A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

28 de outubro de 2016

Arrastão 3

1)

sinto meus braços
acenando para
místicas peregrinações

A cidade cresce
desenha e apaga
a superfície negra
que não dorme

O muro cresce
por trás da cortina
está vivo

o ninho feito no teu colo
Era meu território

Sonhava que era tudo nosso
simultaneamente

Há um resíduo de futuro
na avenida
entre carros e caminhões
parados
banhados pela tarde
acenando para
minha carne

Sou meu próprio vizinho
por isso eu respiro
a tradução do poema chileno

 Salvador Passos

2)

na avenida
entre carros e caminhões
parados
banhados pela tarde
sinto meus braços
acenando para
místicas peregrinações
dizendo

minha carne

é quando vem à tona
a tradução do poema chileno

Salvador Passos

3)

na avenida
entre carros e caminhões
parados
banhados pela tarde
sinto meus braços
acenando para
místicas peregrinações
dizendo:

Sou meu próprio vizinho


Salvador Passos

4)

sinto meus braços
acenando para
místicas peregrinações
dizendo:

Sou meu próprio vizinho
por isso eu respiro
a tradução do poema chileno

o ninho feito no teu colo
Era meu território

Sonhava que era tudo nosso
simultaneamente

Salvador Passos


Boletim de Ocorrência: Inventário dos Versos Subtraídos


a lágrima

a glândula a carrega            cega
( como na ostra a pérola )
( como no arco a seta )
o sal na medida certa
( no escuro        algo coagula )
pedra
até que a concha da pálpebra
abra
é quando a gota vem à tona )
( fria e quente
( simultaneamente

mapa de tesouro

menino vestido de pirata
eu sei que os carnavais
têm sua graça

por isso eu respiro
engraçado

quanto te vejo
sinto meus braços

acenando para
navios parados

Desmembramento de um semicírculo

Certo que nos dedicamos
a místicas peregrinações.
Exercitamos a respiração,
lutamos brigas orientais,
praticamos uma e sete vezes
a tradução do poema chileno.
Mas no fundo sabemos
que o que importa mesmo
é roçar a superfície negra
da pele do peito do anjo
que está vivo
que não dorme

Campo Limpo Taboão

Quando nasci tinha seis anos.
No lugar em que nasci,
Sonhava que era tudo nosso.
Tinha os campinhos e os terrenos baldios.
Era meu território.
Já foi interior,
Hoje periferia com as casas cruas.
As vacas com tetas gruas
Não existem mais.
A cerca virou muro. Óbvio.
A cidade cresce.
O muro cresce.
Vieram os prédios, as delegacias, os puteiros
E as Casas Bahia.
Também cresci,
Fiquei grande.
Já não caibo dentro de mim
E de tão solitário
sou meu próprio vizinho.
E de tão solitário
Sou meu próprio vizinho

mnemo

Há um resíduo de futuro
no vento, fotograma ante-
cipado, montagem de fragmentos
induzindo à cena. Como
aquela árvore se curvando com-
placente aos invisíveis pesos,
como o mormaço
predizendo chuva. Repito,
há um canto anterior
a qualquer canto, uma réstia,
um eco primeiro, como um som
que ressoa por dentro de cada
palavra, como todo gesto se
desenha e apaga, então
novamente. Há o revés,
o diáfano, o termo, beleza
posta e perdida, o desen-
cadeamento, assim
como a sede do vapor
por uma forma, assim
como tudo retorna
à imaginação
por trás da cortina
da memória.

[alçar voo]

alçar voo
na avenida
entre carros e caminhões
banhados pela tarde
como um falcão mirando
o ninho feito no teu colo
me perguntando
por que ainda gosto tanto do sol
rascunho uma resposta
dizendo:
é por causa da vitamina d
mas logo risco
eu gosto do sol
porque ele marcou
minha carne

27 de outubro de 2016

julgamento

Não é sua tarefa tentar dirigir - isso apenas o desviaria de seu caminho - e sim se deixar conduzir. Se ele souber enfrentar o destino como uma atitude de aceitação, certamente encontrará a orientação correta.

I Ching ou Livro das Mutações

26 de outubro de 2016

Instruções para dar Corda no Relógio

Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.

Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não correm, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.

Julio Cortázar

24 de outubro de 2016

Arrastão 2

esquecerei minha infância
no elevador entre o décimo e o nono andar e até
tenho miojo e a tv aberta
badalação conta bancária — nadas

o açúcar da sua voz
me roubou a bolsa e com o choque tive amnésia
não lembrarei o meu nome

na última hora disse que ia para o havaí
na praia
ouviria o tumulto
do mar
pedindo esmola e perdão

Se eu encostasse
meu ouvido
no meu peito
ouviria o tumulto
e as escadas magírus
ditando este e-mail para minha vizinha

adiós muchacha

isso é pra você que insiste esquecer o guarda-chuva só pra ter a esperança de um dia voltar atrás

não sairá dos meus ossos
(can’t you see?)

Salvador Passos




Boletim de Ocorrência: Inventário de versos subtraídos



Minas

Se eu encostasse
meu ouvido
no seu peito
ouviria o tumulto
do mar
o alarido estridente
dos banhistas
cegos de sol
o baque
das ondas
quando despencam
na praia

Vem
escuta
no meu peito
o silêncio
elementar
dos metais

querida angélica

querida angélica não pude ir fiquei presa
no elevador entre o décimo e o nono andar e até
que o zelador se desse conta já eram dez e meia

querida angélica não pude ir tive um pequeno
acidente doméstico meu cabelo se enganchou dentro
da lavadora na verdade está preso até agora estou
ditando este e-mail para minha vizinha

querida angélica não pude ir meu cachorro
morreu e depois ressuscitou e subiu aos céus
passei a tarde envolvida com os bombeiros
e as escadas magírus

querida angélica não pude ir perdi meu cartão
do banco num caixa automático fui reclamar
para o guarda que na verdade era assaltante
me roubou a bolsa e com o choque tive amnésia

querida angélica não pude ir meu chefe me ligou
na última hora disse que ia para o havaí
de motocicleta e eu tive que ir para o trabalho
de biquíni portanto me resfriei

querida angélica não pude ir estou num
cybercafé às margens do orinoco fui sequestrada
por um grupo terrorista por favor deposite
dez mil dólares na conta 11308-0 do citibank
agência valparaíso obrigada pago quando voltar

Poesia e Realidade

o açúcar da sua voz
não sairá dos meus ossos —

minha vida será triste
perderei os meus amigos

venderei minha família
por um copo de cachaça

vagarei pelas cidades
pedindo esmola e perdão

esquecerei minha infância
não lembrarei o meu nome

morrerei como indigente
não serei reconhecido

meu corpo cheio de escaras
será jogado no mar —

o açúcar da sua voz
não sairá dos meus ossos


elogio do fracasso
bye bye mecenas que eu nunca vi
patronos bancos prizes marmeladas
adiós muchachas
            ninfas depiladas
iates vulvas
     que sequer comi

sayonara sucesso
            (can’t you see?)
badalação conta bancária — nadas
que tudo me dariam nas bancadas
da glória em cosmopolitan party

fico tranquilo
            a fome é coisa pouca
tenho miojo e a tv aberta
não deixa que eu me perca
                   em zap a esmo

penhoro o notebook
            corto a coca
dispenso a secretária
                    (é a coisa certa)
e fico de office-boy para mim mesmo



inverno dentro dos tímpanos

Isso é pra você que é um desses caras fumando o último cigarro do maço antes de atravessar a Rua dos Pingüins Tristonhos. É pra você que insiste esquecer o guarda-chuva só pra ter a esperança de um dia voltar atrás. É pra você que come cheeseburguers com recheio de neve e catchup esperando a noite chegar num banco qualquer de uma praça chamada No Meio do Nada. É pra você que cruza a Rodovia do Café dentro dum ônibus voltando da Cidade Industrial por volta da 23:45, carregando uma sacolinha cheia de desilusão. É pra você que é aí das quebradas e tem o tórax inchado e os olhos melados ganindo pra lua com intervalos peripatéticos de tosse. É pra você que espera os créditos acabarem antes de sair do filme. Isso é pra você em quem os analgésico não fazem mais efeito.







21 de outubro de 2016

Arrastão

cheio de compromissos com o abstrato
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos
só os dias, poeta, e as noites, te conhecem

Segue por esta, por aquela rua
prisionero de la corbata y del autobús
engenheiro de troços e destroços

a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos
eres un condenado a lo cotidiano

Ao longo da muralha que habitamos 
Ainda era Rio de Janeiro, Botafogo
Maios, janeiros, setembros e os outros meses

no fundo escuro da língua
Trabalha - numa música secreta, inaudível
por não termos connosco cordas de violinos 

espaços cheios de gente de costas
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
Fechada à chave a humanidade janta

''Adeus ao aqui, ou seja onde for. Recrutas de boa vontade, nossa filosofia será feroz; ignorantes da ciência, pervertidos pelo conforto; que se arrebente o mundo que lá está. É a verdadeira marcha. Em frente, vamos!''
a cada menino um jacaré
para que as escolas cheirem a medo

Estas são palavras que eu não
deveria dizer 
Todo es moneda falsa: quema todos los poetas
cultiva la rosa, no la hagas de papel

Salvador Passos


 Boletim de ocorrência: Inventário dos versos subtraídos:

cheio de compromissos com o abstrato. (Cortázar)
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos. (António José Forte)
só os dias, poeta, e as noites, te conhecem (Gerardo Mello Mourão)

Segue por esta, por aquela rua (António José Forte)
prisionero de la corbata y del autobús. (Fernando Ferreira de Loada)
engenheiro de troços e destroços (Gerardo Mello Mourão)

a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.(António José Forte)
eres un condenado a lo cotidiano, (Fernando Ferreira de Loada)

Ao longo da muralha que habitamos  (Mário Cesariny)
Ainda era Rio de Janeiro, Botafogo (Stela do Patrocínio)
Maios, janeiros, setembros e os outros meses (Gerardo Mello Mourão)

no fundo escuro da língua (Ana Martins Marques)
Trabalha - numa música secreta, inaudível. (António José Forte)
por não termos connosco cordas de violinos  (Mário Cesariny)

espaços cheios de gente de costas (Mário Cesariny)
e escadas e ponteiros e crianças sentadas (Mário Cesariny)
Fechada à chave a humanidade janta.(António José Forte)

''Adeus ao aqui, ou seja onde for. Recrutas de boa vontade, nossa filosofia será feroz; ignorantes da ciência, pervertidos pelo conforto; que se arrebente o mundo que lá está. É a verdadeira marcha. Em frente, vamos!'' (Rimbaud)
a cada menino um jacaré
para que as escolas cheirem a medo (Cortázar)

Estas são palavras que eu não
deveria dizer  (Ana Martins Marques)
Todo es moneda falsa: quema todos los poetas. (Fernando Ferreira de Loada)
cultiva la rosa, no la hagas de papel.(Fernando Ferreira de Loada)

20 de outubro de 2016

Quase ninguém vai tirar você do sério

O cavalo relincha, o cachorro late,
a soma dos ângulos de um triângulo
é igual a dois retos,
a sopa, a consciência, a alcachofra, depois
do dois, o três; depois de hoje, amanhã
quase ninguém vai tirar você do sério.
Quase ninguém nem nada, porque
como levar a sério essas pulsações
em que o sonho é acesso, esses olhares
de insuportável lucidez num bonde
isso que diz agora: Foge,
mas afinal, ao fim e ao cabo, não passava
de um gomo de laranja
explodindo na boca?
Como levar à sério que uma porta
dê na tristeza se o arquiteto
a abriu para o corredor, que uns seios
desenhem paralelos seus jardins
quando é hora de ir para o trabalho?
Impossível negar as evidências
diz o doutor e diz bem, inútil
tirar do sério o honesto almanaque,
São Rulfo, Santa Tecla, São Fermim,
a Assunção,
o cavalo relincha, o cachorro late,
quase ninguém lhe oferece numa esquina
um pedacinho solto de bicicleta ou pião,
quase nunca é verão em pleno inverno
por razões de lógica estritamente polida
é preciso ser o que se é ou não ser nada, e nada
vai tirar você do sério, ninguém
vai tirar, e se um cavalo late
nunca o saberemos, porque
os cavalos não latem.
Bastaria um só isso, um não quero,
para começar o dia de outra maneira,
ferver o rádio junto com as batatas
e dar a cada menino um jacaré
para que as escolas cheirem a medo,
levar os mortos para tomarem ar,
enfiar as mitras na maionese,
atividades subversivas, é claro,
mas outras coisas há: fuzis
correm pelas trilhas, a América do Sul
cresce em sua selva rumo à aurora,
de tanto arroz banhado em sangue
nascerá outra maneira de ser homem.
Menciono apenas estas poucas coisas,
tiro do sério uns e outros
que ainda acreditam na poesia
que leva a sério seu vocabulário
cheio de compromissos com o abstrato.
(A soma dos ângulos de um triângulo.)
((Os cavalos não latem.))
(((Diz o doutor, e diz bem.)))

Julio Cortázar

Ao navio que partiu sem mim

Eros manda avisar
que não habita parlamento
Que o amor não é
uma social-democracia
Que onde dois são dois
a discórdia faz ninho
Que o livre-arbítrio
é a desculpa da apatia
Que o tirano e o escravo
são gêmeos siameses
Que o indivíduo é um aborto
iluminista
Que a Vontade se alimenta
de sangue
Que o mártir é publicitário
Que a sorte é uma navalha
Que a saudade é um labirinto
 
Italo Diblasi

18 de outubro de 2016

miojo

marcar a página
com a passagem das palavras
o dorso
a vértebra
o osso

penar palavras
colher o fogo das entranhas
ladrão de ossos
arqueólogo de uma geografia obscura
procedimento nômade
tradição delirante

telefones rasgam a noite
morte e dinheiro em seu incesto
sinto pena da solidão teleguiada
rádios que perturbam o silêncio
signos do nada
estática aberta
atento busco as palavras
o corpo das palavras
como navios que desbravam um distante horizonte
mandíbulas que mastigam nomes
pra cuspir distancias e insônias

no armário da cozinha
outro verme devora lentamente meu miojo

Salvador Passos

Carta a un joven poeta

Un tigre de paja no es un tigre.
En un espectáculo donde un mago se presenta ante una
    platea de magos,
es tedioso ver surgir un conejo de un sombrero de
    copa.
De la minucia de un examen depende la constatación
    de las diferencias;
los poetas, hoy, tienen la misma boca, vocabulario y
    vómito:
no distinguimos a Juan de Juana.

El poema, hecho de nadas, es intrínseco,
no depende de la miel o de la lluvia;
poetízalo o no, como quieras, perfuma la flor,
burla al defensa, al toro, o a la señora fulana de tal.
Desconfía de las palabras, te traicionan, y de los
    recursos gráficos:
pasa por ellos como por mullidas alfombras.

No traspases las inoxidables rejas que te limitan:
palabra, mujer, casa, cachorro, teléfono,
la marca de tu cigarro, la cerveza:
eres un condenado a lo cotidiano,
prisionero de la corbata y del autobús.
La remington, la máquina de afeitar y los calzones son
    tus amigos: ¿para qué más?

Cércate de un foso donde edificarás tu soledad y bebe
una cerveza, no más de una:
todas las mujeres son inferiores a las fantasías.
Todo es moneda falsa: quema todos los poetas.
Rompe las cámaras fotográficas, falsean la realidad,
    acampa en la fuente.

No serás mejor poeta si matas al presidente de la
    república:
la evidencia engaña, no la violentes;
manzana madurando o gusano de seda, cuídate,
cultiva la rosa, no la hagas de papel.

Fernando Ferreira de Loada

poema para os estudiosos e biografos

Não me expliquem:
prisma, de mil faces,
sou insondável, abissal.
A poesia não é um espelho;
é um estado momentâneo.
Se me retrato, logo me desdigo,
transfiguro-me, horizontalizando
minhas emoções e incertezas.
Amo o imprevisto,
dói-me o que adivinho;
não me ofereçam banquetes mastigados.
A clareza não a tenho à superfície;
é necessário uma faca para fazê-la flutuar;
vão ao cerne; sou quarto crescente na lua cheia.
Não me expliquem pelas palavras,
pelo bigode nem pelo cachimbo.

Fernando Ferreira de Loanda

14 de outubro de 2016

um poeta

Hás de testemunhar ruínas
antes de existirem ruínas:
engenheiro de troços e destroços
empreitaras demolições —
desmoronaste muros.

Profeta — risca riscaste riscarás
roteiros de pássaros no ar — e riscas
calendários passados e futuros — riscas
a arquitetura dos escombros
antes durante e depois deles
os tempos ouvem ouviram e ouvirão
esses passos de pedra
que pisam pisaram pisarão
rosa, lírio, jasmim e às vezes
ovelhas imoladas.

Maios, janeiros, setembros e os outros meses
meses azuis e meses pluviais
te saúdam à beira das falésias à beira-mar à beira-rio
à beira-abismos à beira séculos:
piloto do naufrágio
governador dos tempos tetrarca dos milênios
arquivista — tabelião das eras
só os dias, poeta, e as noites, te conhecem
sabem teu nome
e nenhum outro nome.

Gerardo Mello Mourão

7 de outubro de 2016

anotações

tentar lembrar dos versos que sonhei
devolver os livros pra biblioteca
pagar as contas
regar as flores ressecadas
tirar o lixo
recarregar o celular
olhar o céu nas noites quentes
desligar a TV antes de dormir
observar os vizinhos vendo TV ao fechar as cortinas
contar as luzes que se apagam após a meia noite
sentir o vento soprar no meu rosto
trocar a senha do cartão
cortar as unhas do pé
terminar de ler aquele livro que falava sobre os bonecos de barro
pagar o analista
andar por entre os dias sem ter pressa
tomar uma média numa birosca do centro
postergar o início da jornada
esquecer meu nome
olhar para cidade como um turista
(olhar virgem de palavras; palavra virgem de dizeres)
me perder nas ruas
me perguntar de onde vieram todas estas pessoas
(quais serão seus nomes e seus sonhos?)
deixar meus passos seguirem seus próprios passos
ficar largado nas esquinas
ser o mendigo que estica a mão esperando pelas moedas velhas
anotar as coisas que esqueço
esquecer as coisas que anoto
apostar na loto
jogar fora os bilhetes que não foram premiados
beber mais água
comer menos besteiras
caminhar mais perto do infinito
caminhar mais certo do incerto

Salvador Passos