A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

28 de março de 2014

A tortura na poesia de Alex Polari: Inventário de Cicatrizes


retirado de Socialista Morena: 

A tortura na poesia de Alex Polari: Inventário de Cicatrizes



(Alex Polari hoje. Foto: Bruno Torturra)

Nascido em João Pessoa (PB) em 1951, Alex Polari de Alverga tinha 20 anos de idade e era membro da organização clandestina VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), responsável pelo sequestro do embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben, quando caiu preso, no Rio. Barbaramente torturado, Alex testemunhou e escreveu da prisão uma carta à estilista Zuzu Angel onde narrava as atrocidades cometidas pelos militares contra seu filho, Stuart, militante do MR-8. Aos 26 anos, em 1971, Stuart foi arrastado por um jeep pelo pátio interno da base aérea do Galeão com a boca no cano de descarga do veículo. Seu corpo nunca foi encontrado. Supõe-se que tenha sido jogado em alto-mar ou enterrado como indigente.

Alex Polari passaria seus 20 anos inteiramente na cadeia: condenado a 80 anos de prisão, só foi libertado aos 29, em 1980, após a anistia. Dois anos antes, em 1978, publicou um livro, Inventário de Cicatrizes, com as poesias que escreveu no cárcere. São versos duros, tristes, revoltantes, sobre a tortura nos porões da ditadura militar –um dos poemas é dedicado a Stuart Angel. Hoje, aos 63 anos, Alex se dedica ao Santo Daime e é um dos líderes da Comunidade Céu do Mapiá, no Acre. “Vi companheiros desaparecer no cárcere… mas não queria estender muito nisso. Porque hoje é uma coisa que vejo mais como uma experiência, não acho que é mais o cerne da questão”, disse o “padrinho Alex” ao repórter Bruno Torturra em 2012. “Dificilmente nós vamos achar uma solução para a crise planetária fora de uma revolução espiritual. Todas as outras formas de ler o mundo faliram no último século” (leia mais aqui).

Conheci os poemas de Alex Polari sobre a tortura na adolescência. A leitura de “Os Primeiros Tempos da Tortura” foi provavelmente o primeiro contato que tive na vida com os horrores da ditadura militar. Jamais esqueci este poema. Aos 50 anos do golpe, ninguém lembrou de reeditar o livro de Alex, que pode dizer tanto aos jovens sobre o que foi aquela era de trevas. Mais do que qualquer recriação no cinema: está tudo ali, sangrado em forma de poesia.




Os Primeiros Tempos da Tortura

Não era mole aqueles dias

de percorrer de capuz

a distância da cela

à câmara de tortura

e nela ser capaz de dar urros

tão feios como nunca ouvi.


Havia dias que as piruetas no pau-de-arara

pareciam rídiculas e humilhantes

e nus, ainda éramos capazes de corar

ante as piadas sádicas dos carrascos.


Havia dias em que todas as perspectivas

eram prá lá de negras

e todas as expectativas

se resumiam à esperança algo cética

de não tomar porradas nem choques elétricos.


Havia outros momentos

em que as horas se consumiam

à espera do ferrolho da porta que conduzia

às mãos dos especialistas

em nossa agonia.

Houve ainda períodos

em que a única preocupação possível

era ter papel higiênico

comer alguma coisa com algum talher

saber o nome do carcereiro de dia

ficar na expectativa da primeira visita

o que valia como um aval da vida

um carimbo de sobrevivente

e um status de prisioneiro político.


Depois a situação foi melhorando

e foi possível até sofrer

ter angústia, ler

amar, ter ciúmes

e todas essas outras bobagens amenas

que aí fora reputamos

como experiências cruciais.

***



(Os 14 presos políticos do Rio no pátio do presídio Frei Caneca na greve de fome pela Anistia, em 1979. De pé: Paulo Roberto Jabur, Gilney Viana, Carlos Alberto Sales, Jesus Parede Soto, Jorge Santos Odria, Jorge Raymundo Junior, Antonio Pereira Mattos e Perly Cipriano. Sentados: Paulo Henrique O. Rocha Lins, Alex Polari, Nelson Rodrigues, Manoel Henrique Pereira, José Roberto Rezende e Helio da Silva)


Moral e Cívica II

Eu me lembro

usava calças curtas e ia ver as paradas

radiante de alegria.

Depois o tempo passou

eu caí em maio

mas em setembro tava pelaí

por esses quartéis

onde sempre havia solenidades cívicas

e o cara que me tinha torturado

horas antes,

o cara que me tinha dependurado

no pau-de-arara

injetado éter no meu saco

me enchido de porrada

e rodado prazeirosamente

a manivela do choque

tava lá – o filho da puta

segurando uma bandeira

e um monte de crianças,

emocionado feito o diabo

com o hino nacional.

***



(Alex Polari assinando sua carta de soltura em 1980)


Trilogia Macabra: III – A Parafernália da Tortura

Nos instrumentos da tortura ainda subsistem, é verdade,

alguns resquícios medievais

como cavaletes, palmatórias, chicotes

que o moderno design

não conseguiu ainda amenizar

assim como a prepotência, chacotas

cacoetes e sorrisos

que também não mudaram muito.

Mas o restante é funcional

polido metálico

quase austero

algo moderno

com linhas arrojadas

digno de figurar

em um museu do futuro.


Portanto,

para o pesar dos velhos carrascos nostálgicos,

não é necessário mais rodas, trações,

fogo lento, azeite fervendo

e outras coisas

mais nojentas e chocantes.


Hoje faz-se sofrer a velha dor de sempre

hoje faz-se morrer a velha morte de sempre

com muito maior urbanidade,

sem precisar corar as pessoas bem educadas,

sem proporcionar crises histéricas

nas damas da alta sociedade

sem arrefecer os instintos

desta baixa saciedade.




(Stuart Angel)


Canção para ‘Paulo’ (A Stuart Angel)

Eles costuraram tua boca

com o silêncio

e trespassaram teu corpo

com uma corrente.

Eles te arrastaram em um carro

e te encheram de gases,

eles cobriram teus gritos

com chacotas.


Um vento gelado soprava lá fora

e os gemidos tinham a cadência

dos passos dos sentinelas no pátio.

Nele, os sentimentos não tinham eco

nele, as baionetas eram de aço

nele, os sentimentos e as baionetas

se calaram.


Um sentido totalmente diferente de existir

se descobre ali,

naquela sala.

Um sentido totalmente diferente de morrer

se morre ali,

naquela vala.


Eles queimaram nossa carne com os fios

e ligaram nosso destino à mesma eletricidade.

Igualmente vimos nossos rostos invertidos

e eu testemunhei quando levaram teu corpo

envolto em um tapete.


Então houve o percurso sem volta

houve a chuva que não molhou

a noite que não era escura

o tempo que não era tempo

o amor que não era mais amor

a coisa que não era mais coisa nenhuma.


Entregue a perplexidades como estas,

meus cabelos foram se embranquecendo

e os dias foram se passando.

Raul Seixas e a ditadura militar


Raul Seixas e a ditadura militar
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed791_raul_seixas_e_a_ditadura_militar
Por Vitor Cei em 25/03/2014 na edição 791

O ano de 2013 evoca não apenas os 50 anos do golpe militar de 1964, aniversário que alguns brasileiros comemorarão em 1º de abril, dia da mentira, como também os 25 anos da morte do cantor e compositor Raul Seixas, cujas canções tocam em pontos nevrálgicos dos problemas políticos, sociais e culturais do Brasil das décadas de 1970 e 1980, contribuindo para a construção de uma memória contra o esquecimento da ditadura civil-militar de 1964-1985.

As canções de Raul Seixas revelam uma memória das tensões que ocorriam no Brasil dos anos de chumbo, além de abordar uma discussão premente e indispensável sobre as causas e os efeitos do golpe militar e do processo de redemocratização, com a nova forma de capitalismo que então surgia.

Nos anos 1970, a discografia do artista foi marcada por composições utópicas e afirmativas, cantando em nome de liberdade, mudança e emancipação. Diante do autoritarismo, o maluco beleza se apropriou da ideia de Novo Aeon apresentada pelo ocultista inglês Aleister Crowley para formular o seu próprio projeto de uma Sociedade Alternativa.

A década de 1980 jogou para escanteio a insatisfação radical que existia por trás do desejo utópico presente nas sociedades capitalistas durante as décadas de 1960 e 70. Nesse contexto, a obra de Raul Seixas passou a apresentar um caráter melancólico, de certo modo resignado, marcando o aspecto traumático das suas experiências. Ele passou a abordar temas como frustração, internação, doença e alcoolismo. Entre o tom melancólico e o irônico, a obra do compositor produzida nos anos 1980, apesar de manter acesa a quase apagada chama da utopia, projeta um mundo dilacerado e de valores degradados, manifestando instabilidades, como tudo que é reprimido ou contestado.

Sofrendo com o caos vigente e frente a um mundo esvaziado de sentidos, Raul Seixas foi impelido a recriar novos mecanismos de significação, sonhando com outra ordem, vislumbrando horizontes onde aparecem novas possibilidades – no caso, a utopia de uma Sociedade Alternativa inserida em novos valores socioculturais.

***Vitor Cei é doutorando em Estudos Literários pela UFMG, autor do livro Novo Aeon: Raul Seixas no torvelinho de seu tempo

26 de março de 2014

La Diplomacia del Imperio



Meu pé de Laranja Mecânica

Entrevista com Roberto Piva

Entrevista concedida pelo escritor Roberto Piva a Floriano Martins em 1986.


FM - Piva, anarquia ou anarquismo?

RP - Anarquia. Desordem total, sabotagem em regra, insubmissão absoluta. Como diz Léo Ferré, a anarquia é a crítica desesperada, o desespero da solidão. Anarquia é a negação de toda e qualquer autoridade, venha ela de onde vier.


FM - Nós vivemos aqui com uns nós na garganta. O que fazer?

RP - Acredito, com Nietzsche, na reaparição gradual do espírito dionisíaco no mundo contemporâneo. Apesar da caretice generalizada, eu acredito na grande explosão de Dionisus, deus do vinho, deus das bacanais, deus da ecologia e orixá da vegetação. Aqui em São Paulo a polícia fechou uma sauna gay de garotos da periferia e chamou os pais dos garotos na delegacia para humilhá-los e então liberá-los. Foi só a sauna reabrir, e lá estavam todos os garotos outra vez desafiando a autoridade policial, paterna e moral.

William Blake dizia que o desejo que se deixa reprimir não era um desejo suficientemente forte. Debaixo dessa casca dormem com um olho aberto todos os deuses pagãos. O golpe de estado erótico virá e então será a guerra profetizada por Freud no seu livro Totem & Tabu.


FM - O poeta surrealista negro Aimé Césaire, em um poema, diz: “Salve pássaros que abrem com bicadas o verdadeiro ventre do pântano”. Você acha que ele se refere à nossa época e aos poetas?

RP - Claro. O poeta é o que implode o verdadeiro ventre do pântano. Pode ser também o outsider, o louco, o adolescente revoltado, os bruxos, os amantes fora-da-lei, os anárquicos, os drogados, os desordeiros, os visionários etc. Me lembro agora de um verso também de Césaire, onde ele diz: “bárbaro eu a serpente escarradora”. O título deste poema é Bárbaro. Ele termina numa orgia de sangue onde afirma querer “atirar aos cães a carne aveludada de seu tórax”. Toda a poesia verdadeira rima com revolta, amor e liberdade.


FM - E o bom-mocismo na atual poesia brasileira?

RP Artaud afirmava que a poesia é exercício muscular. Jack Kerouac falava que os músculos contêm a essência. A poesia é anterior às palavras. Grande parte da poesia atual brasileira (e não só brasileira) não quer correr risco algum, tem medo do perigo. Então assistimos a volta à poesia de gabinete, onde até a cor de sua escrivaninha os poetas contam nas entrevistas. É uma poesia domada pelo racionalismo cartesiano. Uma poesia de trinta anos atrás que se apoiava na indústria, dançou com o modelo industrial nesta época pós-industrial de biotecnologia e energia solar.


FM - Caminhamos para uma sociedade policial?

RP O monopólio da informação e dos midia nacionais favorece a subordinação administrativa no seu papel de controle social, de burocratização do Mundo, segundo a palavra de Max Weber. A imagem do Estado policial popularizado pelo esquerdismo é retomada com mais variantes pelos ecologistas que sublinham não o seu caráter violento, mas a sua vontade de normalização. Trata-se menos de uma repressão franca e policial do que de uma opressão insidiosa caracterizada pelo domínio do conjunto dos comportamentos. As grandes vítimas desse tipo de normalização, no nosso tempo, foram: Fassbinder, Mishima e Pasolini. Pasolini dizia que o mundo caminhava no sentido de adotar os valores e comportamentos da classe média. Ele foi assassinado por um garoto michê marginal integrado, isto é, um garoto sub-proletário porém com todos os valores da classe média na cabeça. Daqueles que querem uma moto para colocar na garupa uma garota ornamental. Jim Morrison falava nos anos 60 que quem tem o poder da mídia tem o poder da mente. Zé Celso cansou de dizer que a mídia impõe a mensagem. Daí o consumo imposto pelos mídia de alimentos-sucata, de comportamentos-sucata de 50 anos atrás etc.


FM - Qual a sua atividade no momento?

RP - Erotizar e contemplar a árvore de qualidade colérica de que fala Jacob Böehme.


FM - Quando você caminha pelas ruas de São Paulo o que mais chama sua atenção?

RP - Os anões tagarelas, a enfermidade Silêncio, o Controle Central, os macacos não regenerados e os sobreviventes.


FM - Qual a sua profecia para este final de década?

RP - É o princípio do fim. Talvez garotos suburbanos com corpos pintados e máscaras de folhas espalhem um saudável terror com suas garras de leopardo envenenadas. Depois entrarão em cena os acadêmicos da morte, imitações supersônicas e agentes biológicos de inanição. Tudo sob um luminoso em néon escrito DIREITO. Em seguida o Apodrecimento Saturniano Vermelho fará sua aparição num cortejo de macacos de TV e bactérias.

25 de março de 2014

Sobre a origem da poesia



Arnaldo Antunes
"12 Poemas para dançarmos" (12 poems to be danced: 2000



A origem da poesia se confunde com a origem da própria linguagem.
Talvez fizesse mais sentido perguntar quando a linguagem verbal deixou de ser poesia. Ou: qual a origem do discurso não-poético, já que, restituindo laços mais íntimos entre os signos e as coisas por eles designadas, a poesia aponta para um uso muito primário da linguagem, que parece anterior ao perfil de sua ocorrência nas conversas, nos jornais, nas aulas, conferências, discussões, discursos, ensaios ou telefonemas.

Como se ela restituísse, através de um uso específico da língua, a integridade entre nome e coisa — que o tempo e as culturas do homem civilizado trataram de separar no decorrer da história.

A manifestação do que chamamos de poesia hoje nos sugere mínimos flashbacks de uma possível infância da linguagem, antes que a representação rompesse seu cordão umbilical, gerando essas duas metades — significante e significado.

Houve esse tempo? Quando não havia poesia porque a poesia estava em tudo o que se dizia? Quando o nome da coisa era algo que fazia parte dela, assim como sua cor, seu tamanho, seu peso? Quando os laços entre os sentidos ainda não se haviam desfeito, então música, poesia, pensamento, dança, imagem, cheiro, sabor, consistência se conjugavam em experiências integrais, associadas a utilidades práticas, mágicas, curativas, religiosas, sexuais, guerreiras?

Pode ser que essas suposições tenham algo de utópico, projetado sobre um passado pré-babélico, tribal, primitivo. Ao mesmo tempo, cada novo poema do futuro que o presente alcança cria, com sua ocorrência, um pouco desse passado.

Lembro-me de ter lido, certa vez, um comentário de Décio Pignatari, em que ele chamava a atenção para o fato de, tanto em chinês como em tupi, não existir o verbo ser, enquanto verbo de ligação. Assim, o ser das coisas ditas se manifestaria nelas próprias (substantivos), não numa partícula verbal externa a elas, o que faria delas línguas poéticas por natureza, mais propensas à composição analógica.
Mais perto do senso comum, podemos atentar para como colocam os índios americanos falando, na maioria dos filmes de cowboy — Eles dizem "maçã vermelha", "água boa", "cavalo veloz"; em vez de "a maçã é vermelha", "essa água é boa", "aquele cavalo é veloz". Essa forma mais sintética, telegráfica, aproxima os nomes da própria existência — como se a fala não estivesse se referindo àquelas coisas, e sim apresentando-as (ao mesmo tempo em que se apresenta).

No seu estado de língua, no dicionário, as palavras intermediam nossa relação com as coisas, impedindo nosso contato direto com elas. A linguagem poética inverte essa relação pois vindo a se tornar, ela em si, coisa, oferece uma via de acesso sensível mais direto entre nós e o mundo.

Segundo Mikhail Bakhtin, (em "Marxismo e Filosofia da Linguagem") "o estudo das línguas dos povos primitivos e a paleontologia contemporânea das significações levam-nos a uma conclusão acerca da chamada 'complexidade' do pensamento primitivo. O homem pré-histórico usava uma mesma e única palavra para designar manifestações muito diversas, que, do nosso ponto de vista, não apresentam nenhum elo entre si. Além disso, uma mesma e única palavra podia designar conceitos diametralmente opostos: o alto e o baixo, a terra e o céu, o bem e o mal, etc". Tais usos são inteiramente estranhos à linguagem referencial, mas bastante comuns à poesia, que elabora seus paradoxos, duplos sentidos, analogias e ambiguidades para gerar novas significações nos signos de sempre.

Já perdemos a inocência de uma linguagem plena assim. As palavras se desapegaram das coisas, assim como os olhos se desapegaram dos ouvidos, ou como a criação se desapegou da vida. Mas temos esses pequenos oásis — os poemas — contaminando o deserto da referencialidade.

Incluído no libreto do espetáculo “12 Poemas para dançarmos”, dirigido por Gisela Moreau, São Paulo

24 de março de 2014

definições

o dicionário é um labirinto de palavras e sentidos

todo livro é um labirinto de palavras onde alguém encontrou um caminho

poesia é um caminho diferente para se chegar nos sentidos

em toda palavra há um incêndio

Poeta é quem trás o fósforo!

Salvador Passos

vermes do tempo

há um inferno que pulsa nas palavras
há um inverno no deserto
e um deserto no mar
há um labirinto de palavras por onde se entra na noite
há uma noite escura que irmana coisas e mistério
que aproxima a morte do amor
e as vozes do vento noturno falam nos vermes do tempo

Salvador Passos

Astronautas daqui



SE TUDO DER ERRADO

para Nelson Meireles


se tudo der errado

nós ganhamos por w.o.

se tudo der errado

os helicópteros ocuparão

o lugar dos anjos

no nosso imaginário



se tudo der errado

ainda teremos

alguém no meio do caos

comemorando o aniversário



se tudo der errado

eu prefiro ser errante

do que solitário



se tudo der errado

que tenhamos a coragem

de admitir

como último apelo

que o mundo é lindo

e nossos fantasmas

estão vindo do espelho


Marcelo Yuka


ATRÁS DELE



na noite forjada por apagões

um motoboy atravessa a cidade sem gps

portando imagens de grosso calibre

no seu hd de bolso e de preço popular

imagens que acusam o juiz



atrás dele

portas arrancadas com chutes

um programa x9 usando máscara

escaners de retina

mensagens de ajuda

numa rede social obscura



e o tempo tentando pegá-lo

antes da próxima esquina

antes da polícia mudar de dono

e tudo virar ao contrário



os dados queimando em nossas mãos

passam no ar como fumaça

silenciosa e urgente

com a descarga de quem foge

porque adora estar aqui

fazendo história atrás de si

Marcelo Yuka

21 de março de 2014

Guerra Fria 2.0


Visa e Mastercard deixam de servir clientes de bancos russos
Sem aviso prévio, os grupos de cartões bancários pararam de fornecer seu serviço a clientes de vários bancos russos após as sanções dos EUA

21 de março de 2014


Os grupos americanos de cartões bancários Visa e Mastercard deixaram nesta sexta-feira sem aviso prévio de fornecer seu serviço de pagamento aos clientes de vários bancos russos após as sanções anunciadas na véspera pelos Estados Unidos.

O banco Rossia, alvo das sanções americanas, anunciou nesta sexta-feira em um comunicado que Visa e Mastercard "deixaram, sem aviso prévio, de fornecer seus serviços de pagamento aos clientes do banco". Sua filial, Sobibank, também foi afetada por esta decisão.

O banco SMP, controlado pelos irmãos Arkadi e Boris Rotenberg, cujos nomes foram acrescentados à lista de pessoas atingidas pelas sanções americanas, também anunciou que seus clientes com cartões Visa e Mastercard estavam com seus cartões bloqueados.

Fonte: Terra

O trecho do livro Cypherpunks mostra que o governo Russo já vinha preocupado com a segurança de seus sitema de pagamentos:

" Andy: Mas acho que podemos todos concordar em um ponto, o de que o sistema
monetário, a infraestrutura econômica para o intercâmbio monetário, está num estado
lastimável. E até uma pessoa que só tem uma conta no eBay concordaria com isso sem
pestanejar, porque o que o Paypal, a Visa e o MasterCard estão fazendo, na prática, é forçar
uma situação de monopólio. Os comunicados diplomáticos norte-americanos aos quais o
WikiLeaks teve acesso também revelavam que o governo russo tentou negociar para que os
pagamentos de seus cidadãos à Visa e ao MasterCard realizados dentro da Rússia fossem
processados no próprio país, e ambas as empresas se recusaram2.

Julian: Sim, o poder combinado da embaixada dos Estados Unidos e da Visa foi suficiente
para impedir até mesmo a Rússia de implementar o próprio sistema nacional de pagamento de
cartões no país.

Andy: O que significa que até os pagamentos feitos por cidadãos russos em lojas russas
serão processados em centros de dados norte-americanos. E isso quer dizer que o governo dos
Estados Unidos terá um controle jurisdicional sobre isso, ou pelo menos uma ideia do que
está se passando.

Julian: Pois é, e aí, quando Putin sair para comprar uma Coca-Cola, trinta segundos depois
Washington já estará sabendo.
Andy: E essa, naturalmente, é uma situação bastante insatisfatória, independente de eu
gostar ou não dos Estados Unidos. É extremamente perigoso armazenar todos os pagamentos
em uma localização central, porque isso é um verdadeiro convite para todo tipo de utilização
desses dados.

Jacob: Um dos pontos fundamentais que os cypherpunks reconheceram é o fato de a
arquitetura efetivamente determinar a situação política, de forma que, se tivermos uma
arquitetura centralizada, mesmo que as melhores pessoas do mundo estejam no controle dela,
essa centralização é um verdadeiro ímã de pessoas mal-intencionadas, que usam o poder de
maneiras que os designers originais jamais usariam. E é importante saber que a motivação
para isso é monetária."

No link a seguir é possível ver a preocupação dos Americanos com as movimentações preventivas do governo Russo buscando aprovar uma lei para reduzir a sua dependência de seus sistema de pagamentos das empresas norte americanas Visa/Mastercard (de acordo com o documento a Visa e Mastercard tem 85% do mercado de meios de pagamento eletrônicona Russia).

Wikileaks on Russian draft law
"On the National Payment System"



19 de março de 2014

Nocturno pluvioso en la ciudad

De noche, bajo la lluvia
a lo largo de la avenida
la luz de una cabina telefónica
Un hombre llama ansiosamente
No hay tierra firme donde echarse a descansar
El hombre hace gestos con las manos
lejos un triángulo de luces amarillas
cómo resbala el agua en los costados
escaparates llenos de reflejos
el hombre dice: “Por favor, por favor”
un borracho junto a un árbol
Grandes rebajas
los autos pasan veloces:
si atropellaran a alguien no tendrían tiempo de detenerse
“Escúchame, por favor”, dice el hombre
dos muchachos fuman un poco de hierba
en los diarios de esta mañana leí algo acerca de una gran catástrofe
no sé si terremoto o bombardeo
“Te quiero”, dice el hombre,
antropoide en la vidriera telefónica
cae la lluvia
un travesti se pasea, pide fuego
los travestis siempre piden fuego y se pasean
el agua le moja la falda, le corre la pintura,
no se puede comprar cosméticos baratos,
murieron dos mil o veinte mil,
ya no recuerdo,
hay un cartel que destiñe con la lluvia:
“Compañero, tu muerte no será en vano”
(¿qué muerte no es en vano?)
Me gustaría saber adónde van las palomas con la lluvia
un locutor anuncia un detergente un bombardeo
“Escúchame”, dice el hombre,
se le acaban las monedas
Extraordinario show-sexy
Se ruega a las personas sensibles no asistir
Me dijeron que se trata de un caballo que fornica con mujeres
(la Sociedad Protectora de Animales protestó;
ninguna otra sociedad protestó)
es enorme la cantidad de personas no sensibles que hay,
según el cartel
Noches lluviosas donde cualquier suicidio es posible:
hasta el de una mariposa contra la ventana.
Del andén sale una música ambulante
el hombre no tiene más monedas
el travesti ligó
es increíble cómo en momentos decisivos algo nos falta
moneda o mirada
cigarrillo o mujer
a lo mejor se trataba de una inauguración, no sé bien,
o quizás era el destripador de alguna ciudad inglesa
Se queda un instante indeciso en la cabina
registra a fondo los bolsillos
(¿extraerá una pistola o un cigarrillo?)
“Vecchio, basso”, canta Mina en el amplificador
Una estrella de cine se consagró
un zapatero mató a su mujer
un padre a su hija
alguien bombardeó una ciudad
El hombre no encontró una moneda y se puso a caminar bajo la lluvia.

Cristina Peri Rossi

14 de março de 2014

saque

há um rastro deixado na escrita das coisas
que se nega a esquecer
e que nos contamina com uma nostalgia torpe
nos paralisa em quem somos
nos amarra

a sabedoria do xamã está em ignorar o dicionário e impedir a morte da palavra
pois palavra cansada contamina o sonho do mundo

o poeta ocidental não dança mais no fogo

ele esqueceu que fazer poemas serve para enganar a morte
e roubar alguns segundos da eternidade

Salvador Passos

outra manhã

um passarinho sussurrou teu nome
mas eu disse não
faltava alguma doçura misteriosa na cadência de seu canto
faltava um riso alto e descontrolado
um medo puro do futuro
o pássaro passou por cima de algo inominável no teu nome
que o torna apenas teu
algo que te faz você
e que me faz quem sou
um medo do futuro que resulta do passado
lastro de um navio que afunda

mas e se jogarmos fora este peso inclemente?
teu nome continua teu
o pássaro segue com seu canto
que apesar de belo pouco diz de tuas verdades
serve para descrever que há coisas perdidas em um canto
que nem sempre estão lá
serve como contraponto
pois para cantar a dor basta não ter asas
e mesmo assim
depois da noite triste
vestir as asas da poesia
e pedir perdão ao nosso amor

Salvador Passos

12 de março de 2014

PEDAÇOS DO ESQUELETO



/ se eu quebrar com meus sonhos / e só restar o tédio
medonho, / a decrepitude, a tristeza infinita / o monturo
(na vida, na escrita) / nenhuma cia. de seguros / vai ar-
car com o prejuízo / então, / dou um basta à bosta toda
/ redesenho o traço da boca / deito um sorriso lindo para
o mundo / respiro fundo, vou com tudo / porque é assim
(e só assim) que se tem que ir // a av. Paulista correndo é
tão engraçada / parece uma cobra de marshmallow / uma
viagem de ácido / uma enguia eletrocutando a língua / os
olhares, os colares, tristes demais / estupefatos, oleosos,
covardes e sem razão / a cavoucar a cidade atrás de um
tostão / ou de um milhão / pobres diabos e diabos ricos
a rastejar / quarteirão a quarteirão / uns com ar condicio-
nado, mp3, Honda, / apartamento mobiliado, aulas de
inglês / outros não / a gente que tem / heliporto / vinho
do Porto / trabalha no Horto / não passa fome nem mor-
to / e a gente que / disfarce a disfarce / ganha apenas o
necessário / para endividar-se /

Fabiano Calixto

As crises cambiais

Há quem ignore os desastres fiscais causados pelas viradas de mesa dos financiadores externos

por Luiz Gonzaga Belluzzo — publicado 06/02/2014 05:56

"Emergentes elevam os juros para acalmar mercados”, proclama a manchete da Folha de S.Paulo na quarta-feira, 29 de janeiro. Os ditos emergentes – à exceção da China – estão a padecer as dores infligidas pelas expectativas dos mercados a respeito da mudança na política monetária americana.

A Argentina puxa o cordão dos desgraçados. Nuestros hermanos ainda pagam a conta do regime de conversibilidade que, entre outras façanhas, dolarizou a dívida pública e instigou a moratória. Os hermanos sobreviveram uns tempos à custa da exuberância das commodities, mas sucumbiram diante de outra reviravolta dos mercados globais.

As crises cambiais nos emergentes se repetem em tediosa e monótona cadência. A experiência das globalizações financeiras – aquela das três derradeiras décadas do século XIX, assim como a dos nossos tempos, a era do Lobo de Wall Street – demonstra que os humores dos mercados financeiros globalizados, em sua insaciável voracidade, impõe suas razões às políticas monetária e fiscal dos países de moeda inconversível que abrem suas contas de capital, surfam nos ciclos de crédito externo e se tornam devedores líquidos em moeda estrangeira.

Os títulos de riqueza denominados na moeda não conversível e os carimbados com o selo das moedas conversíveis são substitutos imperfeitos. Diante da hierarquia de moedas (o dólar é mais líquido que o peso ou o real), o teorema da paridade descoberta das taxas de juro não funciona. Isso permite aos mercados financeiros prosseguir sem sustos na peculiar “arbitragem” entre juros internos e externos, sem convergência das taxas, descontados os diferenciais de inflação esperada.

O câmbio flutuante fica à mercê das peculiares idiossincrasias dos mercados de ativos e os bancos centrais estão sempre obrigados a “sujar” as flutuações. As tendências à apreciação ou depreciação da moeda nacional dependem do estágio em que se encontra o fluxo de capitais e do maior ou menor “descasamento” entre os ativos e os passivos em dólar dos bancos, empresas e rentistas sediados no país de moeda inconversível.

Keynes chamou a atenção para o caráter negativo e assimétrico de um sistema internacional em que os problemas de liquidez (ou de solvência) dos países de menor poderio financeiro são enfrentados mediante a busca permanente da confiança dos mercados de capitais privados.

Os ideólogos da finança, mais por interesse do que por ignorância, concentram suas baterias, nos momentos de estresse, nas condições fiscais internas dos países de moeda não conversível.

A primeira geração de modelos pretendia explicar as crises cambiais mediante convenientes relações de determinação: partiam dos déficits fiscais, caminhavam para o excesso de absorção (demanda) doméstica e terminavam no abismo dos déficits em conta corrente. A fuga de capitais e as bruscas e intensas desvalorizações cambiais, com impacto desastroso sobre a inflação e as finanças públicas, eram atiradas às costas dos governos gastadores e irresponsáveis.

Não há quem aprove ou recomende desatinos fiscais e monetários dos governos. Mas há quem ignore os desastres fiscais e monetários deflagrados no Brasil dos 80 e 90, no México em 94, na Ásia em 97, na Rússia em 98, na Argentina do doutor Cavallo em 2001 pelas viradas de mesa dos provedores privados de financiamento externo.

(Às vesperas da crise asiática de 1997/1998, a Coreia dispunha de condições fiscais impecáveis: superávit nominal de 2,5% e dívida pública inferior a 15% do PIB. A missão do FMI, encarregada de analisar a situação da economia coreana, teceu loas aos sólidos “fundamentos”.)

As camuflagens grosseiras são desenhadas pelos sequazes da finança. Essas narrativas ocultam o elementar: trata-se da política e do poder do dinheiro vagabundo caçando rendimentos. Money chasing yield, como explicou o onanista e cheirador Hanna ao ganacioso Jordan Belford no filme de Scorcese.

Para os países de moeda não conversível, os juros e o câmbio se tornaram reféns das bruscas reações dos senhores dos portfólios globais diante dos rodopios e contradanças dos gestores da moeda internacional. Sob o comando dos humores da finança e da sabedoria de seus asseclas, os emergentes sacolejam os traseiros nos carnavais e rolezões da abundância de liquidez. (Enquanto os bacanas se refestelam nas utilidades do inútil, a indústria manufatureira das vítimas sofre as agruras das exportações minguantes e das importações predatórias.)

A festança termina nas quartas-feiras dos crashs de preços de ativos e na desvalorização das moedas.

Segurança, conceito controverso

Do Outras Palavras

Como os EUA arriscam proteção de seus cidadãos, e se isolam internacionalmente, para proteger grandes corporações e poder do Estado



Por Noam Chomsky, no Alternet | Tradução: Antonio Martins


Primeiro de dois artigos construídos a partir de palestra de Chomsky (em 28/2) para aNuclear Age Peace Foundation.


Um princípio orientador da teoria das relações internacionais diz que a maior prioridade do Estado é garantir a segurança. Como estrategista da Guerra Fria, George F. Kennan formulou que os governos são criados “para garantir a ordem e a justiça internas e para assegurar a defesa comum.” A proposição parece plausível, quase evidente, até que um olhar mais atento pergunte: Segurança para quem? Para a população em geral? Para o próprio poder do Estado? Para os setores dominantes na sociedade?

Dependendo do que queremos dizer, a credibilidade do princípio varia de desprezível a muito alta. A segurança do poder do Estado é extremamente alta, como revelam os esforços que os Estados desenvolvem para não serem transparentes a suas próprias populações.

Em uma entrevista na TV alemã, Edward Snowden contou que chegou a seu “ponto de ruptura” ao “ver o diretor de Inteligência Nacional, James Clapper, negar, sob juramento do Congresso”, a existência de um programa de espionagem interna conduzida pela Agência de Segurança Nacional. Snowden afirmou que “o público tinha o direito de saber desses programas. O público tinha o direito de saber o que o governo está fazendo em seu nome e contra ele”. O mesmo poderia ser dito por Daniel Ellsberg, Chelsea Manning e outras figuras corajosas que atuaram segundo o mesmo princípio democrático.

A posição do governo é bem diferente: o público não tem o direito de saber, porque a segurança seria severamente prejudicada. Existem boas razões para ser cético diante de tal resposta. A primeira é quase totalmente previsível: quando um ato de governo é revelado, o governo, por reflexo, declara motivos de segurança. Em consequência, o resultado é pouca informação.

Uma segunda razão para o ceticismo é a natureza das provas apresentadas. O estudioso de relações internacionais John Mearsheimer escreveu que “o governo Obama, previsivelmente, alegou a princípio que a espionagem da NSA teve um papel fundamental em frustrar 54 planos terroristas contra os Estados Unidos, o que implica que violou a quarta emenda à Constituição por um bom motivo”.

Isso era mentira, no entanto. O general Keith Alexander, diretor da NSA, admitiu ao Congresso que poderia reivindicar apenas um caso bem-sucedido [em que ação terrorista foi frustrada por espionagem]: o que envolveu a captura de um imigrante somali e três comparsas que vivem em San Diego e tentaram enviar 8,5 mil dólares a um grupo terrorista na Somália…

A visão básica por trás desta atitude foi bem expressa pelo cientista político Samuel P. Huntington, de Harvard: “Os arquitetos do poder nos Estados Unidos devem criar uma força que possa ser sentida, mas não se veja. O poder permanece forte quando no escuro; exposto à luz do sol, começa a evaporar”.

Nos Estados Unidos, como em outros lugares, os arquitetos do poder compreendem isso muito bem. Aqueles que trabalharam com a enorme massa de documentos confidenciais na história oficial das Relações Exteriores dos Estados Unidos, por exemplo, dificilmente podem deixar de notar que, muito frequentemente, a principal preocupação não é a segurança nacional, em qualquer sentido, mas a segurança do poder do Estado.

Muitas vezes, a tentativa de manter o sigilo é motivada pela necessidade de garantir a segurança de setores sociais poderosos. Um exemplo são os “acordos de livre comércio”, rotulados de forma errada porque não são sobre o comércio como um todo e sim sobre os direitos dos investidores.

Estes instrumentos são regularmente negociados em segredo, como a atual Parceria Transpacífica (Trans-Pacific Partnership – TPP) mas não totalmente em segredo, é claro. Eles não são segredo para as centenas de lobistas corporativos e advogados que estão escrevendo as disposições detalhadas, cujo impacto foi revelado para o público através do WikiLeaks.

Como o economista Joseph E. Stiglitz concluiu, o Escritório de Representantes do Comércio dos EUA “representa os interesses corporativos”, não os do público: “A probabilidade de que o que emergir das próximas negociações sirva aos interesses dos americanos comuns é baixa; e as perspectivas para os cidadãos comuns em outros países são ainda mais sombrias.”

A segurança das grandes empresas é uma preocupação permanente das políticas governamentais nos EUA – o que sequer surpreende, dado o papel destas empresas na formulação de tais políticas. Em contrapartida, há provas substanciais de que a “segurança nacional” doméstica, no sentido em que o termo deve ser entendido, não é uma alta prioridade para a política do Estado.

Por exemplo, o programa de assassinato mundial por meio de drones do presidente Obama, é, de longe, a maior campanha terrorista do mundo. Mas qual seu resultado? O general Stanley McChrystal, comandante das forças dos EUA e da OTAN no Afeganistão, falou em “matemática insurgente”: para cada pessoa inocente que você matar, você cria dez novos inimigos.

Mas o próprio conceito de “pessoa inocente” diz-nos o quão longe nós estamos da Magna Carta, que estabeleceu o princípio da presunção de inocência – pensado um dia como o fundamento do direito anglo-americano. Hoje, a palavra “culpado” significa “alvo de assassinato por Obama” e “inocente” significa que “aquele a quem ainda não foi atribuído o status de culpado”.

A Brookings Institution acaba de publicar The Thistle and the Drone [“A Flor e o Drone”, em tradução livre], um estudo antropológico altamente elogiado sobre sociedades tribais. Escrito por Akbar Ahmed, tem com o subtítulo “Como a guerra dos EUA contra o terror se tornou uma guerra global contra o Islã Tribal”.

A guerra, Ahmed adverte, pode lrvar algumas tribos “à extinção”, com custos graves para as próprias sociedades, como se vê agora no Afeganistão, Paquistão, Somália e Iêmen. E, ao final, para os norte-americanos.

As culturas tribais, Ahmed aponta, baseiam-se em honra e vingança: “Todo ato de violência nessas sociedades tribais provoca um contra-ataque. Quanto mais duros os ataques contra os homens da tribo, mais cruéis e sangrentos os contra-ataques”.

O terror pode tornar-se um tiro pela culatra. Na revista britânica Foreign Affairs, David Hastings Dunn descreve como os cada vez mais sofisticados drones são uma arma perfeita para grupos terroristas. Drones são baratos, facilmente adquiríveis e “possuem muitas qualidades que, quando combinadas, tornam-se potencialmente o meio ideal para o ataque terrorista no século 21″, explica Dunn.

O senador Adlai Stevenson, referindo-se a seus muitos anos de serviço no Comitê de Inteligência do Senado dos EUA, escreve que “a vigilância cibernética e a coleta de metadados fazem parte da reação contínua ao 11 de Setembro. Os EUA são amplamente percebidos como em guerra contra o Islã, contra os xiitas, bem como os sunitas, no chão, com drones, e por procuração na Palestina, desde o Golfo Pérsico até a Ásia Central. Alemanha e Brasil se ressentem de nossas invasões, e o que elas causaram?”

A resposta é que elas causaram, para os Estados Unidos, uma ameaça crescente e o isolamento internacional.

As ações militares por meio de drones são um dispositivo pelo qual a política do Estado põe em risco a segurança da população com conhecimento de causa. O mesmo é verdadeiro com relação a forças especiais para operações de assassinatos. A invasão do Iraque aumentou acentuadamente o terror no Ocidente, confirmando as previsões da inteligência britânica e americana.

Estes atos de agressão foram, mais uma vez, uma questão que pouco interesse despertou em seus planejadores, orientados por diferentes conceitos de segurança. Mesmo o risco destruição instantânea, através de armas nucleares, nunca foi levado realmente a sério pelas autoridades. Tratarei disso num próximo texto.

7 de março de 2014

Onde andará o sentido?



onde o sentido está contido?
comigo? contigo?
onde andará o sentido?
sentado à beira do abismo?
abismado com tanto cinismo?
onde andará o sentido?
sentado no cais a ver navios?
no meio do mar à deriva?
onde o sentido se esquiva?

Chacal

lapso pessoal 2

pensar pessoa assim mesmo
sem saber o que enfim penso de mim
ou dele

penso no que sou aqui ao pé do tempo
ao par das horas
estas mesmas horas que já passam
e eu aquém do além do mundo inteiro
à margem de toda metafísica
me encontro desencontrado de mim mesmo
ao dizer coisas e verbos que não são nem verbos nem coisas
mas apenas nomes de coisas que no fundo desconheço
este eu que penso que existe
desiste de pensar nas coisas que lá se vão

as coisas são apenas coisas
não importam os nomes que venham apelida-las
coisas que se perdem no tempo
como o eu, que penso ser alguma coisa,
mas fundo não é

apenas outra dúvida que paira entre o tempo e o espaço que se espalha sobre nós
como manteiga sobre o pão quentinho da manhã
que derrete como os nomes que colocamos em todas as coisas
à nossa volta o mundo sem nome algum que o contenha
apenas a palavra mundo
que ao ser tudo
não é nada

Salvador Passos

6 de março de 2014

oco da palavra

no osso oco da palavra
petrifica
aquilo que em signo
fica

Raimundo Beato

toda palavra, nenhuma palavra

Toda palavra pode ser tudo
Mas a palavra palavra não é livre
A palavra palavra é só palavra e mais nada
As demais palavras são tudo menos palavras

Inspirado em José Saramago

Salvador Passos