A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

11 de dezembro de 2017

Horário Livre


 A velha mais velha do asilo. Mesmo banco de todas as tardes. Fundo sombrio da varanda, últimas luzes cinzentas do crepúsculo. Fala pouco, quase nada. Quando se dirigem a ela, responde cumprimentos, agradece gentilezas e diz amém (se for necessário). Falar cansa. Resta ficar pensando, o tempo todo.   

Puro engano, a ideia de que o tempo é livre e democrático. Parece que todos têm direito ao mesmo tempo, que cada um usa como quiser. Não é bem assim. É muito além das medidas conhecidas. Tempo não é coisa única que se divide, igualmente, entre as pessoas. O tempo corre em velocidade íntima e penetra nos espaços vazios de cada vida. Minutos, segundos, horas ou anos podem ter durações diferentes para cada indivíduo – e demorar o tanto que a subjetividade exige no momento.

Três anos no asilo. Professora aposentada. Viúva de oficial do exército – metódico e previsível. Vida programada. Casamento de 52 anos. Relação amiga, respeitosa e equilibrada com o militar da artilharia. Muito tempo. Não teve filhos. Nenhuma grande paixão. Prazeres mínimos – nunca teve oportunidade para transgredir. Não havia grandes traumas ou tragédias para lamentar, mas também nada espetacular guardado na memória. Vida neutra, regular, correta, bem traçada (como os cálculos de balística do coronel).  Vida repetitiva (como a cadência do batalhão no desfile da independência, que o marido comandava com tanto orgulho).  Estudo e trabalho: únicas razões que preencheram a vida da mulher. Poucas emoções fortes para recordar.  As melhores lembranças vinham das aulas de física, trabalho de décadas, no colégio e na faculdade. Considerava um privilégio a missão de ensinar... o funcionamento do mundo.

O tempo mora na alma. O tempo moral, temporal, é tempestade, besta, vendaval. O tempo não é infalível. Errado pensar que o tempo é exato e não falha. Falha e falta, porque nasce e morre dentro da gente. Enquanto escorre, tem o tamanho que quiser. É música silenciosa que embala o curso do universo. Compasso e ritmo definem sua existência. O tempo é invenção desvairada de cada pessoa, na dança consigo mesma. Não é coisa geral. Tempo universal (organizado em fatias) é como cena parada de um filme – cinema que vira fotografia.  

Poucos parentes, a maioria já morreu. Sobrinhos e fiéis agregados apareciam vez ou outra – no aniversário, páscoa, véspera de natal e coisas assim. Sempre apressados, constrangidos, tentando demonstrar que tinham algo mais importante para fazer.  A única visita que lhe fazia bem era Ester, ex-aluna que reencontrara, por acaso, no asilo. Duas vezes por mês, Ester passava lá para ver o avô e dedicava um bom tempo para conversar com a antiga professora. Ester – a única que não inventava motivos para dizer que estava na hora de ir embora.  Só saia quando a velha dizia que precisava descansar.    

Há séculos, o terrível vício das horas aflige a humanidade. Desde que foi criada a civilização do relógio (para facilitar a divisão social dos talentos e reprimir excessos de velocidade de imaginação) a desconstrução do tempo é considerada insulto científico ou distúrbio pessoal. Difícil fazer entender aos viciados em calendários e agendas que é impossível regular os momentos e a cadência da vida. Tão esdrúxulo como tentar disciplinar o vento. Ou pensar a sucessão das eras como uma sequência contínua em direção a um futuro fixo (como se só existisse o presente, cuja função seria apagar o passado).

Lembrou orgulhosa dos exemplos poéticos que construía para explicar fenômenos misteriosos com as forças da natureza.

A velha professora detestava os livros que ganhava.  Histórias tolas, manuais de autoajuda, meditação, pensamento positivo ou mensagens religiosas de preparação para a  morte. Preferia ficção científica, aventuras que desafiavam a inteligência e propunham novos pensamentos. Gostava mais dos clássicos. A imaginação dos autores da atualidade ficava cada vez mais tecnológica do que científica. O desastre estava aí: pouca ciência para muita tecnologia. Ultimamente, mantinha no colo o pequeno volume que Ester trouxe de presente. Os Crononautas (tradução horrível), que narra viagens no tempo de um grupo de cientistas, que descobre equações mentais que permitem deslocamentos no espaço com a força do pensamento. 

Não se deve acreditar que o tempo só caminha para frente. Nada mais falso. O tempo é etéreo e volátil. Pode andar para frente, para trás, para cima, para baixo e para qualquer lado. O tempo é invisível. Lugar móvel, abstrato, onde fica guardado tudo que existe, existiu ou existirá.  Voa, na velocidade total de todas as galáxias, sendo capaz de atingir qualquer distância cabível no universo. Às vezes, fica entupido num canto sem saída. Como dentro da garganta daquele velho com cara de monstro.

O avô de Ester não gostava da velha.  A neta parecia mais interessada na professora maluca do que nos problemas de saúde que ele relatava com profundo sentimento de carência e abandono. Maldizia a tarde que Ester reconheceu a professora, solitária, no canto da varanda. Foi ele que começou a espalhar que a velha era um perigo.

– Minha neta contou que ela é um gênio. Sabe tudo sobre energia nuclear. Foi até convidada para trabalhar na Nasa, mas o marido não concordou. Cuidado com ela! É um gênio, mas é meio desequilibrada. Tenho certeza que está aprontando alguma coisa. Olha a cara dela: parece que vive com raiva da humanidade.  Gente assim é capaz de tudo. Já imaginou se ela resolve fabricar uma bomba? Provocar uma explosão, causar um curto, um incêndio...

O mundo perde vida com a ideologia do tempo aprisionado. Inteligências criativas são bloqueadas e se atrofiam. Tempo expresso em números; tempo vigiado em tabelas e prazos; tempo apertado em competições de sobrevivência. Na vida corrida, condicionada a datas e compromissos marcados, sentimentos fraternos e respeito solidário são rebarbas de excessos. Tempo engarrafado, paralisante, epidemia de angústia, destruição da harmonia natural e ilusão de um futuro salvador. Droga pesada.

Tempo é liberdade! Abaixo opressores e compressores do tempo! Tempo livre. Solto e vago!  O tempo é leito de luz e usina de memória – confinado, compromete competências do espírito e altera a hierarquia dos desejos. Cada espécie é especialista em saber viver – entender o tempo que tem. Vida e morte, no mesmo trampolim. O mesmo ponto pode ser princípio ou fim. Depende da convenção. O amarelo é a menor distância entre o verde e o azul. Quantos tons existem entre os dois? Cor é luz diluída no calor do tempo.  Enquanto existir fusos horários, cronômetros e formas de medir o tempo, as pessoas não serão livres para perceber as verdadeiras variações das cores e as pulsações mutantes das estrelas. O tempo limitado no ciclo das horas aprisiona a humanidade na periferia da terra. Por isso ficamos isolados de outras civilizações extraterrestres. É preciso libertar o tempo.
    
O velho implicante foi quem ficou mais alegre, quando o diretor do asilo avisou que a professora não podia mais ficar interna na casa.  Cleptomania. Encontraram diversos relógios, desaparecidos dentro do asilo, escondidos no quarto da velha. Só não entenderam porque tinham sido destruídos com tanta violência.  

Ramayana Vargens

30 de novembro de 2017

Lobos internos

Um velho Cherokee dava lições de vida aos seus netos.Disse-lhes:

"Está se travando uma luta dentro de mim. Luta terrível, entre dois lobos.Um é o medo, a cólera, a inveja, a tristeza, o remorso, a arrogância, a autopiedade, a culpa, o ressentimento, a inferioridade e a mentira.

O outro é a paz, a esperança, o amor, a alegria, a delicadeza, a benevolência, a amizade, a empatia, a generosidade,a  verdade, a compaixão e a fé.

A mesma luta está se travando também dentro de vocês e de todas as outras pessoas..."

As crianças puseram-se a refletir sobre o assunto e uma delas perguntou ao avô:

"Qual dos lobos vencerá?"

O ancião respondeu:

"Aquele que for alimentado..."

Lenda Cherokee

26 de novembro de 2017

adão

homem, sua desventura não tem nome
a fala é além das coisas, mas está aquém de tudo
com inveja observa os animas que apenas são
tem medo dos animais pois eles são imunes aos nomes

(dizem a vida em seu silêncio apenas sendo)

você, perdido entre tantos nomes, chora
mas finge que não chora
quer a fuga dos nomes
mas segue nomeando o mundo

Salvador Passos

incêndio

a chuva acontece em mim
a morte é apenas um espelho do relógio

na palavra dói o nome
o tempo
a pedra
o incêndio

o segredo que não cabe nos dizeres

Salvador Passos

18 de novembro de 2017

o pouco basta pro poeta

o pouco basta pro poeta

arrancar asfalto com as unhas
revela a falta que afoga o peito

queria perder
o ato atávico de atar a vida
podar o dia,
prender corpo,
guardar a fala
enquanto o tempo passa em branco

viver é ter o tempo impresso nos cabelos
ter os braços longos como a chuva
abraçar o abstrato entre as rimas
rimar os rumos rústicos da terra
envergar a tarde no horizonte
até ela encostar na noite
perder a posse que possui a gente
beber a água que nos corre o verbo
o rio que percorre o ventre
ver o vento entre a sombra e o breve
o ar que arfa entre a dor com força
a foz que faz a forma em nome
a voz que reverbera o verbo
a noite que enverga o tempo
e dói na sede que não cede

Salvador Passos

novembro

me abri em poemas
inscrito
na solidão noturna da distância
fui um eu que não me era
ânsia amarga
deste ar que me faltava
errei meus passos
pelos cantos
a noite me foi entregue
e dela nada fiz
fui apenas nome
enxerguei nos ventos de concreto
o teu silêncio

invadi tua cidade
armado apenas com poemas
li os teus segredos sublinhados

a noite invadiu as margens do poema
deixei palavras pelos cantos
deixei janelas abertas
a casa guardava seus espaços em silêncio
 
Salvador Passos

chuva de poesia



poesia é:
do(ar)

Salvador Passos


Rito

Alertas, trapaças, cobranças, compromissos:
Quantas ilhas sem edição, vidas sem viço,
A morte visita sem aviso?
E, afinal, pra que mesmo tudo isso?

O que deu nesse mundo, caduco,
O que ficou do tempo em que viver
Era mais que só mudar de assunto
Era rito, um estado de espírito?

Ou quando olhar era uma reza,
Pensar que revelava a leveza,
Música vindo de dentro
(Precisa de centro?)

Uma revolução do sentir nos fez ateus:
Quisemos então ver a face de Deus.

E você a meu lado, lembra
De quando bastava uma fagulha
Pra explodir uma Bastilha?

Rodrigo Garcia Lopes

Manifesto do Realismo Mântico

Primeiro gesto de um realista mântico: aceitar a proteção do acaso. A nossa poesia está em pré-dizer o belo. Não somos imunes a nenhum tipo de beleza. Descendemos da prosa de miraculação. A prosa de ficção é nosso antepassado distante.       
            Mântra do Realismo Mântico:
Sobrenatural é o poema,
porque é natural
mas está sempre
                                                                              sobre.
O extraordinário é nosso estado de espírito. O ordinário é nosso arquinimigo, faz séculos que estamos tentando bani-lo.
É preciso se abandonar todos os dias. Vivenciar a ambivalência do risco. Escrita e perigo. Vivo no risco para que haja escrita. Vivo no risco para que haja perigo. Produzo linhas, desconfio de meridianos que não crio. Me arriscar significa me inscrever no mundo. Me catapulto no equador da vontade do acaso.
Não somos predestinados. O destino vem nos pedir que o interpretemos, porque ele mesmo não sabe de si.
Primeira crença de um realista mântico: a maravilha está sendo providenciada. Confiamos no livre arbítrio da maravilha, isto é, nada diferente dela se manifesta. Confiamos na liberdade de expressão do insólito.
Só é comum o que é dito de maneira comum.O evidente exige clarividência. Pela transubstanciação do lugar comum e do senso comum através de formas encantatórias. O absurdo é nosso milagre. O absurdismo miraculoso é uma de nossas formas a priori.
Primeira medida de um realista mântico: adotar uma estrela para ser teu coração. Guardar o firmamento no lado esquerdo do peito.
Não se deixe roubar a exceção, ela te pertence.No mundo dos homens,os milagres não concedem exceções, por que você deveria ter compaixão pela regra? A regra é um estado de misericórdia. Chega de pedir perdão.
Só Exu expulsa o Malafaia das pessoas.
A aparência real da coisa é aquela que provoca encantamento, é o único modo de dizer a coisa, de lembrá-la. A maravilha é uma memória afetiva. Tornar as coisas ordinárias é a melhor forma de esquecê-las.
O sublime é cotidiano e mínimo. Mântico: linguagem escolhida para capturar os pequenos gestos. Nossos temas não são celestiais. Acreditamos, por exemplo, que quando alguém que amamos morre vira um ponto em nossa íris e não uma estrela. Acreditamos no milagre do encontro. A real beleza das pessoas não se pode pegar com a mão, só se pode tocar com o mântico. Mânticas são as mãos da nossa imaginação intuitiva.
Afagar o impossível até que ele possa nos tratar com ternura.
Não tentem nos sabotar pela etimologia. Nosso movimento não é a perda de uma sílaba. Não somos Ro-mânticos. O amor é nossa benção, não é nossa maldição e nos realizamos completamente em vida. Também não somos místicos, nossa devoção é ao gênero humano pelo que pode realizar de inesperado.
Só depois do primeiro amor é que se tem contato pela primeira vez com a linguagem.
Prevemos que os de nossa extirpe possam degenerar em Realismo’s Miraculoso,  Místico, Oracular, Profético e outras qualidades de esoterismo barato, misticismo arcaico. Porém, é importante que se diga: O Realismo Mântico não sabe falar sobre o que não existe: o que existe já dá bastante trabalho.
Nossa mediunidade é saber chegar ao outro, precisamos ser capazes de nos incorporar uns nos outros. Hei de cantar o ponto que fará você baixar em mim. Hei de fazer a prece que fará você ser eu. A única oração: o poema.
O poema é um vocativo, atráves dele te invocamos, contrapomos o imperativo do olhar desavisado. Mesmo o passado na literatura mântica, quando vem, inevitavelmente vem sob a forma de aviso. O que deixamos passar sempre volta. Também não é errado dizer que o poema é a vocação do outro, nunca nossa.
Nosso trabalho é mais importante que nossa identidade. O Realismo Mântico é uma grande entidade. Oxímoro Mandrágora é nosso codinome. Somos regidos pelo Oxímoro, lei do universo, aceitamos a dualidade, a co-existência dos contrários. Mandrágora é qualquer mitologia sem nome. Pegamos o sobrenome emprestado como sinônimo do extraordinário que nos escapa.
Os descendentes de Macunaíma dizendo “Ai! que saudade...” do que não fomos.
Por um Brasil mais América do Sul. Brasil, continente perdido,
volte para casa.
Enriquece a nossa literatura o estudo do espanhol, tupi-guarani, yorubá,  quéchua, aimará. São as palavras renegadas de nossos irmãos. A língua cria realidade. A poesia dessas línguas nos abre a dimensão oculta do que ainda não somos. Menos networking e mais compañerismo, amistad, red de contactos. Devolvam as terras dos filhos de ñanderu. Aruanda: a metáfora habitada nos turbantes, porque alguns de nós já não podem voltar para casa. A ancestralidade vivificada na figura de linguagem.
Os poetas mortos são oráculos a ser consultados apenas. Não tenha medo de interpretar a mensagem. Os textos dos mortos devem ser profanados. Pelo saque aos túmulos.
A história da literatura é uma ata de eclipses.
Escreva o que ouviu do além com suas próprias palavras.
Diga aos ancestrais para ler os vivos.
A apreciação estética do poema se dá por excelência através do sexto sentido.
Porque é miraculoso, o poema não se faz, o poema acontece.Ele só existe quando chega até o outro. É no outro que ele dá o primeiro suspiro. Antes disso, o poema é apenas porvir.
Somos os herdeiros de Houdini, o miraculoso.
O milagre é visto. O poema imprevisto. Exemplos de imprevisão do poema:  
1. Insistência de uma imagem, de uma frase, de uma palavra em nosso pensamento que vai se materializando em tudo no mundo ao redor, o poema é um gesto do mundo. 2. Um homem-estátua, pintado de prateado, voltando para casa de ônibus e dormindo no último banco. 3. Um mendigo que em lugar de pedir esmolas, pergunta se você tem medo de borboletas e quando você responde que não, como se fosse algo absurdo, ele passa uma borboleta pousada na mão dele para a sua blusa. Essa borboleta abre e fecha as asas. Você descobre que sim, tem medo de borboletas, pelo menos uma borboleta assim tão de perto, tranquila, pousada em você. O mendigo ri, explica que criou a borboleta desde pequena, tira a borboleta da sua blusa e desaparece levando o milagre consigo. 4. Encontrar um homem de classe média alta com a sobrancelha esquerda branca na fila do cinema e pensar que aquela marca de nascença é tão rara que nunca viu igual. Voltando para casa de trem no mesmo dia encontrar outro homem, um operário, com a sobrancelha direita branca. 5. Ganhar de presente O pequeno príncipedepois de grande na véspera da morte de seu pai. Sentar no ônibus ao lado de uma mulher no momento exato em que ela abre O pequeno príncipe e começa a ler o livro.6.Ouvir da boca de uma desconhecida que você não tem ligação alguma com os arquétipos mundanos e nem planetários. “Você não é daqui, você veio das estrelas. E teu lugar de poder é com os índios das Taigas, os adoradores da lua, pertencentes a lugares frios da região norte como Canadá, Noruega, Groenlândia”. Ela não sabe que teu sonho é ver neve. Viver onde é seis meses dia e seis meses noite. Muito menos imagina que você toca um piano feito de aurora boreal. 7. Um grande amigo seu, poeta, ser chamado para ser o juiz de paz de um casamento em que o noivo está prestes a ser preso, já foi condenado e está aguardando a voz de prisão. A cerimônia é linda. O noivo está radiante. No dia seguinte a polícia vem buscar o noivo recém casado às 6 horas da manhã, arrancando o homem de seu sonho. Um vizinho que acompanhou tudo disse “Depois que levaram ele, o silêncio ficou de luto”. Seu amigo foi o responsável por unir aquelas almas na eternidade. O alívio do preso é que lá o tempo não existe.
A superficialidade é um olhar desatento e o milagre está a 90° da superfície.
Eliminar a superficialidade da forma, do amor, do discurso vazio, da palavra dita sem intenção, da falta de presença, até que só reste o milagre.
O poema que não abre um canal de comunicação mântica, que não fala com o afeto do outro, é uma invenção. O poema não pode ser uma invenção. Se é invenção não é poema.  Se chega até o poema, se acha o poema. Enterrado no deserto. No fundo falso das coisas. Nas escavações arqueológicas debaixo do seu travesseiro. A palavra foi desapropriada pela discursividade. O poema oferece morada à palavra exilada. Poema não é discurso.
Não sei amar, não sei sentir, não sei viver,
não sei quem sou, no poema eu aprendo.
Já disseram que amor é tanta coisa que ele acabou sendo nada. Mal contemporâneo. Se tiver que dizer poesia, já não é. Se disser nosso nome, já não somos. Use todos os recursos necessários ao encantamento, para que a revelação aconteça.
Ofereça ao leitor uma linguagem sem perdão. Misericórdia é a miséria do coração, o verso mântico quer tirá-lo da miséria em que se encontra. É por isso que o poema jamais é uma trégua. O poema é um despertar.
Podem te ajudar em tua reza contigo mesmo:
1 – A rima do entendimento: no verso mântico são os conceitos que rimam. A musicalidade do poema é aquela que faz adentrar o silêncio. O poema mântico é o ensinamento da música do silêncio. Encontrar o presente dentro da rima do silêncio. Tempo e dádiva. As palavras estalam os ossos e aqueles ossos musicais calam o mundo.
2  – A sentença miraculosa: é quando ela não pode ser dita de modo diferente do que foi profetizada. Mas não se engane, profecia tem mais a ver com singularidade da linguagem e menos com adivinhação.Literatura não é abracadabra. Sentença miraculosa é aquela que não permite tradução. Encontre a informação estética do indizível.
3 – A forma extraordinária: o milagre está no mundo, porém a formação literária de um realista mântico consiste justamente em despir o milagre de suas roupas cotidianas. Não se pode simplesmente esperar que o milagre aconteça( “Acontecer” é qualidade do que é visto. Quando se torna algo visível, aquilo acontece). Veja primeiro para que possa acontecer. Conjure o sobrenatural da linguagem. Seja extraordinário, esteja fora da ordem, não compactue com o ordinário. Insinue o invisível,  o sentimento do invisível substitui as lacunas do olhar. Nossa preocupação é com a técnica perfeita do afeto, a técnica da iluminação. Não esqueça, contudo, que para revelar a escuridão é preciso trazer parte dela consigo.
4  – O sussurro da escuridão: é aquele que vem do jamais. A palavra deve trazer assombro tanto pelo espanto, quanto pela suspensão da luz. Em plena luz do dia os mistérios ofuscam, na noite se revelam pela penumbra, pela opacidade, que é quando podemos vê-los. Ninguém é capaz de olhar para o sol diretamente. Para que as estrelas apareçam é preciso evocar a noite. O verso perfeito não é o que está perfeitamente escrito, pontuado, metrificado, rimado, é aquele que é capaz de fazer o leitor “cumprimentar a  beleza”. Para falar ao coração do outro e que o outro aceite a mensagem é necessário algo mais do que perfeição. A revelação vem de lado, oblíqua, para poder atravessar, o que vem de frente é atropelamento. “Nas próprias antecâmaras do sentimento é proibido ser explícito”.
5 – A quintessência da língua: só o quintessencial deve permanecer, o essencial não precisa ser dito, apenas sentido. A quintessência do sentimento é que garante o dizer. É essencial olhar para dentro de si até que a miração aconteça, isto é, a linguagem encontre sua quintessência. O outro da linguagem é a sua forma quintessencial.
6 – O insólito deve ser motivo de fé. A linguagem deve adorá-lo.
Não nos deixemos seduzir pela forma. Só escreve poema aquele que descobriu um segredo. Sem segredo revelado não há poema.
Desejamos que nossa linguagem seja como nossas mãos. É preciso que o leitor sinta o poema como se olhasse para as próprias mãos pela primeira vez. Preponderamos o tato com o indizível.
Andamos de mãos dadas com a miragem.
Somos os últimos falantes do dialeto da maravilha, nossa profissão de fé é que este idioma não morra.
Quântico  confabula  com mântico não só por aproximação sonora, é qualidade da da nossa estética ser quântica quando evoca os amores que não se realizam, os amores perdidos, o primeiro amor, os amores que negamos, os amores que não aceitamos, os amores que nos negam, os amores que vivemos sozinhos. Não é que sejamos platônicos, os exemplos acima constatam um dado sentimental: o que perdemos, o que não foi, o que não é, inevitavelmente nos quantifica.
A estética mântica é uma tentativa de quantificar o imponderável, por exemplo, quanto amor existe no coração de uma baleia. Ainda cantaremos o quântico dos quânticos.
Parágrafo primeiro e único: natural é aquilo que não vemos direito.
A pré-adolescência da eternidade é nossa idade por excelência e por unanimidade. Alguns de nós são pré-adolescentes da eternidade aos 70 anos e outros aos 23 apenas. A modernidadenos fez prematuros em ruínas. A nossa juventude é milenar. Trazemos a inocência dos apocalipses.
Fomos alfabetizados pela lua cheia.
A epifania no poema frequentemente é anunciada por lágrimas. Ser poeta é  apenas um instante. No resto do tempo só contagem de estrelas. Clamamos pelo instante, nosso lugar de existência. O efêmero é nosso guru. A lágrima: aplauso do coração. Nossa medida de recepção são esses aplausos cristalinos dos olhos. É por isso que escrevemos o poema não pelo poema, mas pelo silêncio depois dele.
Quando vivo era apenas Poe. Quando morreu virou Poema.
Encantamento não tem necessariamente a ver com o que é bom para si mesmo. Fosse assim os olhos da serpente não encantariam. O perigo não seria tão atraente. A vertigem não seria a vontade de se jogar no precipício. Os olhos de um assassino podem ser tão encantadores no momento em que escolhe a próxima vítima quanto a pureza nos olhos de um recém nascido. As coisas belas são fatais. A literatura também sabe hipnotizar a crueldade. O poeta escreve seu último poema para o que ou quem o mata, porque lhe apresenta a beleza insuportável da morte.
Somos uma asa cortada: nossa literatura convence os anjos a que fiquem. É necessário escrever o poema que vai conquistar o coração de um anjo e fazê-lo se reproduzir na terra. Nossa literatura é pé no chão, mas a Terra está suspensa no mistério.
Não somos herméticos porque nossa ética não vem de Hermes. O poema não cria um segredo, é através do poema que o segredo chega. Somos contra o hermetismo. Ouvimos a mensagem de Hermes e a mensagem de Exu. Violamos correspondências divinas.
Aceitamos a impermanência: nada é nosso e tudo se transforma.
Os mensageiros somos nós, mas não se esqueça nunca que a mensagem vem de longe. Impermanência. A mensagem vem de longe porque vem de nós mesmos.
Por uma vida mitológica. Viva uma vida lendária.
O sentimento lendário se perdeu ao ponto de acharem que qualquer história para boi dormir se encaixa no gênero. Nos enganaram. Através de falsas lendas, instituiram o desaparecimento.Se você não existe, não tem lugar de fala. Te contaram que índio é coisa do passado. Te contaram que não tem mais quilombolas. Os personagens dessas lendas, porém, continuam vivos. Querem torná-los lendas pela força e pelo aniquilamento. Para nós, lenda tem a ver com vivência.
Por um Brasil menos norte americano e mais Rio Grande do Norte.
Não é preciso impregnar a literatura de cor local. Estamos cansados de ser exóticos. O espírito de um povo, a nacionalidade, não tem a ver com exuberância.
Não somos um movimento brasileiro. Somos um movimento latino-americano. Ainda que não saibamos muito bem o que é ser latino-americanos. Contudo, não sabemos também o que é ser brasileiros.
É preciso falar a língua de nosso povo. É tão importante escrever poemas quanto conversar sobre política com a população de um modo que ela entenda. Traduzir qualquer complexidade filosófica à coloquialidade. Saber falar academês e a gíria da esquina.
Saber recitar Augusto dos Anjos e em seguida dizer “Para aí no próximo ponto que eu vou descer, piloto!”.
Realismo Mântico também é o que fazemos fora dos livros. Seja uma prolongação de seus poemas. Ao fechar o livro, outro poema começa.
O cotidiano é poliglota.
O poliglotismo é nossa escolha. Não é nosso mandamento porque ninguém manda nada. Estudar todas as línguas dentro da própria língua e falar todas.
A cultura oficial é um engôdo.
Consideramos a literatura oral patrimônio imaterial da humanidade.
Aqueles que quiserem resgatar o sentimento da literatura oral serão muito bem acolhidos por nós e fortalecerão em muito nosso movimento. Vertentes do Realismo Mântico: literatura escrita, literatura oral, literatura-canção-popular, literatura-ponto-de-macumba, literatura-jeito-de-andar, literatura-dança. Nenhuma é melhor que a outra.
Por uma métrica de tambores.
Odisseu e sua tripulação sucumbiram às sereias porque não sabiam falar a língua delas. Aqui no Brasil ouvimos seu canto todos os dias, as sereias nos cantam canções de ninar, as sereias nos abençoam. Pobre Ulisses, não sabia dizer Odoyá. Era a palavra mágica para voltar para casa mais cedo.
Pelo fim da matança de baleias e pelo fim do uso de seu nome em vão. O jogo da baleia azul só demonstra a insensibilidade com que nosso mundo está lidando com milagres. Não satisfeitos com a caça ilegal de baleias, agora querem atribuir a elas a morte.
Pelas danças populares. O Coco, o Jongo, o Maracatu, o Cacuriá, o Cavalo Marinho, a Ciranda, etc ad aeternum ainda não foram culturalizados. Pela Umbanda, pelo Candomblé e pelo Toré. Pela Capoeira como prática acadêmica. Se é pra falar de academia, Platão era conhecido por esse epíteto porque tinha as omoplatas muito desenvolvidas de tanto que se exercitava, era um homem fortíssimo.
Chega de intelectualidade sem coordenação motora. Não pode existir um intelectual brasileiro que não dance e não pegue sol.
Os índios e os quilombolas ainda estão vivos. Vida longa a esses sábios. Pelos conselhos ao pé do Preto-Velho. Pela sabedoria dos pajés. Se torne pajé. O pajé é aquele que pode visitar todas as tribos sem ser atacado. Se houvesse mais pajés haveria menos guerras.
Pela sabedoria da floresta.
Pelo fim do anarco-xamanismo e da macumba-freestyle. Vá buscar em outras dimensões a sabedoria para viver da melhor maneira possível nesta dimensão, não se perca por lá. Quem se iluminou já não está mais aqui, se você fosse santo já tinha partido. A quinta dimensão não é lugar de passeio. Viver fora da terceira dimensão é alienação espiritual. Guias espirituais não são call center. Ayahuasca não é suco de laranja. Rapé não é Rinosoro. Jurema não é Gatorade. As plantas de poder devem ser respeitadas.
Abunda o fundamentalismo religioso e falta espiritualidade. A intolerância religiosa é ranço de nosso estrangeirismo, da nossa dificuldade em ser brasileiros. Não nos converteram à cristandade, nos converteram ao eurocentrismo. Brigamos entre nós pelo que é dos outros. Os pastores nos roubaram a palavra de Deus.
Vivemos em um mundo que perdeu a noção de sagrado. Saiba tornar as coisas sagradas por si mesmo. Sacralize o cotidiano. Sacralize cada gesto. Sacralize a efemeridade. Tenha fé no momento. A vida não é um despacho, a vida é assentamento.
Pela astrologia enquanto linguagem poética. O valor literário do esoterismo nos interessa.
A política não é de Deus.  Os “homens de Deus” só tem servido para roubar nosso dinheiro e patrulhar nossos corpos. Roubaram o espírito da palavra, calaram nossos verbos. Pelo dinheiro do dízimo investido em poesia.
Os Deuses são a parte desconhecida de nós mesmos.
A poesia não quer ser beatificada, isto é, canonizada. O que não quer dizer que a poesia não seja um estado de beatitude, um estado de graça. Os santos quando são canonizados é pelos milagres que fizeram e morreram com eles. Enquanto a poesia não for canonizada é porque ainda vive. A poesia não é uma santa. A poesia não quer ser santificada.
Fomos batizados na Baía de Todos-os-Santos, a hierarquia entre eles não é problema nosso.
Pelo Estado laico. A literatura, nosso culto ecumênico.
A arte é o único messias.
A arte é o único messias.
A arte é o único messias.
E a arte é feita por homens. Os salvadores estão aqui. Faça arte, quero me salvar. Preciso que você me salve.
Pela premonição do agora. O Brasil está cansado de ser profecia.
Pela caligrafia da mão esquerda que sonda as coisas do outro lado. Pela oniromancia e pela onironáutica, ou seja, pela interpretação de sonhos e pela viagem onírica.
São 99 os nomes de Deus, mas são infinitos nossos nomes.
Nenhum de nossos nomes deve ser esquecido.
Abençoar o destino que o outro nos traz. Beijar a palma da mão do ilegível.
Todos em algum momento esbarramos com o divino. Porém, nós propomos o mântico em tempo integral. Exemplos de momentos de maioridade do ser:
Carl Jung é realista mântico na intuição sobre a natureza da mente humana e na sua exploração inconsciente. Os Sete sermões aos mortos são essencialmente mânticos, assim como sua autobiografia Memórias, sonhos e reflexões e O livro vermelho.  Frederico Garcia Lorca é realista mântico em sua linguagem onírica, em Ciudad sin sueño. Manoel de Barros é realista mântico na observação da natureza e em saber extrair dela o descuido linguístico. Roberto Bolaño é realista mântico em sua vontade literária, em sua crença radical na verdade da poesia. Amuleto é seu livro mais divinatório. Mia Couto é realista mântico em suas Estórias Abensonhadas. Guimarães Rosa é realista mântico em suas pirlimpisiquices. Júlio Cortázar é realista mântico em suas correspondências. Gabriel García Marquez é realista mântico em transformar cem anos de solidão em algo fantástico, outros sucumbiram por muito menos. Jorge Luis Borges é realista mântico no Ficciones. Richard Linklater é realista mântico em Waking Life, em Boyhood e na Trilogia Before. A Bíblia é a primeira obra mântica da humanidade, mas apresenta muitas ideias corrompidas. E os leitores da Bíblia destruíram grande parte  de seu conteúdo com interpretações profanas, além de usar o livro para fins hediondos. Gaspar Noé é realista mântico em Enter The Void. Mahatma Ghandi é realista mântico em sua guerra pacífica. Jim Jarmusch é realista mântico em Paterson. Walter Benjamin é realista mântico na Tarefa do tradutor, em sua nostalgia pelo narrador e nas Teses sobre o conceito de história. Clarice Lispector é realista mântica em olhar para o abismo, em não temer o êxtase da palavra, nas epifanias que abrem outras dimensões. Eduardo Galeano é realista mântico no Livro dos abraços. Murilo Rubião é realista mântico ao ver estrelas vermelhas. Octávio Paz é realista mântico na Tradição da Ruptura. Haroldo de Campos é realista mântico em suas galáxias e em suas transcriações. Vilém Flusser é realista mântico em Língua e Realidade. Mário de Andrade é admiravelmente mântico em Macunaíma. Kaká Werá é realista mântico em Tupã Tenondé.Eu sou realista mântico ao acreditar em baleias. Fernando Pessoa é realista mântico nas Reflexões Paradoxais, mas não só, seu materialismo mântico é louvável, e sua multiplicação heteronímica de milagres é coisa a ser investigada. Paul Auster é realista mântico no Caderno Vermelho. Rilke é realista mântico nas Elegias de Duíno e nas Cartas a um jovem poeta.
Axé para quem é de axé.
Este Manifesto não foi escrito em aforismos. Foi escrito em hexagramas, em sortes do dia. Quando a literatura puder ser lida como oráculo, um livro ser espalhado em frases soltas que trazem o destino, conseguimos.
Vinicius Varela e Oxímoro Mandrágora, em algum lugar do universo, na via-láctea, no sistema solar, no planeta terra, na América do Sul, no Brasil(mas com o coração no Uruguai), no Rio de Janeiro(e em Montevidéu), em um dos pavilhões da Universidade Desconhecida, em um dos hexágonos da Biblioteca de Babel. 31/07/2666
 

arqueologia delirante

tentaremos mapear o silêncio
com palavras gastas
resgatar os nomes esquecidos
arrancar asfalto com as mãos vazias
deixar a terra nua respirar a vida

por trás do jogo insano
há um campo
uma fronteira invisível
cercada pelos sentinelas cegos

um Che indígena
descreve a cidade
com os olhos aguçados pelo espanto:

-a cidade devora os rios
para vender água

Vende aquilo que já era nosso!

Salvador Passos

19 de outubro de 2017

Os partidos

Os partidos
brota flores en mitad de la noche
en mitad de la página
sobre la panza de la muerte
la orfandad lleva un blanco en la frente
E L P O E M A S E A B R E
esa es tu fuerza
(Escrito con um nictógrafo, Arturo Carrera)
Companheira, o poema não pode
desarquivar os prédios telepáticos
em que a mudez fez ninho
a noite infiltra a mecânica do cuco
pela mão intrusa do relojoeiro
gafanhotos moram cartas sem escrita
amarelam os instantâneos
o poema não prova
dos inocentes o olho da lei
a orelha de van Gogh o corpo integral
nós somos os partidos
as solitárias portáteis os fios
que sondam os lábios
contra os aparelhos as células
os partidos
nós somos os partidos
os inocentes são um e o mesmo
a bandeira passando ao pescoço
seus dois substantivos abstratos
sequer havia porões mas limpos rituais
marchinhas tão sebastianas
o hino dos inocentes
o futebol
os inocentes
não perdem a esportiva
companheira, o poema não diz
de quando você caiu por visitar a família
carregando em joelhos frouxos
seu quinhão de guimbas e reuniões
já sem cachos e nome e dentes capazes
de versos e do contrário –
eram suaves nossos dedos
roçando as cordas
antes dos porões
a céu aberto o poema se abre
entre nós
seu enigma e nossos mortos
cantam e cantamos
para não morrer muito
pelo contrário.

Guilherme Gonçalves

uma certa distância no tempo simplifica as coisas


uma certa distância no tempo simplifica as coisas
permite que quase todo mundo diga o estado nazista cometeu
crimes terríveis
por exemplo
embora
numa sociedade mergulhada no regime nazista
na máquina de propaganda nazista
no projeto econômico nazista
em 1938
digamos
a frase o estado nazista comete crimes terríveis
provavelmente fosse amplamente contestada
a despeito das evidências
*
é claro que os nazistas foram derrotados
o que simplifica as coisas
o estado brasileiro cometeu crimes terríveis durante a guerra
do paraguai
digamos
mas não há muito por que repetir por aí essa frase
a despeito das evidências
foi uma guerra menor
somos um povo pacífico
quem perdeu foi o paraguai
*
não é preciso pensar muito sobre o nazi-fascismo

para dizer o estado nazista cometeu crimes terríveis
o que simplifica as coisas
podemos reproduzir práticas do estado nazista
digamos
e
a despeito das evidências
seguir repetindo essa frase
sem constrangimento
*
a ditadura militar brasileira cometeu crimes terríveis
isso podemos repetir sem tanta contestação
digamos
mas seria melhor não falar muito mais do que isso
a distância no tempo não é tão grande assim
não é preciso esmiuçar esses crimes
ou que ideias os alimentavam
ou o que disso permanece
- a despeito das evidências
apenas essa frase já é plenamente satisfatória
o que simplifica as coisas
*
não nos apressemos
somos um povo pacífico
talvez em alguns anos se possa repetir
houve um golpe parlamentar-jurídico-midiático no brasil em 2016
sem que a frase cause incômodo a ninguém

digamos
uma certa distância no tempo simplifica as coisas
vamos evitar os verbos conjugados no presente
a despeito das evidências

Caetano Gotardo

21 de agosto de 2017

inércias


o poeta recolhe os restos das inércias
exerce o peso dos esquecimentos
tropeça nas fadigas
escolhe as horas mortas entre os pontos esquecidos
marca as margens derradeiras
& não desiste dos fracassos

Salvador Passos

5 de junho de 2017

o vento das palavras (ou mito de sísifo)

recolho o vento nas palavras/amargo o tempo como quem arrasta sonhos/amarro os nomes com palavras/agarro as coisas com a boca/elas tem um gosto amargo/um gosto gasto pelo mesmo/e as coisas me escapam pelos dedos/entre os dentes/não separo o sal da pedra/não separo o céu do olho/talho coisas/frases soltas/sopros/prantos/vagas vozes/sopros postos/encontro atalhos/como quem posta um ponto nas reticências do infinito/poema é só um ponto solto entre os três já postos pontos/entreposto/o silêncio das palavras é como outra manhã qualquer/não resta o que fazer/estou fadado à escrever palavra após palavra/esticar a corda sobre o abismo/andar/atravessar/encaro o branco que se posta à proa/no começo de cada dia/acordo/como/tomo um café atrás do outro/escrevo uma linha após a outra em desalinho/muitas morrem levando um pouco de mim mesmo/ao perder o que não tenho eu me encontro/salgo os dias com o sopro do cotidiano/conto os lapsos/as horas/perco os passos/e no passo a passo do poema/ensaio/mas fico de onde já não saio/solto as sílabas no silêncio em branco/o papel acolhe o nada/recolho espantos

Salvador Passos

2 de junho de 2017

BILHETE PARA BIVAR

hoje é o dia que os
          anjos descem nas
          catacumbas de cimento
sem o aviso das
          máquinas de empacotar
sem saltar sobre
          caramanchões de poluição
disseminando comportamento
           de Lacaio
é o momento do
           último homem
o que dura mais
           tempo
é o tempo do crime
           & sua prova
a caveira que ri
           na noite vermelha
a explosão demográfica
& a fome a galope
é o Sol mudo a
Lua paralítica
Drácula janta na
            Esquina
E para que ser poeta
             em tempos de penúria? Exclama
             Hölderlin adoidado
assassinos travestidos em folhagens
hordas de psicopatas
              atirados nas praças
enquanto os últimos
              poetas
perambulam na noite
              acolchoada

Roberto Piva

Amor América

A maior cena de amor Americana não é nenhum beijo de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Não tem Deborah Kerr nem Gregory Peck, não é aquele beijo do soldado na enfermeira no final da Segunda Guerra Mundial. A maior cena de amor Americana é Jacqueline Kennedy Onassis subindo em desespero a capota daquele Ford modelo Lincoln para catar os pedaços explodidos da cabeça de John Fitzgerald Kennedy. São algumas dezenas de fotogramas da primeira dama em transe, ensangüentando as mãos nos miolos daquele 22 de novembro de 1963. Lee Harvey Oswald matou Kennedy. Dois tiros cirúrgicos, um no pescoço e outro fatal na cabeça. Foi você mesmo Oswald?! Não! Oswald o teria devorado! Lee Harvey ex-marine. Até tu Brutus?! É presidente, quem deu o tiro foi um dos teus... Naquele dia D of the Big D, Dallas city. Don´t you mess with Texas, Mr. President. Sempre que vejo um beijo em preto e branco ou escuto ao longe o Sam tocando de novo em Casa Blanca, lembro de Dona Jacqueline ajoelhada no carro, já funerário, atrás do cérebro espatifado do marido. Amar é ter nas mãos essa massa cinzenta que pensava a América! Cinzenta como a Lua que ele queria conquistar. Flicts. É presidente, naquele 20 de julho de 1969 lembrei de suas palavras. Um homem na lua. E você, o que teria pensado Kennedy ao ver na distância aquele foguete Saturno V cortando os céus como a bala que cortou o ar até a sua cabeça?! A small trigger for a man’s finger but a giant blow for a human head! Dona Jacqueline catando miolos para alimentar mortos vivos! Miolos! Miolos! Nada é por acaso nessa vida. Lincoln morreu na sala Ford do teatro Kennedy. Kennedy morreu num Ford modelo Lincoln. É, nada é por acaso nessa vida. Sempre que penso no amor na América penso em Dona Jacqueline ajoelhada, apavorada, apaixonada, com as mãos empapadas de sangue, catando a cabeça explodida do marido.

E Pelé disse: Love, Love and Love!
 

Nefelibata ou aguas de março reloaded

“- Trate de tomar sua sopa, seu maluco, mercador de nuvens.”
 Charles Baudelaire


chove há tanto tempo
chove há tantos dias
chove há tantas eras
que parece que o certo
é mesmo o mundo assim
chovendo
mesmo que chovendo no molhado

olhando as nuvens
na contraluz elétrica da cidade
vai dando um medo
medo de que o mundo esteja mesmo é nas nuvens
que os prédios se condensem
e que caiam gotas de apartamentos
para o céu


Domingos Guimaraens

29 de maio de 2017

daltônicos vendem balas nos sinais de trânsito

vejo os aquários de concreto
alçar seu voo sólido sobre o imaginário das cidades
entre janelas e vértebras oxidadas
vejo arenques
que escondem suas escamas espelhadas
sob ternos burocráticos
ao melhor estilo armani
um prometeu acorrentado
com tendências pirofóbicas
condenado a atar e desatar gravatas
usando apenas anacrônicas barbatanas

agitam involuntariamente suas mandíbulas
tentando desatar o nó da forca 

qual escorregadia colonização os leva
a adotar distantes vestimentas

desesperados gestos
de ânsias
e espasmos

brânquias claustrofóbicas
numa espécie de contorcionismo afásico
buscando o oxigênio esquecido das palavras em preto e branco

trechos de uma comédia do cinema mudo
replicando algum tipo de gagueira automática

habitantes de janelas cegas
hipnotizados pela estática das TVs abandonadas
arma de distração em massa

dois aquários mudos sobrepostos:
janelas e TVs abandonadas
multiplicando um diálogo impossível de ser datilografado a distancia

nas ruas enxames de daltônicos vendem balas nos sinais de trânsito
mariposas fotofóbicas não querem mais ornamentar poemas líricos

estamos presos no engarrafamento da autopista Sur
e confundimos utopias com a meteorologia

Salvador Passos

23 de maio de 2017

transe das cidades

afundam as cidades em algum transe tectônico
as horas são marcadas pelas turbulências
vejo um relógio imóvel preso no horizonte
aviões indiferentes passam sobre nossas vidas
estragam o silêncio das manhãs à toa
espiões distantes
expoentes de um progresso sem silêncios
árvores cortadas bem na tarde de domingo
sangra o silêncio entre os prédios 
muitos gritam
mas não adianta
o progresso é uma máquina automática de amordaçar delírios
o incêndio das palavras arde nas esquinas
são poucos os que percebem o naufrágio nas vitrines
existem fósseis dentro das calçadas
nomes esquecidos nas planícies

ainda habito a precária arquitetura do silêncio
& corro pelas ruas sem palavras

o poema é um incêndio infinito

Salvador Passos

18 de maio de 2017

novo mantra

fundar-se com a essência
e dela tirar um sentido
- ainda que insuficiente-
de alguma insurreição.

não se tornar
o que se estava pronto
para se tornar.

essas coisas não são
verdadeiras e podem
nos fazer bem felizes.

olhar para as plantas
do caminho sem pés.
não decorar nomes,
olhar as plantas
na escuridão.

não se especializar.
abraçar ingenuamente
a impossibilidade
e o terrível sofrimento
de ser um pouco de tudo
ou quase nada.

observar as pombas
sobre as poças
da última inundação.

como são sujas e alegres.

ser sujo e alegre
após a inundação.

Leonardo Marona

27 de abril de 2017

a cidade tatuada nos olhos 2

há um resíduo de futuro
na avenida

entre carros e caminhões
banhados pela tarde
acena a carne

o corpo atrasa engrenagens
forja com sua frágil arquitetura
precárias barricadas

o aço corta o nó das horas
arrasta os ossos 
demanda esforços

o asfalto apenas multiplica esquinas
atropela ausências

sangram as sagradas chagas da palavra
soletrando a sombra de um sol insone

o sangue espesso nas escadas
corpos e facadas

na manhã
o beijo se transforma
camelôs e guardas se encontram ao redor da morte

agora
resta a navalha sob a sombra de um beijo proibido
vergonha e ódio incontido

- a epiderme se desloca
a cidade cresce
desenha e apaga
a superfície negra que não dorme

- no alto do edifício
um relógio marca horas repetidas

aço de janelas cegas
frágeis pálpebras devassadas
vértebra indefinida
osso do poema
argamassa bruta
dobradiças da cortina
cercas fronteiriças
vertigem inviolável
sol que solda horas mortas

o segredo da palavra nas entranhas da cidade
mar que arma as ondas do naufrágio
ar que arfa o arranjo do incontido

arde a tarde entre os carros
arde a vida nas entranhas das palavras

partem todos sem destino
perdidos neste rio sem gramática
partem sem um nome que defina
o incêndio embaçado desta luz cortante

há janelas que acenam com imagens cruas
vértebras oxidadas
tvs abandonadas
vozes mudas
movendo suas bocas
num imenso corpo de concreto

reverbera
a cidade
(que se perde aos poucos)
um navio que aderna no horizonte
a memória que escorre nas palavras

entre as letras
desaba o silêncio no intervalo da cidade
- o mar de nomes,
ossos escavados na areia
nas calçadas

nas paredes da cidade sonolenta
o eterno espanto das palavras

no rumor da noite
na arquitetura da carne
nos espasmos da palavra
escuto a aproximação dos Coiotes

Salvador Passos