A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

29 de maio de 2017

daltônicos vendem balas nos sinais de trânsito

vejo os aquários de concreto
alçar seu voo sólido sobre o imaginário das cidades
entre janelas e vértebras oxidadas
vejo arenques
que escondem suas escamas espelhadas
sob ternos burocráticos
ao melhor estilo armani
um prometeu acorrentado
com tendências pirofóbicas
condenado a atar e desatar gravatas
usando apenas anacrônicas barbatanas

agitam involuntariamente suas mandíbulas
tentando desatar o nó da forca 

qual escorregadia colonização os leva
a adotar distantes vestimentas

desesperados gestos
de ânsias
e espasmos

brânquias claustrofóbicas
numa espécie de contorcionismo afásico
buscando o oxigênio esquecido das palavras em preto e branco

trechos de uma comédia do cinema mudo
replicando algum tipo de gagueira automática

habitantes de janelas cegas
hipnotizados pela estática das TVs abandonadas
arma de distração em massa

dois aquários mudos sobrepostos:
janelas e TVs abandonadas
multiplicando um diálogo impossível de ser datilografado a distancia

nas ruas enxames de daltônicos vendem balas nos sinais de trânsito
mariposas fotofóbicas não querem mais ornamentar poemas líricos

estamos presos no engarrafamento da autopista Sur
e confundimos utopias com a meteorologia

Salvador Passos

23 de maio de 2017

transe das cidades

afundam as cidades em algum transe tectônico
as horas são marcadas pelas turbulências
vejo um relógio imóvel preso no horizonte
aviões indiferentes passam sobre nossas vidas
estragam o silêncio das manhãs à toa
espiões distantes
expoentes de um progresso sem silêncios
árvores cortadas bem na tarde de domingo
sangra o silêncio entre os prédios 
muitos gritam
mas não adianta
o progresso é uma máquina automática de amordaçar delírios
o incêndio das palavras arde nas esquinas
são poucos os que percebem o naufrágio nas vitrines
existem fósseis dentro das calçadas
nomes esquecidos nas planícies

ainda habito a precária arquitetura do silêncio
& corro pelas ruas sem palavras

o poema é um incêndio infinito

Salvador Passos

18 de maio de 2017

novo mantra

fundar-se com a essência
e dela tirar um sentido
- ainda que insuficiente-
de alguma insurreição.

não se tornar
o que se estava pronto
para se tornar.

essas coisas não são
verdadeiras e podem
nos fazer bem felizes.

olhar para as plantas
do caminho sem pés.
não decorar nomes,
olhar as plantas
na escuridão.

não se especializar.
abraçar ingenuamente
a impossibilidade
e o terrível sofrimento
de ser um pouco de tudo
ou quase nada.

observar as pombas
sobre as poças
da última inundação.

como são sujas e alegres.

ser sujo e alegre
após a inundação.

Leonardo Marona