A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

30 de julho de 2013

Nadificar


-Inventei um novo verbo

-Qual?

-Nadificar!

- Em que se emprega o nadificar?  Ele diz poema?

- Depende!
   É uma despalavra por não dizer, ela diz o nada
  
- Mas silenciar já não fala disso?

- O silêncio fala por ausência,
  Silêncio fala quando cala
  Silênciar é ativo, implica em não percebimento
  Quem fala é o não ouvir dele
  Nadificar fala por não dizer
  É passivo
  Não tem significado ou significância apenas insignificância
 
- É verso em vento?

- Não, é reverso do intento de dizer qualquer coisa
  Diz coisa alguma, ou menos ainda
  Diz que não existo
  Ou ao menos que insisto nisso de não ser
  Nadificar é habitar o outro que existe em nós mesmos
  E quando chegar a ser o outro; então sair
  Não presta para quando
  Desnunca o ser e o sempre

- De quê serve o não então?

- Serve para antagonizar o sim
  O nadificar não presta nem pra afirmar nem desconfirmar

- Se não presta para nada então serve para tudo?

  Nem para um nem para outro
  Eu diria até que para menos ainda
  Se for de repente
  Se for vagamente
  Se for rente ao abismo da gente;
  ou quase lá
  Então talvez

- E se talvez?
  Então não é
  É o que não é
  E quando se está não ficar,
  Andar sempre rumo a outro lugar

- Além?
 
- Diria eu que é aquém também!
   Nadificar é não transformar nada
   E não falar sem se calar
   Não estar no quando ou no aonde
   Estar aqui sem ser
   Impermanecer
   Desmetafisicar
 
- Nadifico em baixo disso!

Raimundo Beato

*descobri agora que Sartre já usava tal termo.
[De nada + -ificar.]

Verbo transitivo direto.

1. Filos. Segundo Sartre (v. sartriano), processo pelo qual a consciência, exercendo o modo de ser que lhe é próprio, torna para-si (q. v.) o que é em si (q. v.), e o anula. [Conjug.: v. trancar.] 

No horizonte

No horizonte se pratica o esticamento do olhar até que a palavra sempre encontre o nunca

Raimundo Beato

25 de julho de 2013

guerra fria?

Naufragou a utopia
Acabou a poesia

O troço é sério
O bicho é feio
O papo é reto

A guerra, agora, é fria

É fria porque é de trás da lente...

Mas também é quente
Do ranger de dente
Da chama do molotov

Do gás que arde o pulmão
Da borracha que dói no lombo
Da correria da multidão

Do grito que rasga a garganta da gente
NÃO
          VAI
                  TER
                          COPA!!!

24 de julho de 2013

CEIV - Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas


Decreto cria comissão para investigar atos de vandalismo no RJ

Na última segunda-feira, 22, o governo do RJ criou, por meio do decreto 44.302/13, a CEIV - Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas. A comissão será composta por integrantes do MP, da Secretaria de Segurança e das polícias Civil e Militar, unificando o trabalho de investigação.

A comissão foi criada com o objetivo de investigar os recentes atos de destruição ao patrimônio público e privado em protestos.

No entanto, o decreto parece ter desagrado a comunidade jurídica. Nos matutinos de hoje, 24, juristas criticam a norma por ela permitir à Comissão, entre outras coisas, “requisitar informações” a empresas de telefonia e internet de usuários suspeitos de envolvimento com os protestos.

"A Constituição Federal assegura a inviolabilidade das comunicações entre pessoas (...) O decreto é inconstitucional." Marcus Vinicius Coêlho, presidente da OAB, na Folha de S.Paulo

"Em Estados democráticos de direito, a privacidade é uma garantia fundamental inalienável da sociedade", Bruno Dantas, conselheiro do CNJ, na Folha de S.Paulo

"É um delírio, abuso de autoridade. Quem edita um decreto desse está brincando com o Estado democrático." Técio Lins e Silva, advogado do escritório Técio Lins e Silva, Ilídio Moura & Advogados Associados, na Folha de S.Paulo

Trata-se de “um expediente canhestro inventado pelo governador para retirá-lo do foco, porque as manifestações são contra ele.” Sérgio Bermudes, advogado do Escritório de Advocacia Sérgio Bermudes, no Estadão

“Seria questionável, sim, se poderia o decreto estabelecer prazo de 24 horas para atendimento”. Ministro Carlos Velloso, no Estadão

Em nota, divulgada na noite de terça-feira, 23, a assessoria do Governo do RJ esclarece que não cabe à Comissão quebrar sigilo:

“CEIV não quebra sigilos

O decreto do Governo do Estado do Rio de Janeiro que cria a Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas (CEIV) sempre esteve em absoluta sintonia com o Ministério Público RJ e, em momento algum, estabeleceu que a CEIV quebrasse sigilos. Somente à Justiça caberá a quebra de sigilos solicitados pela Comissão Especial que é presidida pelo MP-RJ”.

Veja a íntegra do decreto.


____________

DECRETO Nº 44.302 DE 19 DE JULHO DE 2013

CRIA COMISSÃO ESPECIAL DE INVESTIGAÇÃO DE ATOS DE VANDALISMO EM MANIFESTAÇÕES PÚBLICAS - CEIV E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.

O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, no uso de suas atribuições constitucionais e legais,

CONSIDERANDO:

- os recentes e reiterados acontecimentos envolvendo atos de vandalismo perpetrados por grupos organizados, causadores de danos à incolumidade física de pessoas e destruição do patrimônio público e privado; e

- a necessidade de as instituições públicas incumbidas da defesa do Estado Democrático de Direito se organizarem para promover uma maior eficiência na investigação e na tomada de providência para a prevenção da ocorrência de novos atos de vandalismo e punição das práticas criminais já perpetradas.

DECRETA:

Art. 1º - Fica instituída a Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas - CEIV, a ser composta por representantes das seguintes instituições:

a) Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro;

b) Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro;

c) Polícia Civil;

d) Polícia Militar.

§ 1º - Os Chefes das Instituições mencionadas neste artigo indicarão os integrantes da Comissão, composta por tantos membros quantos por elas considerados necessários.

§ 2º - A Presidência da Comissão caberá a um dos representantes do Ministério Público, indicado pelo Procurador-Geral de Justiça.

§ 3º - A Comissão contará com a estrutura administrativa necessária para o seu funcionamento, devendo as suas requisições de pessoal e infraestrutura serem atendidas com prioridade.

§ 4º - O Secretário Chefe da Casa Civil acompanhará os trabalhos da Comissão, podendo solicitar informações necessárias para a tomada de decisões por parte do Governador do Estado.

§ 5º - A Comissão tem por finalidade a otimização dos trabalhos de investigação, não importando na alteração das competências e prerrogativas legais das Instituições dela integrantes.

Art. 2º - Caberá à CEIV tomar todas as providências necessárias à realização da investigação da prática de atos de vandalismo, podendo requisitar informações, realizar diligências e praticar quaisquer atos necessários à instrução de procedimentos criminais com a finalidade de punição de atos ilícitos praticados no âmbito de manifestações públicas.

Art. 3º - As solicitações e determinações da CEIV encaminhadas a todos os órgãos públicos e privados no âmbito do Estado do Rio de Janeiro terão prioridade absoluta em relação a quaisquer outras atividades da sua competência ou atribuição.

Parágrafo Único - As empresas Operadoras de Telefonia e Provedores de Internet terão prazo máximo de 24 horas para atendimento dos pedidos de informações da CEIV.

Art. 4º - Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Rio de Janeiro, 19 de julho de 2013.

SÉRGIO CABRAL

23 de julho de 2013

Versos de circunstância

da noite mais azeda
do meio da treta
do atrito gritando na greta
do leblon
(brumas de Avalon
na babylon de cabral, el cabrón)
um vândalo urra:
“i am the one
orgasmatron!”

na cidade de são paulo
(metrópole por um fio,
desativada, reacionária & vil
abastada de grana & rivotril)
lemos todos (anotando)
uma escrota escritarada
serva, suja, súdita
que não diz nada
ossos do difícil ofício
de levar a vida
na base da porrada

pra desopilar a cuca
um café, umas tragadas
ventania & bem-te-vi
prosa minada
com algumas risadas

dizem que com pêlos
não pega nada
mas, se lisinha
é de morte a picada

aranha peluda
aranha pelada

Fabiano Calixto

Do Blog Meu pé de Laranja Mecânica

A voz do Brasil

em brasília 19 horas noite e dia
em brasília 19 horas em 15 minutos
em brasília 19 horas nunca passam
em brasília 19 horas sem saber pra onde ir
em brasília 19 horas mudando de estação
em brasília 19 horas não é nada
em brasília 19 horas de silêncio
em brasília 19 horas do segundo tempo
em brasília 19 horas desde 1500
em brasília 19 horas procurando outras vozes
em brasília 19 horas desligando o rádio
em brasília 19 horas 19 honras 19 taras
em brasília 19 horas com a mulher do ministro
em brasília 19 horas noves fora nada a declarar
em brasília 19 horas esperando ônibus
em brasília 19 horas de atropelamentos no eixão
em brasília 19 horas sem escrever um poema
em brasilia 19 horas embaixo do bloco
em brasília 19 horas sem fim

Nicolas Behr

peregrino do estranho

no início vai sair sangue muito sangue
no início vai doer
depois não vai doer mais não
no início você vai sofrer
- aliás, você está aqui pra que? –
no início você vai se desesperar
depois não vai se desesperar mais não

no início você vai querer morrer
depois não vai querer morrer mais não

Nicolas Behr

tenho medo de morrer

tenho medo de morrer
não a morte morta que os mortos morrem

tenho medo de morrer dentro de mim
sem o eu que me habita
naufrago de mim mesmo

tenho medo de morrer um velho eu
lá por dentro da caverna
frio e cego de mim mesmo
sem as cores do meu nome
não meu nome certo
mas o nome anônimo dos meus gestos
meu verdadeiro nome
pleno
silencioso
e eloquente

não tenho medo de envelhecer ou de me ser
a cada dia mais e mais
até que as mil manias que carrego sejam mais eu mesmo do que sou
este racional ser que me rumina em cada pensamento planejante do futuro

espero o futuro que me chegará de dentro um dia
e me fará quem sempre fui

Raimundo Beato

22/07/2013 - Resumo da prisão dos dois ninjas após a saída do papa do Palácio Guanabara



Lá pelo minuto 12 o reporter é aborado por policiais e revistado e depois detido.

Dois repórteres da Mídia Ninja foram presos em manifestaçoes durante visita do Papa

Repórter do Mídia NINJA foi preso ontem a noite em mainfestação no Largo do Machado (próximo ao palácio da Gunabara, sede do governo onde Papa havia sido recebido por representantes do governo brasileiro).

Após manifestantes chamarem policiais de cachorrinhos do governador, policial se aproxima do reporter e comeca a revistá-lo. Um homem sem identificaçao colocou as maos no bolso do reporter que já havia entregue os documentos. O reporter se irritou e pediu a identificaçao do homem. Perguntou se este era policial e porque o mesmo não utilizava identificaçao nem farda? O homem permaneceu calado falando ao celular. Posteriormente o reporter foi detido, ao perguntar o motivo, o policial nao disse o motivo e depois disso a transmissao foi interrompida.

Tudo isso transmitido pelo link Postv.org

Seguem alguns videos



Mas tarde outro reporter foi preso ao se dirigir a delegacia do Catete onde o primeiro repórter havia sido detido.



Uma terceira imagem, ocorrida mais cedo próxima ao palácio Guanabara, parece identificar o momento em que alguém atirou um cocktail molotov em direção a policia. Há alegações de que esta pessoa seria um policial infiltrado e que após ter lançado a bomba correu em direção a um grupo de policiais e trocou de blusa.


22 de julho de 2013

18 de julho de 2013

PosTV



O projeto começou em junho de 2011, após o sucesso das transmissões ao vivo das marchas da Maconha e da Liberdade, em São Paulo. Depois dessas manifestações lançamos alguns programas, como o Supremo Tribunal Liberal (Claudio Prado), o Segunda Dose (Bruno Torturra) e o Desculpe a Nossa Falha (Lino Bocchini). Começaram a pipocar também transmissões ao vivo de festivais independentes de música em todo país. A #posTV, na prática, reinventa e potencializa a conhecida tecnologia do streaming (transmissão de vídeo pela internet), baseando-se em dois pontos centrais: liberdade de expressão absoluta (aproveitando que não temos anunciantes nem padrinhos) e a força da nossa rede, que é grande e divulga forte todos os programas, sempre com a marca #posTV.

Os formatos são livres também. Tem programa de debate, transmissão de show, sofá armado no meio da rua com o apresentador entrevistando os passantes. E como estamos na internet e sempre ao vivo, a interatividade é outro ponto responsável pelo sucesso da iniciativa. Quem está assistindo manda comentários e perguntas e, não raro, até entra por skype e participa do papo. O projeto vem ganhando respeitabilidade e já deu vários furos: foi, por exemplo, o primeiro a divulgar as imagens da prisão de Emicida durante um show em Belo Horizonte maio passado e também foi o veículo escolhido pelo ex-ministro Franklin Martins, agora em junho, para sua primeira entrevista após deixar o governo.

http://www.postv.org/


Da Carta Maior

Brasília – Matheus Preis, 19 anos, militante do Movimento Passe Livre (MPL), foi às mobilizações em São Paulo e à reunião com a presidenta Dilma Rousseff, em Brasília, vestido da mesma maneira: tênis e camiseta preta ilustrada com uma pessoa derrubando a roleta do metrô. Esse chute furioso é o ícone, ou um dos tantos surgidos dessa revolta que explodiu sem aviso.

O Movimento Passe Livre encabeçou as marchas paulistas do mês passado, onde ganhou credibilidade no movimento popular ao conquistar o que parecia impossível, a baixa do preço do transporte público.

Foi só o começo. Por trás das reivindicações contra o aumento do ônibus e do metrô, vieram as demandas por melhor saúde pública, educação, o repúdio à repressão policial, à corrupção e aos gastos na organização da Copa do Mundo. A faísca do MPL se transformou em incêndio. E embora Dilma não seja o principal alvo dos manifestantes que deixaram o país de cabeça para baixo, a aprovação de seu governo caiu verticalmente de 57 a 30%, segundo uma pesquisa aparecida sábado (13), e a reeleição já não é incontestável – sua intenção de voto baixou de 51 a 30%, segundo a mesma pesquisa.

– O desgaste do governo favorece a estratégia do MPL?

– Nós não queremos derrubar ninguém, não estamos metidos em uma disputa partidária ou pela conquista do governo. Nossa disputa é para que se apliquem outras políticas públicas, o que nós queremos é derrubar as injustiças... derrubar a exclusão.

– Dilma é uma companheira ou uma inimiga?

– Ehhh, enfim... depois da reunião que tivemos com ela na segunda-feira (8, no Palácio do Planalto), dizemos que no atual momento em que nos encontramos da luta pelo transporte, todas as propostas dela foram iguais às dos patrões. Queremos seguir baixando as tarifas com mais investimentos no transporte, chegar a zero, e ela o que faz é dar uma baixa na passagem reduzindo os impostos aos empresários, sem tocar nos lucros, isso não resolve nada.

– Veem diferenças entre Dilma Rousseff e o PSDB?

– Não são a mesma coisa, se o PSDB estivesse na presidência a repressão seria muito mais descarada, desavergonhada, a polícia viria abertamente atacar-nos, como fez no começo das manifestações em São Paulo. O PT é diferente do PSDB, o PT é contraditório, por um lado está contra a repressão e por outro lado apostou no desgaste de nosso movimento. O PT é menos duro que o PSDB na defesa dos patrões.

– Depois da reunião entre vocês e Dilma, o secretário-geral da presidência, ministro Gilberto Carvalho, declarou que não existe democracia sem partidos. Coincide?

– Minha opinião, não a de todo o MPL, é que não se necessitam partidos para que haja democracia. Partido se necessita para ter o poder de um Estado burguês, mas nós nos organizamos por fora da institucionalidade, os partidos obstruem nossa luta querendo amarrá-la aos seus interesses.

Não se precisa de um programa totalizante para lutar pelo transporte grátis, nós somos de esquerda, mas não partimos de uma visão totalizante para lutar pela passagem, damos a luta, e depois vamos ao ideológico – afirma o garoto da camiseta preta com o símbolo da roleta destruída, vestimenta que o iguala aos ativistas do MPL.

Talvez o Brasil não volte a ser o país que era depois de 15 dias de protagonismo popular primário. Há uma disputa aberta pelo sentido ideológico da revolta, no momento inclinada à esquerda, e o rumo político para onde marcham os milhões de indignados no Rio, Brasília, Salvador, Belo Horizonte e dezenas de cidades, depois de que o minúsculo MPL irrompeu como um raio na Avenida Paulista, a principal de São Paulo, catalisando a raiva pelo caro e ruim do transporte na maior cidade do país.

– A origem da revolta teve uma inspiração progressista, com o correr dos dias se viram grupos dizendo “Lula vai pra Cuba” e até quem reivindicou os militares.

– Seguramente essas pessoas foram aparecendo nas manifestações, vemos esses grupos com muito cuidado, para que não tomem conta da manifestação, mas em nenhum momento o sentido amplo, social, de esquerda se perdeu. Acho que se mantém o controle político das mobilizações, mas nós não somos a direção de tudo isso.

– O MPL se define como uma organização que faz uso da violência política?

– A violência existe desde o Estado que nos impõe esse transporte, essa educação, e nós nos opomos a aceitar essas imposições que parecem algo natural. Nosso lema é “se a passagem não baixar, a cidade vai parar”, nós utilizamos uma violência política para impedir o funcionamento da cidade, não estamos a favor de agredir ninguém, nem atacar prédios públicos. É uma violência que está no símbolo da ruptura da roleta, violência contra uma cidade onde as pessoas circulam como mercadorias. O discurso da paz esconde as contradições da sociedade, nós estamos contra este discurso pacifista da imprensa hegemônica. A realidade é que não existe paz, o Estado manda a polícia matar na periferia, os hospitais matam as pessoas com um mau serviço.

Os garotos do MPL, em geral não passam de 25 anos, são um sucesso midiático no Brasil e na imprensa internacional, onde ainda prevalece a matriz de opinião anglo-saxã que equipara o fenômeno brasileiro com a “primavera árabe” sem reparar em outras analogias existentes na América Latina.

– O caso brasileiro é o suficientemente eclético, mas não seria mais apropriado compará-lo com o processo encabeçado pelos jovens “pinguins” do Chile antes que com o mundo árabe?

– É verdade, há comparações erradas. Eu não discuti isso com meus companheiros, mas acho que talvez seja mais preciso ser comparado com os estudantes chilenos que com os jovens árabes, porque nós como os chilenos lutamos por uma agenda pontual, eles pela educação gratuita e pública, nós aqui pelo transporte. Nós não vamos à rua como os árabes que iam contra algumas ditaduras, contra o sistema. Nós usamos um método parecido ao dos chilenos, enfrentar todo o Estado em um ponto claro, o transporte, com ações diretas. No Chile se inviabilizou o funcionamento das universidades, em São Paulo a cidade deixou de funcionar. Nós não pedimos a queda de Dilma como os egípcios que pediam a saída de (Hosni) Mubarak.

Depois do transporte, outra demanda cada vez mais estendida nas manifestações é o repudio aos gastos excessivos e nem sempre transparentes com a Copa das Confederações, que terminou com o choque entre o Brasil e a Espanha, no Maracanã.

– É curioso que no país do futebol exista tamanho protesto contra a Copa.

– Nós estamos vendo que isso foi crescendo em cada jogo da Copa das Confederações.

Há dois meses havia mobilizações fortes no Rio contra o dinheiro gasto para reformar o Maracanã, pelo desalojo dos indígenas (ocupantes de um prédio que deve ser demolido), mas não se pode comparar com o que poderia acontecer no domingo na final. Também se soma a indignação pelo massacre de 10 pessoas na favela da Maré. No Rio a princípio as manifestações eram de classe média, agora começa a se somar a periferia. O mesmo está acontecendo em São Paulo, nas últimas marchas vimos que começou a somar-se muita gente que vem dos movimentos de bairros do leste, onde estão as favelas mais importantes.

– Pelé recomendou não ir às manifestações e ver os jogos em casa.

– Isso mostra sua falta de compromisso completo com a realidade política que está aparecendo em todas as partes. É uma pena que uma figura pública importante esteja incentivando as pessoas a não se manifestarem, que considere que seja mais importante o futebol que as reivindicações sociais.
Eu gosto de futebol, não sou torcedor, gosto de jogar, mas isso do Pelé eu não gostei nem um pouco.

@DarioPignotti

Tradução: Liborio Júnior

Jovem que acusou sobrinho de 'Rei do Ônibus' de agressão é detido

Do G1

Ruan Martins foi encontrado com pequena quantidade de maconha nesta 3ª. No sábado (12), ele foi atingido por um cinzeiro durante ato em casamento.

O jovem Ruan Martins Nascimento, de 24 anos, foi detido nesta terça-feira (16). O rapaz, que foi agredido por um cinzeiro jogado do alto do Hotel Copacabana Palace no sábado (12), enquanto protestava durante casamento da neta do empresário Jacob Barata (conhecido como o "Rei dos Ônibus), foi abordado, nesta terça, por policiais do 5º BPM em Santa Teresa, no Centro do Rio. Em sua mochila teria sido encontrada uma pequena quantidade de maconha, um dia depois do jovem apontar Daniel Barata, sobrinho do "Rei dos Ônibus", como autor da agressão.

A detenção foi confirmada pela advogada de Ruan, Heloisa Samy, ao G1. Ela, no entanto, contou outra versão. "Ele estava em frente a casa do irmão, conversando com um casal de amigos quando foi abordado. Não tinha nada que chamasse atenção, mas fizeram uma revista pessoal e encontraram uma 'bituca' na bermuda dele. Ele vai assinar como usuário, mas está supertranquilo. Somente a família ficou um pouco preocupada, porque é evangélica", disse. De acordo com Heloisa, às 23h45 ele estava prestes a ser liberado da delegacia.

Na segunda-feira (15), enquanto a polícia tentava localizar o endereço do acusado, Ruan reconheceu Daniel. "Na delegacia, o Ruan fez o reconhecimento por foto do Daniel como sendo a pessoa que jogou o cinzeiro. Isso só reforça os indícios que já tínhamos contra Daniel. Os vetores de investigação apontam para ele como o autor da agressão", disse o titular da 12ª DP (Copacabana), José William de Medeiros, na noite de segunda-feira.

A polícia aguarda as imagens das câmeras de segurança do hotel e o depoimento do acusado, que ainda não foi marcado, para decidir se o jovem será ou não indiciado pelo crime. A advogada de Daniel, Fernanda Tórtima, disse ao G1, na tarde desta terça-feira, que vai provar que o rapaz é inocente.

"O Daniel vai prestar depoimento, claro, mas ainda não sabemos quando. Agora, não foi ele que jogou o cinzeiro. A gente tem certeza absoluta de que isso vai ficar claro ao final das investigações. Ele não praticou nenhum ato de violência naquela noite", disse a advogada.

Na sua página no Facebook, Daniel Barata pediu desculpas por ter jogado um "aviãozinho" feito com uma nota de R$ 20 reais da sacada do hotel, mas negou a agressão ao manifestante. Minutos após a publicação da reportagem pelo G1, Daniel voltou a apagar o perfil na rede social.

Ditadura do proletariado em Gotham City

Artigo de Slavoj Žižek sobre “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge”



Confira abaixo artigo inédito, traduzido por Rogério Bettoni, enviado com exclusividade pelo autor para a Boitempo publicar em seu Blog.

Adverte-se aos leitores que o texto contém detalhes da trama de Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge.

Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge confirma mais uma vez como os blockbusters de Hollywood são indicadores precisos da situação ideológica da nossa sociedade. A narrativa (resumida) se dá da seguinte maneira. Oito anos depois dos eventos de Batman – O Cavaleiro das Trevas, capítulo anterior da saga Batman, a lei e a ordem prevalecem em Gotham City: sob os extraordinários poderes do Ato Dent, o comissário Gordon praticamente erradicou o crime violento e organizado. No entanto, ele se sente culpado pela cobertura dos crimes de Harvey Dent (Dent morreu ao tentar matar o filho de Gordon, salvo por Batman, que assumiu a culpa em nome da manutenção do mito de Dent, levando a uma demonização de Batman como vilão de Gotham) e planeja admitir a conspiração em um evento público de celebração a Dent, mas acaba concluindo que a cidade não está preparada para a verdade. Bruce Wayne, que não atua mais como Batman, vive isolado na própria Mansão enquanto sua empresa desmorona depois de ter investido em um projeto de energia limpa criado para aproveitar a energia nuclear, mas encerrado quando ele descobriu que o núcleo poderia ser transformado em uma bomba. A lindíssima Miranda Tate, membra do conselho administrativo da Wayne Enterprises, convence Wayne a refazer a sociedade e continuar com seus trabalhos filantrópicos.
Aqui entra o (primeiro) vilão do filme: Bane, líder terrorista e antigo membro da Liga das Sombras, consegue a cópia do discurso de Gordon. Depois que as tramas financeiras de Bane quase levam a empresa de Wayne à falência, Wayne confia a Miranda a tarefa de controlar seus negócios, além de ter com ela um breve caso amoroso. (Nesse aspecto ela compete com a gata-ladra Selina Kyle, que rouba dos ricos para redistribuir a riqueza, mas acaba se juntando a Wayne e às forças da lei e da ordem.) Ao descobrir a movimentação de Bane, Wayne retorna como Batman e confronta Bane, que afirma ter assumido a Liga das Sombras após a morte de Ra’s Al Ghul. Depois de deixar Batman gravemente ferido em um combate corpo a corpo, Bane o coloca numa prisão de onde é praticamente impossível fugir. Seus companheiros de prisão contam para Wayne a história da única pessoa que conseguiu escapar: uma criança motivada pela necessidade e pela mera força de vontade. Enquanto o prisioneiro Wayne se recupera dos ferimentos e se prepara para ser Batman de novo, Bane consegue transformar Gotham City em uma cidade-Estado isolada. Primeiro ele atrai para o subsolo a maior parte dos policiais de Gotham e os prende lá; depois provoca explosões que destroem a maioria das pontes que conectavam Gotham City ao continente, anunciando que qualquer tentativa de deixar a cidade resultaria na detonação do núcleo de Wayne, do qual se apoderou e transformou em uma bomba.
Chegamos então ao momento crucial do filme: a tomada de poder por parte de Bane acontece junto com uma vasta ofensiva político-ideológica. Bane revela publicamente o acobertamento da morte de Dent e liberta os prisioneiros detidos pelo Ato Dent. Condenando os ricos e poderosos, ele promete devolver o poder ao povo, convocando as pessoas comuns a “tomarem a cidade de volta” – Bane revela-se como “o manifestante definitivo do Occupy Wall Street, convocando os 99% a se juntarem para derrubar as elites sociais”[1]. Segue-se então a ideia do filme de poder do povo: uma sequência mostra  uma série de julgamentos e execuções dos ricos, as ruas tomadas pelo crime e pela vilania… alguns meses depois, enquanto Gotham City continua sofrendo o terror popular, Wayne consegue fugir da prisão, retorna a Gotham como Batman e convoca os amigos para ajudá-lo a libertar a cidade e desarmar a bomba nuclear antes que ela exploda. Batman confronta e domina Bane, mas Miranda intervém e apunhala Batman – a benfeitora social revela-se como Talia al Ghul, filha de Ra’s: foi ela que escapou da prisão quando criança e foi Bane que a ajudou a fugir. Depois de comunicar seu plano de terminar a tarefa do pai de destruir Gotham, Talia foge. Na confusão que se segue, Gordon destrói o dispositivo que permitia a detonação remota da bomba enquanto Selina mata Bane, permitindo que Batman vá atrás de Talia. Ele tenta forçá-la a levar a bomba para a câmara de fusão onde pode ser estabilizada, mas Talia inunda a câmara. Talia morre quando seu caminhão bate, confiante de que a bomba não pode ser detida. Usando um helicóptero especial, Batman transporta a bomba para além dos limites da cidade, onde ela explode sobre o oceano e supostamente o mata.
Agora Batman é celebrado como um herói cujo sacrifício salvou Gotham City, enquanto Wayne é tido como morto nos motins. Após seus bens serem divididos, Alfred vê Bruce e Selina juntos em um café em Florença, enquanto Blake, jovem policial honesto que conhecia a identidade de Batman, herda a Batcaverna. Em suma, “Batman salva a situação, aparece incólume e continua com uma vida normal, enquanto outro o substitui no papel de defender o sistema”[2]. A primeira pista dos fundamentos ideológicos desse final é dada por Gordon, que, no (suposto) enterro de Wayne, lê as últimas linhas de Um conto de duas cidades, de Dickens: “Esta é, sem dúvida, a melhor coisa que faço e que jamais fiz; este é, sem dúvida, o melhor descanso que terei e que jamais tive”. Alguns críticos do filme interpretaram essa citação como um indício de que o filme “atinge o nível mais nobre da arte ocidental. O filme apela para o centro da tradição norte-americana – o ideal do nobre sacrifício pelo povo comum. Batman deve se humilhar para ser exaltado e renunciar à própria vida para encontrar uma nova. [...] Como máxima figura de Cristo, Batman sacrifica a si para salvar os outros”[3].
Dessa perspectiva, com efeito, Dickens está apenas a um passo de distância de Cristo no Calvário: “Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De fato, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida?” (Mt 16:25-26 da Bíblia de Jerusalém). O sacrifício de Batman como repetição da morte de Cristo? Essa ideia não seria comprometida pela última cena do filme (Wayne com Selina em um café em Florença)? O equivalente religioso desse final não seria a conhecida ideia blasfema de que Cristo realmente sobreviveu à crucificação e teve uma vida longa e pacífica (na Índia, ou talvez no Tibete, de acordo com algumas fontes)? A única maneira de remir essa cena final seria interpretá-la como um devaneio (alucinação) de Alfred, que se senta sozinho em um café em Florença. Outra característica dickensiana do filme é a queixa despolitizada sobre a lacuna entre ricos e pobres – no início do filme, Selina sussurra para Wayne enquanto eles dançam em um baile exclusivo da elite: “Está vindo uma tempestade, sr. Wayne. É melhor que estejam preparados. Pois quando ela chegar, todos se perguntarão como acharam que poderiam viver com tanto e deixar tão pouco para o resto”. Nolan, como todo bom liberal, está “preocupado” com essa disparidade e reconhece que essa preocupação impregnou o filme:
O que vejo do filme relacionado ao mundo real é a ideia de desonestidade. O filme inteiro trata da chegada do seu ponto crítico. [...] A ideia de justiça econômica perpassa o filme, e por duas razões. Primeiro, Bruce Wayne é um bilionário. Isso tem de ser levado em conta. [...] E segundo, há muitas coisas na vida, e a economia é uma delas, em que precisamos confiar em grande parte do que nos dizem, pois a maioria de nós se sente desprovida das ferramentas analíticas para saber o que está acontecendo. [...] Não acho que existe uma perspectiva de direita ou de esquerda no filme. Ele faz apenas uma avaliação honesta, ou uma exploração honesta, do mundo em que vivemos – de coisas que nos preocupam.[4]
Por mais que os espectadores saibam que Wayne é extremamente rico, eles tendem a se esquecer de onde vem a riqueza dele: fabricação de armas e especulação financeira, e é por isso que as jogadas de Bane na Bolsa de Valores podem destruir seu império – traficante de armas e especulador, esse é o verdadeiro segredo por trás da máscara do Batman. De que modo o filme lida com isso? Ressuscitando o tema arquetípico dickensiano do bom capitalista que se envolve no financiamento de orfanatos (Wayne) versus o mau e ganancioso capitalista (Stryver, como em Dickens). Nessa moralização dickensiana excessiva, a disparidade econômica é traduzida na “desonestidade” que deveria ser “honestamente” analisada, embora não tenhamos nenhum mapeamento cognitivo confiável, e uma abordagem “honesta” como essa nos leva a mais um paralelo com Dickens – é como afirmou Jonathan (corroteirista), irmão de Christopher Nolan, sem rodeios: “Para mim, Um conto de duas cidades foi o retrato mais angustiante de uma civilização reconhecível e descritível que se desintegrou completamente em pedaços. Com os terrores em Paris, na França daquela época, não é difícil imaginar que as coisas dariam tão errado assim”[5]. As cenas do vingativo levante populista no filme (uma multidão sedenta pelo sangue dos ricos que os ignoraram e exploraram) evocam a descrição de Dickens do Reino do Terror, tanto que, embora não tenha nada a ver com política, o filme segue o romance de Dickens ao retratar “honestamente” os revolucionários como fanáticos possuídos, e assim fornece
a caricatura do que, na vida real, seriam revolucionários comprometidos ideologicamente no combate da injustiça estrutural. Hollywood conta o que o establishment quer que saibamos – que os revolucionários são criaturas brutais, sem nenhum respeito pela vida humana. Apesar da retórica emancipatória sobre a libertação, eles têm projetos sinistros por trás. Portanto, quaisquer que sejam as razões, elas precisam ser eliminadas.[6]
Tom Charity destacou corretamente “a defesa que o filme faz do establishment na forma de bilionários filantrópicos e uma polícia corrupta” – na sua desconfiança das pessoas que resolvem as coisas com as próprias mãos, o filme “demonstra tanto o desejo por justiça social quanto o medo do que realmente pode parecer nas mãos de uma multidão”[7]. Aqui, Karthick levanta uma questão bem clara sobre a imensa popularidade da figura do Coringa no filme anterior: qual o motivo de uma atitude tão hostil para com Bane quando o Coringa foi tratado com tanta mansidão no filme anterior? A resposta é simples e convincente:
O Coringa, que clama por anarquia na sua mais pura manifestação, enfatiza a hipocrisia da civilização burguesa como ela existe, mas é impossível traduzir suas visões em uma ação de massa. Bane, por outro lado, representa uma ameaça existencial ao sistema de opressão. [...] Sua força não é apenas a psique, mas também sua capacidade de comandar as pessoas e mobilizá-las rumo a um objetivo político. Ele representa a vanguarda, o representante organizado dos oprimidos que promove a luta política em nome deles para gerar mudanças sociais. Tamanha força, com o maior dos potenciais subversivos, não tem lugar dentro do sistema. Ela precisa ser eliminada.[8]
No entanto, ainda que Bane não tenha o fascínio do Coringa de Heath Ledger, há uma característica que o distingue desse último: o amor incondicional, a mesma fonte da sua dureza. Em uma cena curta mas comovente, vemos como, em um ato de amor no meio do sofrimento terrível, Bane salvou a garota Talia sem se importar com as consequências e pagando um preço terrível por isso (foi espancado quase até a morte por defendê-la). Karthick tem toda razão ao situar esse acontecimento dentro da longa tradição, de Cristo a Che Guevara, que exalta a violência como uma “obra do amor”, como nas famosas palavras do diário de Che Guevara: “Devo dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem essa qualidade”[9]. O que encontramos aqui nem é tanto a “cristificação de Che”, mas sim uma “cheização do próprio Cristo” – o Cristo cujas palavras “escandalosas” de Lucas (“se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” [Lc 14:26]) apontam exatamente na mesma direção que a famosa citação de Che: “É preciso ser duro, mas sem perder a ternura”. A afirmação de que “o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor” deveria ser interpretada juntamente com a declaração muito mais “problemática” de Guevara sobre os revolucionários como “máquinas de matar”:
O ódio é um elemento da luta; o ódio impiedoso do inimigo que nos ergue acima e além das limitações naturais do homem e nos transforma em eficazes, violentas, seletivas e frias máquinas de matar. Assim devem ser nossos soldados; um povo sem ódio não derrota um inimigo brutal.
Ou, parafraseando Kant e Robespierre mais uma vez: o amor sem crueldade é impotente; a crueldade sem amor é cega, paixão efêmera que perde todo seu vigor. Guevara está parafraseando as declarações de Cristo sobre a unidade do amor e da espada – em ambos os casos, o paradoxo subjacente consiste nisto: o que torna o amor angelical, o que o eleva acima da mera sentimentalidade instável e patética, é essa mesma crueldade, o seu elo com a violência – é esse elo que eleva o amor acima e além das limitações naturais do homem e o transforma em pulsão incondicional. É por isso que, voltando a O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o único amor autêntico no filme é o de Bane, o “amor do terrorista”, em nítido contraste a Batman.
Nesse mesmo viés, a figura de Ra’s, pai de Talia, merece um exame mais cuidadoso. Ra’s é uma mistura de características árabes e orientais, um agente do virtuoso terror lutando para contrabalancear a corrompida civilização ocidental. O personagem é interpretado por Liam Neeson, ator cuja persona na tela geralmente irradia uma nobre bondade e sabedoria (ele faz o papel de Zeus em Fúria de Titãs), e que também representa Qui-Gon Jinn em A Ameaça Fantasma, primeiro episódio da série Star Wars. Qui-Gon é um cavaleiro Jedi, mentor de Obi-Wan Kenobi, bem como o descobridor de Anakin Skywalker, acreditando que Anakin é O Escolhido que restituirá o equilíbrio do universo, ignorando os alertas de Yoda sobre a natureza instável de Anakin; no final de A Ameaça Fantasma, Qui-Gon é morto por Darth Maul[10].
Na trilogia Batman, Ra’s também é professor do jovem Wayne: em Batman Begins, ele encontra Wayne em uma prisão chinesa; apresentando-se como Henri Ducard, ele oferece um “caminho” para o garoto. Depois que Wayne é libertado, ele segue até a fortaleza da Liga das Sombras, onde Ra’s está esperando, embora se apresente como servo de outro homem chamado Ra’s Al Ghul. Depois de um longo e doloroso treinamento, Ra’s explica que Bruce deve fazer o que for preciso para combater o mal, embora revele que eles treinaram Bruce para liderar a Liga com o intuito de destruir Gotham City, que eles acreditam ter se tornado irremediavelmente corrupta. Portanto, Ra’s não é a simples encarnação do Mal: ele representa a combinação de virtude e terror, a disciplina igualitária que combate um império corrupto, e assim pertence ao fio condutor (na ficção recente) que vai de Paul Atreides em Duna até Leônidas em 300 de Esparta. E é crucial que Wayne seja seu discípulo: Wayne foi formado como Batman por ele.
Duas críticas do senso-comum se apresentam aqui. A primeira é de que houve violência e matanças monstruosas nas revoluções reais, desde o estalinismo ao Khmer Vermelho, por isso está claro que o filme não está apenas engajado na imaginação revolucionária. A segunda, oposta, é esta: o atual movimento Occupy Wall Street não foi violento, seu objetivo definitivamente não era um novo reino do terror; na medida em que se espera que a revolta de Bane extrapole a tendência imanente do movimento OWS, o filme, portanto, deturpa de maneira absurda seus objetivos e estratégias. Os atuais protestos antiglobalistas são o exato oposto do terror brutal de Bane: este representa a imagem espelhada do terror estatal, uma seita fundamentalista e homicida dominada e controlada pelo terror, e não a sua superação por meio da auto-organização popular… As duas críticas compartilham a rejeição da figura de Bane. A resposta a essas duas críticas é múltipla.
Primeiro, devemos esclarecer o atual escopo da violência – a melhor resposta para a afirmação de que a reação violenta da multidão à opressão é pior que a opressão original foi dada por Mark Twain no seu Um ianque na corte do rei Artur: “Houve dois ‘Reinos do Terror’, se bem nos lembramos; um forjado na incandescente paixão, outro no desumano sangue frio. [...] Mas todos os nossos temores, que os tenhamos pelo menor terror, o momentâneo, por assim dizer; pois o que é o terror da morte súbita pelo machado se comparado à morte em toda uma vida de fome, frio, insulto, crueldade e desilusão? O cemitério de qualquer cidade pode bem conter os caixões cheios desse breve terror, que todos aprendemos com afinco a temer e lamentar; mas a França inteira mal conteria os caixões cheios daquele outro terror, mais antigo e verdadeiro, o terror de amargura e atrocidade indizíveis, que nenhum de nós aprendeu a encarar em toda sua amplitude ou desprezo que merece”.
Depois, deveríamos desmistificar o problema da violência, rejeitando afirmações simplistas de que o comunismo do século XX agiu com uma violência homicida excessiva demais, e de que deveríamos tomar cuidado para não cair mais uma vez nessa armadilha. Com efeito, trata-se de uma terrível verdade – mas esse foco voltado diretamente para a violência obscurece uma questão basilar: o que houve de errado no projeto comunista do século XX como tal, qual foi o ponto fraco imanente desse projeto que impulsionou o comunismo a recorrer (não só) aos comunistas no poder para a violência irrestrita? Em outras palavras, não basta dizer que os comunistas “negligenciaram o problema da violência”: foi um aspecto sócio-político mais profundo que os impulsionou à violência. (O mesmo se aplica à ideia de que os comunistas “negligenciaram a democracia”: seu projeto geral de transformação social impôs sobre eles esse “negligenciar”.) Portanto, não é apenas o filme de Nolan que foi incapaz de imaginar o poder autêntico do povo – os próprios movimentos “reais” de emancipação radical também não o fizeram e continuam presos nas coordenadas da antiga sociedade, e, por essa razão, muitas vezes o efetivo “poder do povo” foi esse horror violento.
E, por último, mas não menos importante, é muito simples dizer que não há potencial violento no movimento OWS e similares – há sim uma violência em jogo em todo processo emancipatório autêntico: o problema com o filme é que ele traduziu essa violência de uma maneira errada em terror homicida. Qual é, então, a sublime violência em relação à qual até mesmo o mais brutal assassinato é um ato de fraqueza? Façamos uma digressão em Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, que conta a história dos estranhos eventos na capital sem nome de um país democrático não identificado. Quando a manhã do dia das eleições é arruinada por chuvas torrenciais, a quantidade de eleitores presentes é extremamente baixa, mas o tempo melhora no meio da tarde e a população segue em massa para as seções eleitorais. No entanto, o alívio do governo logo acaba quando a contagem de votos revela que 70% das cédulas na capital foram deixados em branco. Frustrado por esse aparente lapso civil, o governo dá aos cidadãos a chance de refazer o fato uma semana depois, em mais um dia de eleição. O resultado é pior: agora 83% dos votos foram brancos. Os dois principais partidos políticos – o governante partido da direita (p.d.d.) e seu principal adversário, o partido do meio (p.d.m.) – entram em pânico, enquanto o infeliz e marginalizado partido da esquerda (p.d.e.) apresenta uma análise afirmando que os votos brancos são, essencialmente, um voto por sua agenda progressiva. Sem saber como responder a um protesto benigno, mas certo de que existe uma conspiração antidemocrática, o governo rapidamente rotula o movimento de “terrorismo puro e duro” e declara estado de emergência, permitindo a suspensão de todas as garantias constitucionais e adotando uma série de medidas cada vez mais drásticas: os cidadãos são apanhados aleatoriamente e desaparecem em interrogatórios secretos, a polícia e a sede do governo saem da capital, proibindo a entrada e a saída da cidade e, por fim, fabricando seu próprio líder terrorista. A cidade toda continua funcionando quase normalmente, as pessoas se esquivam de todas as ofensivas do governo com uma harmonia inexplicável e com um verdadeiro nível gandhiano de resistência não violenta… isso, a abstenção dos eleitores, é um exemplo de “violência divina” verdadeiramente radical que desperta reações de pânico brutal nos detentores do poder.
Voltando a Nolan, a trilogia dos filmes do Batman, portanto, segue uma lógica imanente. Em Batman Begins, o herói continua dentro dos limites de uma ordem liberal: o sistema pode ser defendido com métodos moralmente aceitáveis. O Cavaleiro das Trevas é de fato uma nova versão de dois clássicos de faroeste de John Ford (Sangue de Heróis e O Homem Que Matou o Facínora) que retratam como, para civilizar o ocidente selvagem, é preciso “publicar a lenda” e ignorar a verdade – em suma, como nossa civilização tem de se fundamentar em uma Mentira: é preciso quebrar as regras para defender o sistema. Ou, dito de outra forma, em Batman Begins, o herói é simplesmente uma figura clássica do vigilante urbano que pune os criminosos naquilo que a polícia não pode; o problema é que a polícia, órgão responsável pela imposição das leis, relaciona-se de maneira ambígua à ajuda de Batman: enquanto admite sua eficácia, ela também considera Batman uma ameaça ao seu monopólio do poder e uma testemunha da sua ineficácia. No entanto, a transgressão de Batman aqui é puramente formal, consiste em agir em nome da lei sem a legitimação para fazê-lo: nos seus atos, ele nunca viola a lei. O Cavaleiro das Trevas muda essas coordenadas: o verdadeiro rival de Batman não é o Coringa, seu oponente, mas Harvey Dent, o “cavaleiro branco”, o novo e agressivo promotor público, um tipo de vigilante oficial cuja batalha fanática contra o crime o conduz ao assassinato de pessoas inocentes e o destrói. É como se Dent fosse a resposta à ordem legal da ameaça de Batman: contra a vigilante luta de Batman, o sistema gera seu próprio excesso ilegal, seu próprio vigilante, muito mais violento que Batman, violando diretamente a lei. Desse modo, há uma justiça poética no fato de que, quando Bruce planeja revelar ao público sua identidade como Batman, Dent o interrompe e se apresenta como Batman – ele é “mais Batman que o próprio Batman”, efetivando a tentação à qual Batman ainda era capaz de resistir. Então quando, no final do filme, Batman assume os crimes cometidos por Dent para salvar a reputação do herói popular que incorpora a esperança para o povo comum, seu ato modesto tem uma ponta de verdade: Batman, de certa forma, devolve o favor a Dent. Seu ato é um gesto de troca simbólica: primeiro Dent toma para si a identidade de Batman, e depois Wayne – o Batman verdadeiro – toma para si os crimes de Dent.
Por fim, O Cavaleiro das Trevas Ressurge ultrapassa ainda mais os limites: Bane não seria Dent levado ao extremo, à sua autonegação? Dent que chega à conclusão de que o sistema é injusto, de modo que, para combater a injustiça com eficácia, é preciso atacar diretamente o sistema e destruí-lo? E, como parte da mesma atitude, Dent que perde as últimas inibições e está pronto para usar toda sua brutalidade assassina para atingir esse objetivo? O advento dessa figura muda a constelação inteira: para todos os participantes, inclusive Batman, a moralidade é relativizada, torna-se uma questão de conveniência, algo determinado pelas circunstâncias: é uma guerra de classes aberta, tudo é permitido para defender o sistema quando estamos lidando não só com gângsteres malucos, mas com uma revolta popular.
Será, então, que isso é tudo? O filme deveria ser categoricamente rejeitado por quem se envolve em lutas emancipatórias radicais? As coisas são mais ambíguas, e é preciso interpretar o filme da maneira que se interpreta um poema político chinês: as ausências e as presenças surpreendentes também contam. Recordemos a antiga história francesa sobre uma esposa que reclama do melhor amigo do marido, dizendo que o amigo tem se insinuado sexualmente para ela: leva algum tempo para que o amigo surpreso entenda a mensagem – de uma maneira invertida, ela o está incitando a seduzi-la… É como o inconsciente freudiano que não conhece a negação: o que importa não é um juízo negativo sobre algo, mas o simples fato de que esse algo seja mencionado – em O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o poder do povo ESTÁ AQUI, encenado como um Evento, em um passo fundamental dado a partir dos oponentes habituais de Batman (criminosos megacapitalistas, gângsteres e terroristas).
Temos aqui a primeira pista – a perspectiva de que o movimento OWS tome o poder e estabeleça a democracia do povo em Manhattan é nítida e completamente tão absurda e irreal que não podemos deixar de fazer a seguinte pergunta: POR QUE UM IMPORTANTE BLOCKBUSTER DE HOLLYWOOD SONHA COM ISSO, POR QUE EVOCA ESSE ESPECTRO? Por que sequer sonhar com o OWS culminando em uma violenta tomada de poder? A resposta óbvia (manchar o OWS com acusações de que ele guarda um potencial terrorista totalitário) não é o bastante para explicar a estranha atração exercida pela perspectiva do “poder do povo”. Não admira que o funcionamento apropriado desse poder continue branco, ausente: nenhum detalhe é dado sobre como funciona esse poder do povo, sobre o que as pessoas mobilizadas estão fazendo (é preciso lembrar que Bane diz que as pessoas podem fazer o que quiserem – ele não impõe sobre elas a sua própria ordem).
É por isso que a crítica externa do filme (“sua retratação do reino do OWS é uma caricatura ridícula”) não basta – a crítica tem de ser imanente, tem de situar dentro do próprio filme uma multiplicidade de sinais que aponte para o Evento autêntico. (Recordemos, por exemplo, que Bane não é apenas um terrorista brutal, mas sim uma pessoa de profundo amor e sacrifício.) Em suma, a ideologia pura não é possível, a autenticidade de Bane TEM de deixar rastros na tecitura do filme. É por isso que o filme merece uma leitura mais íntima: o Evento – a “república do povo de Gotham City”, a ditadura do proletariado sobre Manhattan – é imanente ao filme, é o seu centro ausente.

[1] Tyler O’Neil, “Dark Knight and Occupy Wall Street: The Humble Rise”, Hillsdale Natural Law Review, 21 de  julho de 2012.
[2] Karthick RM, “The Dark Knight Rises a ‘Fascist’?”, Society and Culture, 21 de julho de 2012.
[3] Tyler O’Neil, cit.
[4] Christopher Nolan, entrevista na Entertainment 1216 (julho de 2012), p. 34.
[5] Entrevista de Christopher e Jonathan Nolan ao Buzzine Film.
[6] Karthick, cit.
[7] Forrest Whitman, “The Dickensian Aspects of The Dark Knight Rises”, 21 de julho de 2012.
[8] Karthick, cit.
[9] Citado em Jon Lee Anderton, Che Guevara: A Revolutionary Life, New York: Grove 1997, p. 636-637.
[10] Notemos a ironia do fato de que o filho de Neeson é um xiita devoto, e que o próprio Neeson às vezes fala sobre a sua futura conversão ao islamismo.

16 de julho de 2013

A Mídia Ninja ataca outra vez

Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 13/07/2013 na edição 754 no Observatória da Imprensa



Quem mora nas imediações do Palácio Guanabara, na rua Pinheiro Machado, e mais especificamente no perímetro que abrange as ruas Marquês de Pinedo, Paissandu, Ipiranga e Esteves Júnior e vai até a praça São Salvador, viu ou sentiu os efeitos do que ocorreu na noite de 11/7, quando a polícia reproduziu, agora com ainda mais intensidade, as cenas de violência vividas na mesma região em 20/6, ao reprimir um grupo de jovens que estendia a grande passeata daquele dia para protestar em frente à sede do governo estadual.

No entanto, quem queria saber o que se passava só pôde obter informações pela internet, especialmente através do material veiculado pela Mídia Ninja, cujo trabalho foi referido em artigo publicado recentemente neste Observatório [ver aqui].

Muito ágil quando se trata de excitar o público diante de crimes de grande potencial de repercussão, como o da prisão do casal Nardoni ou o do sequestro e morte da jovem Eloá Pimentel, a mídia comercial não se animou nem sequer a dar flashes, menos ainda a interromper a programação para passar a transmitir ao vivo – embora tivesse todas as condições para isso – os conflitos que começaram na frente do palácio e se estenderam pelas ruas vizinhas. Espetáculo não faltava: foram exuberantes explosões de bombas de gás, incêndios em sacos de lixo, tiros de balas de borracha, invasão a uma clínica e agressões e prisões indiscriminadas, que duraram até o início da madrugada.

Cobertura tendenciosa

Como em outras ocasiões recentes, a Mídia Ninja cumpriu um belo papel ao reportar em tempo real, de vários ângulos, o que ocorria, mas a crítica à grande mídia permanece relevante, especialmente porque o acesso à internet em banda larga não alcança a maioria da população.

Se analisarmos a imprensa tradicional, o único jornal carioca a fazer uma cobertura adequada desse conflito foi O Dia. No site do Globo, apenas na manhã seguinte, mesmo assim no blog “Nas redes” – uma seção de tecnologia dedicada a “novidades, análise e o burburinho nas redes sociais” –, aparecia uma relação de vídeos produzidos na noite anterior, acusando “novas denúncias de truculência” da polícia. No espaço da reportagem própria do jornal, nada. Ou melhor, uma notável menção sobre jovens que “fumavam maconha” durante confrontos na passeata no Centro da cidade. Importante alerta: estamos para descobrir novas propriedades da erva maldita, capaz de incitar à agressividade e à destruição.

Na TV das Organizações Globo, pior: um compacto de cenas de manifestantes com o rosto coberto atirando pedras e rojões contra – supostamente, pois a imagem não mostra – a polícia que guardava o palácio, com destaque para o close no capacete de um deles, com uma caveira branca desenhada sobre o fundo escuro. (Caveiras, como sabemos, só são lícitas nas estampas das roupas e acessórios da moda ou quando ostentadas pelo Bope, atravessadas verticalmente, nesse caso, por um punhal). Nada sobre a ação da polícia, testemunhada pelos moradores da região.

A reprodução do discurso oficial

No caso da GloboNews, um canal pago que, por sua definição “all news”, estaria obrigado a interromper a programação para transmitir acontecimentos de grande relevância e impacto como este, apenas um “vivo” no Jornal das Dez com a mesma repórter que denunciara o ataque da polícia ao hospital Souza Aguiar, na manifestação de 20/6 – cena semelhante à ocorrida agora diante de uma clínica vizinha ao palácio, onde manifestantes se refugiaram e foram perseguidos pelos policiais, e que foi documentada pelos “ninjas”.

Na manhã seguinte, o canal exibiria o mesmo compacto veiculado na TV aberta, curiosamente seguido pela convocação do apresentador ao público: “você também pode mandar imagens aqui para o nosso site...”.

Só um tolo atenderia ao chamado.

Também de manhã, uma repórter entrava ao vivo falando numa grande “confusão” na frente do palácio e reproduzia enfaticamente o discurso oficial: o governador não toleraria excessos de nenhum dos lados, nem dos manifestantes nem da polícia. Nada importavam as cenas, que poderiam confrontar o pronunciamento da autoridade. Mais tarde, a repórter conseguiria a proeza de “informar” que a “confusão” começou quando um manifestante atirou uma bomba de gás lacrimogêneo contra os policiais.

O pessoal que transporta coquetéis molotov em caixas de papelão – como os “flagrados” bem à feição das câmeras, na passeata daquela tarde, no Centro – deve ter ficado perplexo. Onde será que se consegue comprar bombas de gás lacrimogêneo? Talvez no mercadão popular da Uruguaiana: os camelôs são muito antenados nas novas tendências e costumam fazer boas promoções no atacado. Ou mesmo no varejo: um é doze, três é trinta.

A não ser que sejam bombas de gás de fabricação caseira.

O testemunho da mídia alternativa

Fora do circuito tradicional, a Mídia Ninja conseguiu, mais uma vez, dar um quadro amplo do que ocorria, com sua câmera nervosa e a imagem frequentemente precária, dependente da qualidade da conexão, além das interrupções inevitáveis para a recarga do equipamento. Ainda assim, transmitiu o protesto diante do palácio, com suas múltiplas palavras de ordem – inclusive uma que apelava ao humor e perguntava: “Cabral, cadê você/a polícia está aqui pra te prender”; documentou a invasão da clínica Pinheiro Machado, que se transformou “numa câmara de gás”; mostrou policiais atirando para o alto dos prédios, nas imediações da praça São Salvador – o que, longe de configurar o sempre lamentado “despreparo” da polícia, revelaria uma atitude deliberada de intimidar quem, da janela de seus apartamentos, apoiava o protesto batendo panelas e filmando a ação repressiva; exibiu as cenas deprimentes de jovens deitados no chão, cercados na Senador Corrêa, uma rua estreita transversal à praça, para depois serem levados em um ônibus à delegacia – e o coro que denunciava “estão plantando prova, estão plantando prova!”. Ofereceu, enfim, o mais amplo testemunho dos acontecimentos daquela noite.

Ao mesmo tempo, permitiu perceber aspectos periféricos mas nem por isso menos importantes do que se pode obter numa cobertura desse tipo, digna dos melhores tempos da reportagem de rua.

Uma surpresa no meio do caminho

Foi quando a repórter que acabara de documentar a prisão dos jovens resolveu caminhar de volta ao Palácio Guanabara, para verificar se ainda havia algo por lá. No trajeto, deparou com uma mulher e um menino, aparentemente deslocados e que pareceram surpresos com o encontro. Conversou com eles, perguntou de onde eram – do Cantagalo, uma favela em Copacabana – e se tinham vindo ali também participar do protesto, se conheciam a Mídia Ninja, se tinham sofrido alguma coisa... eles balbuciaram que sim, estavam ali pelo protesto, conheciam a Mídia Ninja – o que evidentemente não era verdade –, não tinham sofrido nada, estavam só esperando um amigo do menino, e se despediram.

A repórter foi embora, mas logo flagrou dois policiais armados de fuzis correndo na direção de dois garotos, um deles aquele que ela acabara de entrevistar. Foi tomar satisfações, envolveu-se numa discussão veemente, pois os meninos eram acusados de ter roubado uma pessoa perto de uma banca de jornal. “Você não viu nada!”, disse o homem que os denunciara. “Eu vi sim, conversei com o menino, eu vi e mais sete mil pessoas que estão assistindo viram também!”.

Quem estava vendo certamente se indignou com a cena, porque viu a mesma coisa pelo olho da repórter.

No entanto, logo depois aparece a mulher, a mesma que havia sido entrevistada, e que, constrangida pela polícia, parecia querer tirar o corpo fora. Dizia que estava aconselhando os meninos a não fazer aquilo até que apareceu “essa piranha” – a repórter – para complicar a situação.

E a repórter, depois de tentar esclarecer, se afastou porque percebeu a história. Que, por si só, já renderia outra bela reportagem: quem eram aqueles dois garotos e aquela mulher, o que fizeram, o que representam diante dos helicópteros do governador, recentemente mostrados por uma rara reportagem da Veja?

Cenas fortuitas, mas muito reveladoras das surpresas que o jornalismo nos reserva, quando recuperamos a prática da boa reportagem que sai à cata do inesperado. Tão diferente do jornalismo amestrado das grandes corporações, que nos induz bovinamente a aceitar o mundo tal qual é.

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense.

Gil Scott Heron explains what he ment when he said the revolution will not be televised

The-Revolution-Will-Not-Be-Televised-Gil-Scott-Heron from V.I.S.I.O.N.A.R.Y. 68 on Vimeo.


B Movie

Gil Scott-Heron - B Movie from Alex Benson on Vimeo.


Well, the first thing I want to say is: Mandate my ass!”

Because it seems as though we've been convinced that 26% of the registered voters, not even 26% of the American people, but 26% of the registered voters form a mandate or a landslide. 21% voted for Skippy and 3, 4% voted for somebody else who might have been running.

But, oh yeah, I remember. In this year that we have now declared the year from Shogun to Reagan, I remember what I said about Reagan, I meant it. Acted like an actor. Hollyweird. Acted like a liberal. Acted like General Franco when he acted like governor of California, then he acted like a Republican. Then he acted like somebody was going to vote for him for president. And now we act like 26% of the registered voters is actually a mandate. We're all actors in this I suppose.

What has happened is that in the last 20 years, America has changed from a producer to a consumer. And all consumers know that when the producer names the tune, the consumer has got to dance. That's the way it is. We used to be a producer – very inflexible at that, and now we are consumers and, finding it difficult to understand. Natural resources and minerals will change your world. The Arabs used to be in the 3rd World. They have bought the 2nd World and put a firm down payment on the 1st one. Controlling your resources we'll control your world. This country has been surprised by the way the world looks now. They don't know if they want to be Matt Dillon or Bob Dylan. They don't know if they want to be diplomats or continue the same policy - of nuclear nightmare diplomacy. John Foster Dulles ain't nothing but the name of an airport now.

The idea concerns the fact that this country wants nostalgia. They want to go back as far as they can – even if it's only as far as last week. Not to face now or tomorrow, but to face backwards. And yesterday was the day of our cinema heroes riding to the rescue at the last possible moment. The day of the man in the white hat or the man on the white horse - or the man who always came to save America at the last moment – someone always came to save America at the last moment – especially in “B” movies. And when America found itself having a hard time facing the future, they looked for people like John Wayne. But since John Wayne was no longer available, they settled for Ronald Reagan and it has placed us in a situation that we can only look at –like a “B” movie.

Come with us back to those inglorious days when heroes weren't zeros. Before fair was square. When the cavalry came straight away and all-American men were like Hemingway to the days of the wondrous “B” movie. The producer underwritten by all the millionaires necessary will be Casper “The Defensive” Weinberger – no more animated choice is available. The director will be Attila the Haig, running around frantically declaring himself in control and in charge. The ultimate realization of the inmates taking over at the asylum. The screenplay will be adapted from the book called “Voodoo Economics” by George “Papa Doc” Bush. Music by the “Village People” the very military "Macho Man."

“Company!!!”
“Macho, macho man!”
“Two-three-four.”
“He likes to be – well, you get the point.”
“Huuut! Your left! Your left! Your left, right, left, right, left, right…!”

A theme song for saber-rallying and selling wars door-to-door. Remember, we're looking for the closest thing we can find to John Wayne. Clichés abound like kangaroos – courtesy of some spaced out Marlin Perkins, a Reagan contemporary. Clichés like, “itchy trigger finger” and “tall in the saddle” and “riding off or on into the sunset.” Clichés like, “Get off of my planet by sundown!” More so than clichés like, “he died with his boots on.” Marine tough the man is. Bogart tough the man is. Cagney tough the man is. Hollywood tough the man is. Cheap stick tough. And Bonzo's substantial. The ultimate in synthetic selling: A Madison Avenue masterpiece – a miracle – a cotton-candy politician…Presto! Macho!

“Macho, macho man!”

Put your orders in America. And quick as Kodak your leaders duplicate with the accent being on the nukes - cause all of a sudden we have fallen prey to selective amnesia - remembering what we want to remember and forgetting what we choose to forget. All of a sudden, the man who called for a blood bath on our college campuses is supposed to be Dudley “God-damn” Do-Right?

“You go give them liberals hell Ronnie.” That was the mandate. To the new “Captain Bly” on the new ship of fools. It was doubtlessly based on his chameleon performance of the past - as a liberal democrat – as the head of the Studio Actor's Guild. When other celluloid saviors were cringing in terror from McCarthy – Ron stood tall. It goes all the way back from Hollywood to hillbilly. From liberal to libelous, from “Bonzo” to Birch idol, born again. Civil rights, women's rights, gay rights…it's all wrong. Call in the cavalry to disrupt this perception of freedom gone wild. God damn it, first one wants freedom, then the whole damn world wants freedom.

Nostalgia, that's what we want… The good ol' days when we gave'em hell? When the buck stopped somewhere and you could still buy something with it. To a time when movies were in black and white – and so was everything else. Even if we go back to the campaign trail, before six-gun Ron shot off his face and developed hoof-in-mouth. Before the free press went down before full-court press. And were reluctant to review the menu because they knew the only thing available was – Crow.

Lon Chaney, our man of a thousand faces - no match for Ron. Doug Henning does the make-up - special effects from Grecian Formula 16 and Crazy Glue. Transportation furnished by the David Rockefeller of Remote Control Company. Their slogan is, “Why wait for 1984? You can panic now...and avoid the rush.”

So much for the good news…

As Wall Street goes, so goes the nation. And here's a look at the closing numbers – racism's up, human rights are down, peace is shaky, war items are hot - the House claims all ties. Jobs are down, money is scarce – and common sense is at an all-time low on heavy trading. Movies were looking better than ever and now no one is looking because, we're starring in a “B” movie. And we would rather had John Wayne. We would rather had John Wayne.

"You don't need to be in no hurry.
You ain't never really got to worry.
And you don't need to check on how you feel.
Just keep repeating that none of this is real.
And if you're sensing, that something's wrong,
Well just remember, that it won't be too long
Before the director cuts the scene. yea."

“This ain't really your life,
Ain't really your life,
Ain't really ain't nothing but a movie.”

“This ain't really your life,
Ain't really your life,
Ain't really ain't nothing but a movie.”

Gil Scott-Heron

Manifestação em casamento expõe sociedade fraturada

Por Luciano Martins Costa (Do Observatório da Imprensa)



Talvez tenha sido um dos menores, em número de participantes, na série de protestos que acontecem em cidades brasileiras desde junho, no rastro da campanha pela redução das tarifas de ônibus. Não mais do que sessenta pessoas se postaram diante da igreja do Carmo, no centro do Rio, para se manifestar durante a cerimônia de casamento de dois herdeiros de empresas de transporte público. No entanto, talvez tenha sido também o evento mais representativo da realidade perversa em que degenerou a democracia brasileira.

Como ocorre normalmente entre cariocas, tudo começou com brincadeiras e ironias, como a manifestante fantasiada de noiva, que distribuía baratas de plástico aos passantes. A noiva de verdade era a neta do empresário Jacob Barata, conhecido como o “rei dos ônibus” no Rio.



O relato dos jornais nesta segunda-feira (15), principalmente do Globo, é rico em detalhes [Aqui, o relato da colunista social Hildegard Angel]. A noiva, seu pai e o avô chegaram à igreja em duas Mercedes, que, segundo o jornal carioca, acumulam nada menos do que 22 multas desde 2010. A recepção aos cerca de mil convidados, realizada no hotel Copacabana Palace, teria custado R$ 2 milhões. A festa, que varou a noite, tinha um cantor famoso no palco, que era adornado por uma bandeira do Brasil.

Para qualquer observador, esse é o cenário que explica e justifica a onda de protestos que tem sua origem no problema da mobilidade urbana: de um lado, os usuários de ônibus; de outro, aqueles que acumulam fortunas indecentes com os serviços de má qualidade subsidiados por dinheiro público – e que não cumprem os mais básicos deveres da cidadania, como pagar multas de trânsito. A presença solene de uma bandeira nacional no palco de uma festa particular é a melhor representação de uma elite econômica privilegiada, cujos atos ofendem o senso comum das ruas, e que se sente proprietária do País.

A frase atribuída ao pensador britânico Samuel Johnson não teria melhor colocação: “o patriotismo é o último refúgio de um canalha”. Tanto na Inglaterra de 1775, quando Johnson se referia ao uso de falsos argumentos nacionalistas como justificativa para práticas contrárias ao interesse público, como no Brasil de 2013, a apropriação do patrimônio social é considerada por essa elite como direito sagrado.

As passeatas de protesto querem dizer o contrário.

Aviõezinhos de dinheiro


Sobrinho de Jacob Barata, Daniel Barata, 18, é suspeito de ter arremessado o cinzeiro e será convocado a prestar depoimento. Em sua página no Facebook, ele assumiu ter lançado um aviãozinho feito com uma nota de R$ 20 sobre os manifestantes, mas negou ter jogado o cinzeiro que atingiu Nascimento.


A imprensa cumpre seu papel ao relatar pontualmente os incidentes que se seguiram à cerimônia religiosa, mas não avança na descrição do pano de fundo desse confronto entre duas realidades: a dos controladores do transporte público e a dos usuários de ônibus.

O Globo apresenta, associada ao noticiário sobre o casamento e os protestos, uma reportagem que revela o poder econômico dos donos do transporte urbano no Rio, cuja contabilidade se caracteriza pela falta de transparência. Mas nada, no histórico recente dos jornais, indica que qualquer um deles terá apetite para avançar no esclarecimento do jogo de interesses que liga os empresários de ônibus e as autoridades que deveriam fiscalizar o funcionamento dessas empresas.

Um levantamento de como funciona o complexo sistema dos transportes urbanos explicaria a revolta dos jovens que saem às ruas pedindo o fim das tarifas. Pode-se também afirmar que a perversidade desse sistema justificaria até mesmo alguns atos de violência que simbolizam a revolta contra o cerceamento do direito de ir e vir, produzido pelo alto preço das passagens e pela precariedade dos serviços oferecidos à população.

As manifestações de junho puseram a nu uma realidade que vinha sendo ignorada ou omitida pela imprensa: a de que a maioria da população é refém de meia dúzia de empresários de um setor fundamental para o funcionamento das cidades, cujo poder é assegurado pela legislação que lhes permite financiar campanhas políticas.

A consciência desse poder perverso é que pode explicar a agressividade com que alguns convidados à festa da família Barata reagiram à presença de manifestantes na calçada em frente ao Copacabana Palace, na noite de sábado, 13.

Segundo contam os jornais, um dos convivas – apontado como parente da noiva – atirou do alto do edifício um cinzeiro de vidro, que feriu a cabeça de um jovem manifestante. Outros convidados lançaram sobre a multidão aviõezinhos feitos com notas de R$ 20.


Ruan Nascimento foi atingido pelo cinzeiro vindo do Copacabana Palace.

Não poderia haver cena mais representativa da desigualdade que emperra o desenvolvimento da democracia no Brasil. Não faltam motivos para a imprensa e as instituições da República decidirem de uma vez por todas de que lado dessa sociedade fraturada pretendem se colocar.

5 de julho de 2013

afasta de mim...

Pai
afasta de mim
essa copa

Raimundo Beato

Silver Surfer




Silver Surfer: Parable (1988) by Stan Lee & Moebius

as pedras no leblon (ou anti-lei de talião, ou quase democratizando a violência policial)

valesse a lei de talião
seria então
olho por olho
dente por dente
e pedra por pedra

mas na moderna democracia do rio de janeiro
em troca de pedra
é bala
porrada
granada de gás
e borrochada

tem lugares onde a bala é de graça
abundante
tipo maré de sangue

valendo a lei do seu cabral
não haverá mais pedra sobre pedra

Salvador Passos

4 de julho de 2013

A Espanha rebelde, por Antonio Negri

O artigo já é antigo (de 2011), mas Negri parece querer mostrar que os movimentos foram surgindo meses antes das ocupações de praças por toda Espanha. Neste sentido não foi um movimento que brotou de maneira espontânea das redes sociais, ele foi sendo construído ao longo de meses. As redes sociais possibilitaram um processo de sedimentação da insatisfação que se deu de maneira horizontal, e que já teria dado sinais mesmo antes da vitória de Zapatero. E no Brasil como se deu esse processo? O MPL foi responsável por aquele mundo de gente?



De dentro das praças e acampamentos, filósofo e militante italiano discute formas de organização, demandas e perspectivas do movimento na Espanha

Por Antonio Negri(02/09/2011) Tradução de Bruno Cava

Na última semana, estive na Espanha a trabalho. Estive naturalmente envolvido com os “indignados”: atravessei algumas praças e acampamentos, questionei e discuti com muitos companheiros. Quem são os “indignados”? Não pretendo responder — há dezenas de narrativas facilmente encontráveis sobre isso. Relato aqui somente alguns apontamentos.

Democracia Real Ya nasceu dois meses antes do 15 de maio. É uma associação de militantes digitais, menos radicais, porém mais eficazes que o grupo Anonymous. Já havia movimentos desde janeiro de 2011 contra a Lei Sinde, que pune a pirataria na Internet; e articularam um discurso e uma luta contra a assinatura daquele acordo entre PP e PSOE (direita e esquerda), que viabilizara essa lei, promovida inclusive pelo vice-presidente americano. Em conseqüência, a associação incita à recusa do voto: “no les votes!”, e desenvolve um discurso sobre o sistema representativo espanhol, contra o bipartidarismo, com a exigência de uma nova lei eleitoral proporcional, dirigida a favorecer o pluralismo e a equidade.

Um segundo grupo interessante é o V de Vivienda. É um movimento de luta pela moradia, começado em 2005 (“por uma moradia digna”) e desenvolvido em rede, como reação ao estouro da bolha imobiliária. Em rede, convocam manifestações, produzem verdadeiros “enxames”, com grandes mobilizações iniciais que, contudo, encontraram dificuldade em obter um impacto político mais duradouro.

Um terceiro movimento é o dos “hipotecados”. Surge em Barcelona e constitui uma plataforma de ajuda recíproca das famílias e indivíduos que, por causa de hipoteca ou débito bancário ou insolvência privada, terminaram despejados. Valoriza muito a aparição midiática — inclusive nos meios tradicionais. Esta competência foi muito importante para as lutas e a construção do 15-M.

Um quarto grupo se formou nas várias assembléias e coletivos do cognitariado urbano. Esses não possuem militantes orgânicos. Trata-se essencialmente de uma esquerda intelectual, que protesta e coopera em rede, assumindo posições radicalíssimas contra a precariedade e a incerteza do trabalho, além de contestar os baixos salários. São grupos do trabalho imaterial crescidos na crise, “dentro e contra”.
Além desses, em certo momento, principalmente em abril deste ano, se apresentou na cena também uma rede da “esquerda autônoma” sindical, — geralmente ligada à Izquierda Unida: Juventud Sin Futuro. O nome diz tudo. Esta organização começa uma ampla agitação, com a importante capacidade de repercutir nos grandes jornais, e tenta convocar uma manifestação em 7 de abril. É um prólogo importante, haja vista que, entre 7 de abril e 15 de maio, o anúncio da “grande manifestação” se dissemina de modo viral pelas redes.

Quem é a gente que se reuniu no 15 de maio nas praças da Espanha? Existem dois componentes de peso. O primeiro é essencialmente a classe média empobrecida, desempregados, pequenos empresários em crise, profissionais que não conseguiram sucesso, ou foram rejeitados pelas empresas, trabalhadores autônomos recentemente golpeados pela crise, ou assediados pelo fisco, — a quem se juntam os cidadãos sem casa própria e sem condições de adquiri-la, os que vivem como inquilinos. Um segundo componente, fortemente majoritário nos acampamentos, é o cognitariado metropolitano: trabalhadores digitais e cognitivos, precários do setor dos serviços e de todos os gêneros de atividade imaterial, estudantes e jovens sem futuro. Alguns poucos imigrantes também apareceram nas manifestações e assembléias para se expressar. No movimento, muitas mulheres se destacaram nas discussões e lideraram a organização dos acampamentos.

Esses sujeitos constituem um movimento que não é identitário, que não é simplesmente movimento de solidariedade. Todos falam em primeira pessoa. É um movimento contra a crise e a pobreza, de toda a classe média (num sentido amplo).

Indignados. Foram os meios de comunicação que impuseram este nome, importado do célebre opúsculo de Stéphane Hessel. Nisso, o movimento reconheceu rapidamente uma tentativa de reduzi-lo a mero protesto moral, de relegá-lo a um terreno não-político (com a ameaça implícita que, se começasse a atuar politicamente, haveria repressão). O movimento reagiu imediatamente: pacífico, praticando a “recusa à violência”, teorizada e proclamada como “recusa do medo”. Este é um dado constante e importantíssimo na formação e na firmeza do movimento. Exprime a consciência que, quando há medo, se é levado naturalmente a responder violentamente à violência; que o governo tenta amedrontar (um gesto hobbesiano) para incitar uma resposta do movimento, tão violenta quanto vazia e, como resultado, legitimar a repressão. A resistência não-violenta do movimento permitiu uma aceleração extraordinária, uma enorme expansão (metrópoles, cidades, vilas), a sua aparição como “evento” irrefreável.

A linguagem do movimento é simples e popular, mas não populista. Foi sugerido na Democracia Real Ya: “não somos uma mercadoria nas mãos dos banqueiros e políticos”. A linguagem foi trabalhada nas redes e pela incrível quantidade de comunicações, agenciamentos, sites e fóruns no facebook, tuíter etc. Que, em uma democracia real o poder seja ação que exercitamos sobre a ação do outro — e assim fica implícita a dissolução de toda autonomia do político — constitui a chave da linguagem do movimento. A isso se junta a crítica da constituição democrática, aos três poderes tradicionais (legislativo, executivo, judiciário), porque não correspondem mais às funções originais. A dimensão pública do Estado, quando não é atravessada pela participação dos cidadãos, não pode mais ser considerada legítima. Nas formas atuais, o público não passa de uma superestrutura do privado. Exige-se, portanto, um novo poder constituinte, visando à construção do comum. Pode-se dizer, mais claramente, que o movimento dos indignados é um movimento radicalmente constituinte?
Nele, propõe-se um novo modelo de representação. De um lado, as redes; de outro, as assembléias. Partindo das assembléias nas praças centrais das cidades, se chega “em rede” às assembléias locais, nos bairros das metrópoles e, finalmente, às pequenas cidades e vilas. O retorno, por sua vez, é direto e veloz. A organização da base — pela base — pelas assembléias constitui assim o percurso e a estrutura da “democracia real”, além da representação. A rede oferece uma temporalidade imediata. Já na organização/difusão espacial (quando os tempos são mais longos), as assembléias institucionalizam o movimento.

O 15-M parece nascer do nada. Não é verdade: além do papel dos grupos, além da casualidade (latente e perversa) da crise, se notam no movimento acumulações, sedimentações, recomposições ao longo do tempo.

Pra começar, há analogia com o que ocorreu em março de 2004, quando o “movimento contra a guerra”, insurgido contra Aznar nos dias anteriores às eleições, protestou ante a atribuição dos atentados terroristas na estação central de Madrid aos bascos e ao ETA. Também nesse caso se tratou da produção de um enorme enxame, à época convocado através dos telefones celulares, que transformou radicalmente o clima eleitoral e pavimentou o acesso de Zapatero e dos socialistas ao governo: a dita “comuna de Madrid”.

Diferentemente, hoje, não existe aquela enorme tensão, aquele grande medo, aquela violência, que então se disseminava pelos movimentos. Hoje há uma percepção maior da própria força, logo maior maturidade. Naquele momento, uma vez eleito, Zapatero tenta responder às dinâmicas do movimento, mas propõe ainda outra vez uma opção de representação política — que rapidamente se revelou uma mistificação, e insultante na medida em que foi encarada como traição. Agora não existe mais nenhuma hipótese reformista, existe no lugar disso a consciência da impossibilidade de modificar o sistema. Existe a percepção (sobretudo depois do resultado eleitoral desastroso para os socialistas, que tem a ver com o grande impacto da abstenção — cerca de 50%) que o movimento pode realmente fazer e desfazer os governos, mas hoje a isso se acrescenta um imaginário modificado, visto que nenhuma hegemonia partidária poderá mais corresponder ao movimento. “Ninguém nos representa”. O sistema constitucional está em crise.

A continuidade pode ser também registrada a respeito das formas de organização. Na configuração material dos acampamentos, resgataram-se particularmente as formas de luta dos operários da Sintel [NT. cujos trabalhadores fizeram greve por 11 meses seguidos, em 2001-02], que por meses e meses acamparam no centro de Madrid, depois do fechamento da empresa deles. A tradição do “acampar” foi recepcionada pela luta operária. Isto mostra como a interseção dos movimentos representa hoje uma passagem essencial na produção das lutas multitudinárias. Mesmo quando os organismos oficiais do movimento operário (sindical e partidário) se excluem da manifestação, a tradição das lutas operárias se inclui no processo e o desenvolve.

A partir dessa nota, vale a pena recordar outro elemento fundamental no 15-M — é o “Republicanismo” implícito, o lembrete melancólico, mas radical, de 1936. Toda a história da Espanha na modernidade é aqui colocada em jogo, contra uma governamentalidade capitalista e clerical, reacionária e repressiva, liberal e reformista, que não encontra par noutros países da Europa.

Tudo isso ajuda a compreender a dinâmica de organização deste movimento. Irrompe de um amadurecimento capilar, numa dimensão microssocial, completamente voluntarista. Há um máximo de cooperação, que não se produz simplesmente por indivíduos ou coletivos, mas se organiza “todos juntos”, na sinergia. Igualmente a elaboração teórica é coletiva. Nas assembléias todos têm direito à palavra. O nível da discussão é por vezes descontínuo, mas sempre rico de intervenções competentes, no mérito e na eficácia da proposta. Parece incrível, mas, de verdade, ocorreram formidáveis e inovadoras experiências, seja sobre o terreno da cooperação organizacional, seja sobre a elaboração teórica — experiências nunca repetitivas, burocráticas ou inúteis. Há uma maturidade geral que desenvolveu novas habilidades — porém, especialmente, que evitou contraposições dogmáticas e/ou sectárias. Aqueles que já estavam organizados em grupos não foram excluídos, mas implicados no “todos juntos”. Não houve necessidade de um “savoir faire” político particular, mas somente de competência e capacidade de participar de um projeto comum.

Os dois processos fundamentais de organização que se integraram foram acomunicação em rede (que permite a articulação de centralizações e descentralizações territoriais) e a interseção de componentes sociais (que permite a recomposição programática do proletariado social).

Considerando a característica da recomposição (dos movimentos e dos programas), compreende-se também um espírito constituinte, que evita amálgamas politicamente contraditórios (por exemplo, entre grupos e organizações que disputam usualmente a hegemonia um contra o outro) e, por isso, não gera enfatuações sectárias ou abstratas, puramente dogmáticas. Os indignados falam entre si, nas assembléias ou na rede, de programas, de coisas por fazer, de metas conjuntas, de problemas concretos… O espírito constituinte predomina. “Todos juntos” — aqui se constrói o comum.

Uma organização de subsistência totalmente horizontal foi criada, com a cozinha e o serviço de policiamento da praça acampada, com uma centralização informática e informativa, com horários definidos em assembléia, com decisões, comissões jurídicas e médicas etc.
Quais são os mecanismos de decisão do movimento? Democracia direta, logo decisões tomadas de modo assemblear, atreladas à curta duração nas funções de representação (porta-vozes). Sabe-se que tomar uma decisão nessas condições exige longo tempo, que o processo decisório muitas vezes deve elevar-se acima dos efeitos tumultuados de uma discussão caótica. Contudo, isto não impede de chegar, através da nomeação de porta-vozes (a cada dia substituídos), à tomada de decisão, e a sua comunicação pública — com legitimidade consensual. Seja a decisão, seja a discussão que se produziu, tudo é arquivado no site do movimento. Corre em paralelo ao processo uma verificação em rede das decisões tomadas. Põe-se assim em movimento uma estrutura policêntrica de decisão e, enquanto nas assembléias a decisão exige longo tempo, nas redes a verificação da decisão se dá muito velozmente.

Este processo decisório constroi uma novidade radical em relação às melhores experiências de movimentos recentes (Seattle, Gênova etc), quando as decisões coletivas dificilmente conseguiam associar expressão exata dos comportamentos à urgência do evento, juntar a continuidade com a extensão da iniciativa… Para não falar de sua institucionalidade.

Como já dissemos, o movimento surgiu na soma de iniciativas de vários grupos, num período de experimentação de mobilizações ágeis, da repetição de ações em flash: e ao final se deu, em concomitância com as manifestações gigantes, a decisão de acampar. O acampamento e a consolidação da modalidade assemblear que o seguiu representam assim uma relativa ruptura/descontinuidade com o modelo de decisão em rede. Tanto mais que, nos acampamentos, a composição social se complica. Ao lado dos sujeitos citados acima, encontramos também frações marginais do proletariado (cognitivo ou não): desocupados, migrantes, “loucos” e/ou “hippies”, e alguns pequeno-burgueses arruinados e desesperados… Tudo isso pode criar problemas que, por um lado não podem ser agilmente resolvidos, por outro também não vamos exagerá-los, de modo a não romper o processo global de organização e decisão. Outra prova do “bom senso” deste movimento.

Os temas programáticos discutidos nas assembléias e retomados na circulação em rede, sempre firmados em documentos, são fundamentalmente os seguintes:

Trabalho precário. Requerem-se trabalho e/ou renda para todos. A discussão não implica ideologias “trabalhistas” (os sindicatos foram excluídos, a UGT e a CO, bem como outras forças políticas): dizer “trabalho para todos” significa dizer “renda para todos”. O tema da renda universal é bastante disseminado. E se torna hegemônico quando os trabalhadores autônomos de 2ª Geração representam a maioria da assembléia. E adicionalmente: redução da jornada laboral, aposentadoria aos 65 anos, seguridade do trabalho, proibição de demissões, ajuda aos desempregados etc.

Direito à moradia. Expropriação do estoque de moradias não vendidas e transferência delas ao mercado de aluguéis controlados. Plano para o cancelamento das hipotecas etc.

Tributação. A crítica é muito forte à desigualdade de tratamento dos trabalhadores, sejam independentes ou dependentes, da parte do fisco. Aumento da tributação sobre as grandes fortunas e os bancos. Relançamento do imposto patrimonial. Controle real e efetivo das fraudes fiscais e da fuga de capitais através dos ditos paraísos fiscais. Mas o tom da discussão é acima de tudo contra os bancos, contra a estrutura financeira etc. Proibição de injeção de capital nos bancos responsáveis pela crise. Controle social dos bancos. Sanções para o movimento especulativo e as más práticas bancárias. O conceito fundamental exprimido nas assembléias é que existe uma grande riqueza social, mas ela é expropriada pelo fisco e pelos bancos. As operações bancárias tais quais hoje estão repletas de usura em relação aos pobres, e de prepotência diante da sociedade. Requer-se a generalização da Lei Tobin inclusive nas transferências internas e internacionais entre os bancos.

Sistema eleitoral. A solicitação pela mudança da lei eleitoral e das regras de representação é pesadíssima e assunto da mais alta urgência. Entende-se que o sistema bipolar espanhol seja intolerável, que as duas grandes forças parlamentares são igualmente corruptas e responsáveis pela crise. Solicita-se assim que o sistema eleitoral seja modificado no sentido do voto proporcional, e uma proposta de referendo sobre o tema (500 mil assinaturas) já foi lançada. Além disso, mais democracia participativa: não ao controle da Internet e revogação da Lei Sinde, generalização do método referendário etc.

Sistema judiciário. Considera-se completamente nas mãos dos políticos e banqueiros, incapaz de perseguir a corrupção e, sobretudo, inapto para corrigir o déficit de representação ou promover um senso igualitário ao sistema normativo como um todo. Quando se fala em justiça, se contrapõe à corrupção política um discurso de dignidade — e não aqui um moralismo pequeno-burguês, mas um sentimento forte de autonomia ética e política.

Serviços comuns. Reorganização dos serviços de saúde. Contratação de sindicatos de professores, para garantir uma taxa mais correta de alunos por sala de aula e grupos de reforço escolar. Gratuidade da educação universitária. Financiamento público da pesquisa, para assegurar a sua independência. Transportes públicos de qualidade e ecologicamente sustentáveis. Constituição de redes de controle local e serviços municipais etc.

Alguns temas foram evitados nas assembléias. O tema “nacional” em primeiro lugar — vale dizer que não colidiram nacionalismos diversos (coisa muito costumeira no debate político espanhol), se falou em todas as línguas, castelhano, basco, catalão etc. Esse é um elemento extremamente importante na experiência dos acampamentos. Outros temas por enquanto exclusos da discussão: a Europa e, parcialmente, a guerra (às vezes contestada a despesa militar do governo). A essência do debate sobre esses temas é bastante bizarra, e corresponde, todavia, à informação insuficiente e à forte ambigüidade que geralmente se sente em relação ao tema europeu e ao da Aliança Atlântica
.
O que pode tornar-se esse movimento em uma perspectiva temporal mais longa? Ele pode constituir um contra-poder permanente e/ou organizar-se como poder constituinte. É difícil prever qual será o caminho. Se organizando uma espécie de dualismo do poder (acontecimental e periódico); ou se desenvolvendo um poder constituinte que tenta uma penetração e uma transformação das estruturas do estado. Certo é que, de dentro da prática da Praça contra o Governo, aparece positivamente o projeto de uma regeneração republicana: a República contra o Estado; como na tradição espanhola (antes e através da guerra civil) esse projeto fora vivenciado. Na Espanha, trinta anos depois do fim do franquismo, falta ainda uma crítica do fascismo, carece ainda uma denúncia da continuidade da direita negocista e financeira em relação ao regime franquista. Isto significa que o movimento — também e sobretudo no seu êxodo atual — se situa radicalmente à esquerda, mas certo fora daquela esquerda representada por Zapatero — cuja ação política sempre consistiu em uma gestão servil do capital. O 15-M não se opõe à política em geral, mas ao sistema dos partidos.

Como dito, se fala pouco da Europa nos acampamentos. Quando nela se fala, recorda-se a sua opacidade. E, entretanto, é particularmente evidente a necessidade de um relé [relais] europeu, da assunção de uma dimensão continental à discussão política.

O que ocorrerá daqui pra frente, depois do tempo breve das manifestações? Três possibilidades devem ser consideradas. A primeira: o fim da frustração. A segunda: uma radicalização que se aglutina. Mas a terceira é aquela de uma reterritorialização estável, nos bairros, na sociedade, com uma capacidade de mobilização contínua. Parece que os manifestantes querem agrupar-se e articular-se em um movimento sócio-político, com particularidades em todas as regiões, com uma auto-gestão em escala territorial. A cada dia 15 do mês, os grupos nos territórios deveriam colocar-se de acordo sobre uma plataforma de reivindicações e um calendário de mobilizações. Assim se dará, seguramente, a continuidade do movimento, — pelo menos até as eleições gerais do próximo ano. Resta compreender se a adesão da população permanecerá tão maciça no próximo período. Isto dependerá em parte do comportamento das autoridades: se reprimem o movimento, a solidariedade que o caracteriza deverá reforçá-lo. Em qualquer caso, os problemas fundamentais que sobram em aberto são, em primeiro lugar, aqueles ligados à reterritorialização do movimento e, além disso, a construção de uma rede europeia.