventário de Cicatrizes



(Alex Polari hoje. Foto: Bruno Torturra)

Nascido em João Pessoa (PB) em 1951, Alex Polari de Alverga tinha 20 anos de idade e era membro da organização clandestina VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), responsável pelo sequestro do embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben, quando caiu preso, no Rio. Barbaramente torturado, Alex testemunhou e escreveu da prisão uma carta à estilista Zuzu Angel onde narrava as atrocidades cometidas pelos militares contra seu filho, Stuart, militante do MR-8. Aos 26 anos, em 1971, Stuart foi arrastado por um jeep pelo pátio interno da base aérea do Galeão com a boca no cano de descarga do veículo. Seu corpo nunca foi encontrado. Supõe-se que tenha sido jogado em alto-mar ou enterrado como indigente.

Alex Polari passaria seus 20 anos inteiramente na cadeia: condenado a 80 anos de prisão, só foi libertado aos 29, em 1980, após a anistia. Dois anos antes, em 1978, publicou um livro, Inventário de Cicatrizes, com as poesias que escreveu no cárcere. São versos duros, tristes, revoltantes, sobre a tortura nos porões da ditadura militar –um dos poemas é dedicado a Stuart Angel. Hoje, aos 63 anos, Alex se dedica ao Santo Daime e é um dos líderes da Comunidade Céu do Mapiá, no Acre. “Vi companheiros desaparecer no cárcere… mas não queria estender muito nisso. Porque hoje é uma coisa que vejo mais como uma experiência, não acho que é mais o cerne da questão”, disse o “padrinho Alex” ao repórter Bruno Torturra em 2012. “Dificilmente nós vamos achar uma solução para a crise planetária fora de uma revolução espiritual. Todas as outras formas de ler o mundo faliram no último século” (leia mais aqui).

Conheci os poemas de Alex Polari sobre a tortura na adolescência. A leitura de “Os Primeiros Tempos da Tortura” foi provavelmente o primeiro contato que tive na vida com os horrores da ditadura militar. Jamais esqueci este poema. Aos 50 anos do golpe, ninguém lembrou de reeditar o livro de Alex, que pode dizer tanto aos jovens sobre o que foi aquela era de trevas. Mais do que qualquer recriação no cinema: está tudo ali, sangrado em forma de poesia.




Os Primeiros Tempos da Tortura

Não era mole aqueles dias

de percorrer de capuz

a distância da cela

à câmara de tortura

e nela ser capaz de dar urros

tão feios como nunca ouvi.


Havia dias que as piruetas no pau-de-arara

pareciam rídiculas e humilhantes

e nus, ainda éramos capazes de corar

ante as piadas sádicas dos carrascos.


Havia dias em que todas as perspectivas

eram prá lá de negras

e todas as expectativas

se resumiam à esperança algo cética

de não tomar porradas nem choques elétricos.


Havia outros momentos

em que as horas se consumiam

à espera do ferrolho da porta que conduzia

às mãos dos especialistas

em nossa agonia.

Houve ainda períodos

em que a única preocupação possível

era ter papel higiênico

comer alguma coisa com algum talher

saber o nome do carcereiro de dia

ficar na expectativa da primeira visita

o que valia como um aval da vida

um carimbo de sobrevivente

e um status de prisioneiro político.


Depois a situação foi melhorando

e foi possível até sofrer

ter angústia, ler

amar, ter ciúmes

e todas essas outras bobagens amenas

que aí fora reputamos

como experiências cruciais.

***



(Os 14 presos políticos do Rio no pátio do presídio Frei Caneca na greve de fome pela Anistia, em 1979. De pé: Paulo Roberto Jabur, Gilney Viana, Carlos Alberto Sales, Jesus Parede Soto, Jorge Santos Odria, Jorge Raymundo Junior, Antonio Pereira Mattos e Perly Cipriano. Sentados: Paulo Henrique O. Rocha Lins, Alex Polari, Nelson Rodrigues, Manoel Henrique Pereira, José Roberto Rezende e Helio da Silva)


Moral e Cívica II

Eu me lembro

usava calças curtas e ia ver as paradas

radiante de alegria.

Depois o tempo passou

eu caí em maio

mas em setembro tava pelaí

por esses quartéis

onde sempre havia solenidades cívicas

e o cara que me tinha torturado

horas antes,

o cara que me tinha dependurado

no pau-de-arara

injetado éter no meu saco

me enchido de porrada

e rodado prazeirosamente

a manivela do choque

tava lá – o filho da puta

segurando uma bandeira

e um monte de crianças,

emocionado feito o diabo

com o hino nacional.

***



(Alex Polari assinando sua carta de soltura em 1980)


Trilogia Macabra: III – A Parafernália da Tortura

Nos instrumentos da tortura ainda subsistem, é verdade,

alguns resquícios medievais

como cavaletes, palmatórias, chicotes

que o moderno design

não conseguiu ainda amenizar

assim como a prepotência, chacotas

cacoetes e sorrisos

que também não mudaram muito.

Mas o restante é funcional

polido metálico

quase austero

algo moderno

com linhas arrojadas

digno de figurar

em um museu do futuro.


Portanto,

para o pesar dos velhos carrascos nostálgicos,

não é necessário mais rodas, trações,

fogo lento, azeite fervendo

e outras coisas

mais nojentas e chocantes.


Hoje faz-se sofrer a velha dor de sempre

hoje faz-se morrer a velha morte de sempre

com muito maior urbanidade,

sem precisar corar as pessoas bem educadas,

sem proporcionar crises histéricas

nas damas da alta sociedade

sem arrefecer os instintos

desta baixa saciedade.




(Stuart Angel)


Canção para ‘Paulo’ (A Stuart Angel)

Eles costuraram tua boca

com o silêncio

e trespassaram teu corpo

com uma corrente.

Eles te arrastaram em um carro

e te encheram de gases,

eles cobriram teus gritos

com chacotas.


Um vento gelado soprava lá fora

e os gemidos tinham a cadência

dos passos dos sentinelas no pátio.

Nele, os sentimentos não tinham eco

nele, as baionetas eram de aço

nele, os sentimentos e as baionetas

se calaram.


Um sentido totalmente diferente de existir

se descobre ali,

naquela sala.

Um sentido totalmente diferente de morrer

se morre ali,

naquela vala.


Eles queimaram nossa carne com os fios

e ligaram nosso destino à mesma eletricidade.

Igualmente vimos nossos rostos invertidos

e eu testemunhei quando levaram teu corpo

envolto em um tapete.


Então houve o percurso sem volta

houve a chuva que não molhou

a noite que não era escura

o tempo que não era tempo

o amor que não era mais amor

a coisa que não era mais coisa nenhuma.


Entregue a perplexidades como estas,

meus cabelos foram se embranquecendo

e os dias foram se passando.

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