“Acredito que essa cidade [Paris] foi devastada um pouco antes de todas as outras porque suas revoluções, sempre recomeçadas, tinham inquietado e chocado demais o mundo; e porque infelizmente elas sempre malograram. No fim, acabamos punidos por uma destruição tão completa quanto aquela com que outrora nos haviam ameaçado o Manifesto de Brunswick ou o discurso do girondino Isnard: a fim de sepultar tantas lembranças temíveis e o grande nome de Paris (O infame Isnard, presidindo a Convençã, em meio de 1793, tinha tido já a ousadia de antecipadamente anunciar: ‘Se, em virtude dessas incessantes insurreições, chegar-se a ameaçar a representação nacional, eu vos declaro, em nome de toda a França que Paris será aniquilada; brevemente haverá que se esquadrinhar as margens do Sena para saber se essa cidade existiu’.)
Quem vê as margens do Sena vê nossas penas: não existe nada além de apressadas colunas de um formigueiro de escravos motorizados. O historiador Guichardin, que vivenciou o fim da libertação de Florença, registrou em seu Memento: ‘Todas as cidades, todos os Estados, todos os reinos são mortais; todas as coisas, seja naturalmente seja por acidente, cedo ou tarde chegam ao seu limite e têm de acabar; de maneira que um cidadão que veja a derrocada de sua terra não tem de se lamentar tanto pela infelicidade dessa terra e pela desventura que, dessa vez, ela encontrou; mas, em vez disso, deve chorar pela sua própria infelicidade; porque à cidade aconteceu o que forçosamente iria acontecer, e a verdadeira infelicidade foi nascer no momento em que tinha de se produzir tamanho desastre’.
(...)
Uma descrição da vida rural na Inglaterra, que Howitt publicou em 1840, podia se concluir tomada de um contentamento sem dúvida abusivamente generalizado: ‘Todo homem que sabe apreciar os prazeres da vida deve agradecer aos Céus por terem-no permitido viver nesta terra e nesta época’. A nossa época, ao contrário, não se arrisca a exprimir muito enfaticamente, em relação à vida que se vive nos dias de hoje, a repugnância geral e o terror que começam a se ressentir em tantos terrenos. Eles são ressentidos mas nunca expressos antes das revoltas sangrentas. As razões para isso são simples. Os prazeres da vida foram recentemente redefinidos de forma autoritária: primeiro nas suas prioridades e em seguida na totalidade de sua substância. E as autoridades que os redefiniam também podiam, a qualquer momento, sem obstáculos de qualquer natureza, decidir qual modificação poderia mais lucrativamente se fazer introduzir nas técnicas de sua fabricação, inteiramente liberadas da necessidade de agradar. Pela primeira vez, os donos de tudo o que se faz são também os mestres de tudo o que a respeito se diz. Assim, a demência ‘construiu sua casa nos altos da cidade’.
Aos homens que não desfrutaram de uma autoridade tão indiscutível e universal, foi proposto apenas, nessa questão de suas sensações dos prazeres da vida, que se submetessem sem fazer a mais leve observação, do mesmo modo como eles já tinham eleito, em todas as demais questões, representantes de sua submissão. E ao se deixarem privar dessas trivialidades, que eram apontadas como indignas de sua atenção, mostraram a mesma bonomia que já tinham revelado ao olhar, a distância, esvaírem-se as poucas grandezas da vida. Quando ‘ser totalmente moderno’ se tornou uma lei especial proclamada pelo tirano, o que o escravo honesto teme, acima de tudo, é que ele possa ser suspeito de saudosismo.
Mais sábios que eu já explicaram muitíssimo bem a origem do que sucedeu: ‘O valor de troca só pôde surgir como agente do valor de uso, mas ao vencer por suas próprias armas criou as condições para seu domínio autônomo. Mobilizando todo o costume humano e apropriando-se do monopólio de sua satisfação, ele acabou por dirigir o uso. O processo de troca se identificou a todo uso possível e o subjugou. O valor de troca é o condottiere do valor de uso, que acaba por empreender a guerra por conta própria’.
‘O mundo é só desilusão’, resumiu Villon num único octossílabo (‘Le monde n’est qu’abusion’ é um octossílabo, ainda que um diplomado dos dias de hoje provavelmente não consiga reconhecer mais de seis sílabas nesse verso). A decadência geral é um meio a serviço do império da servidão, e é somente por ser esse meio que lhe é permitido fazer-se denominar progresso.
É preciso saber que doravante a servidão quer ser verdadeiramente amada por si mesma e não mais porque proporcionaria alguma vantagem extrínseca. Ela, que anteriormente podia passar por uma proteção já não protege mais nada. Agora, a servidão não procura se justificar pretendendo ter conservado, seja onde for, outro encanto que não o simples prazer de conhecê-la.
Mais à frente direi como se desenrolaram certas fases de uma outra guerra pouco conhecida: entre a tendência geral da dominação social nesta época e o que, apesar de tudo, pôde vir a perturbá-la, como se sabe. (...)”
Retirado de Panegírico, Guy Debord, 1993
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