A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

23 de setembro de 2010

Metalinguagem

A palavra verdade é mentira
Não há verdade sozinha
Em cada esquina da trilha
Alguma verdade caminha
As letras dos ditos declaram
Palavra sozinha
não cabe na frase
Só cabe na margem
Sozinha de frase
Sozinha de nome
Solitária de sentido
Sozinha de som
Quase a palavra silêncio
Mas a palavra silêncio não cala
Se diz

Palvra sozinha é palavra
Pois toda palavra é tudo
Somente a palavra palavra
é tão somente palavra

Toda palavra sozinha se diz
Toda palavra palavra se lê
Até a palavra silêncio se fala
Até a palavra deserta tem sede
Mesmo a palavra sozinha fala com a palavra ao seu lado
Puxando logo um assunto
Então a frase não para
só na palavra sozinha

A palavra sozinha não sabe ser solitária
Mata logo o silêncio

Neste poema sincero
Faço a palavra sozinha
Tornar-se palavra assassina
Não a palavra que mata
Mas àquela que ressucita
Ela sozinha não fica
Logo logo se excita
A frase lhe nega sentido
De que adianta o sentido
Se sentir não se sente
Não vale a língua dizer
Se ela não fala a verdade
Poema é tudo mentira
Palavra é tudo sincera
Não sabe mentir caladinha
Não sabe ferir o leitor
Já conta logo historinha
Para não deixar o poema
Ficar tristonho assustado
Em estado de puro absurdo
A língua não mente sozinha
Quem arquiteta é o poeta
Palavra poeta não rima
Palavra poeta não poeta
Fica sozinha, calada
Mas palavra silêncio não cala

A palavra rebelde poema a vida inteira
Servindo à todos a mentira sincera de tudo
Se fosse tudo palavra sincera
Nada seria inteiro
A palavra é meta...
...................de
...................fora
...................linguagem

Salvador Passos

Verdadeira Mente

A verdade plena
Tão absoluta
Não subjetiva
Nunca foi inteira

A verdade é luta
Como uma disputa
Coração e Mente

Mente inteiramente
Na metade inteira
Da verdade plena

Não é verdadeira
A verdade inteira
A palavra mente
Mente plenamente
Na conquista bruta
Destas tolas mentes
Verdadeiramente
a palavra mente

Verdadeira Mente


xxxxxxxxxxxxxxxxxx
A verdade nua
Só será verdade
Se for sempre a tua
A verdade crua
xxxxxxxxxxxxxxxxxx


Salvador Passos

22 de setembro de 2010

O ano da morte de Ricardo Reis

Vai Ricardo Reis a descer a Rua dos Sapateiros quando vê Fernando Pessoa. Está parado à esquina da Rua Santa Justa, a olhá-lo como quem espera, mas não impaciente.Traz o mesmo fato preto, tem a cabeça descoberta, e, pormenor em que Ricardo Reis não tinha reparado da primeira vez, não usa óculos, julga compreender porquê, seria absurdo e de mau gosto sepultar alguém tendo postos os óculos que usou em vida, mas a razão é outra, é que não chegaram a dar-lhos quando no momento de morrer os pediu, Dá-me os óculos, disse e ficou sem ver, nem sempre vamos a tempo de satisfazer últimas vontades. Fernando Pessoa sorri e dá as boas-tardes, respondeu Ricardo Reis da mesma maneira, e ambos seguem na direção do Terreiro do Paço, um pouco adiante começa a chover, o guarda-chuva cobre os dois, embora a Fernando Pessoa o não possa molhar esta água, foi o movimento de alguém que ainda não se esqueceu por completo da vida, ou teria sido apenas o apelo reconfortador de um mesmo próximo tecto, Chegue-se para cá que cabemos os dois, a isto não se vai responder, Não precisa, vou bem aqui. Ricardo Reis tem uma curiosidade para satisfazer, Quem estiver a olhar para nós, a quem é que vê, a si ou a mim, Vê-o a si, ou melhor, vê o vulto que não é você nem eu, Uma soma de nós ambos dividida por dois, Não, diria antes que o produto da multiplicação de um pelo outro, Existe essa aritimética, Dois, sejam eles quem forem, não se somam, multiplicam-se, Crescei e multiplicai-vos, diz o preceito, Não é nesse sentido curto, biológico, aliás com muitas excepções, de mim, por exemplo, não ficaram filhos, De mim também não vai ficar, creio, E no entanto somos múltiplos, Tenho uma ode em que digo que vivem em nós inúmeros, Que me lembre, essa não é do nosso tempo, Escrevi-a vai para dois meses, Como vê, cada um de nós, por seu lado, vai dizendo o mesmo, Então não valeu a pena estarmos multiplicados, Doutra maneira não teríamos sido capazes de o dizer. Preciosa conversação esta, paúlica, interseccionista, pela Rua dos Sapateiros abaixo até à da Conceição, daí virando à esquerda para a Augusta, outra vez em frente, disse Ricardo Reis parando, Entramos no Martinho, e Fernando Pessoa, com um gesto sacudido, Seria imprudente, as paredes têm olhos e boa memória, outro dia podemos lá ir sem que haja perigo de me reconhecerem, é uma questão de tempo. Pararam ali, debaixo da arcada, Ricardo Reis fechou o guarda-chuva, e disse, não a propósito, Estou a pensar em instalar-me, em abrir um consultório, Então já não regressa ao Brasil, porquê, É difícil responder, não sei mesmo se saberia encontrar resposta, digamos que estou como o insone que achou o lugar certo da almofada e vai poder, enfim adormecer, Se veio para dormir, a terra é boa para isso, Entenda a comparação ao contrário, ou então, que se aceito o sono é para poder sonhar, Sonhar é ausência, é estar do lado de lá, Mas a vida tem dois lados, Pessoa, pelo menos dois, ao outro só pelo sonho conseguimos chegar, Dizer isso a um morto, que lhe pode responder, com o saber feito da experiência, que do outro lado da vida é só a morte, Não sei o que é a morte, mas não creio que seja esse outro lado da vida de que se fala, a morte, penso eu, limita-se a ser, a morte é, não existe, é, Ser e existir, então não são idênticos, Não meu caro Reis, ser e existir só não são idênticos porque temos as duas palavras ao nosso dispor, pelo contrário, é porque não são idênticos que temos as duas palavras e as usamos. Ali debaixo daquela arcada, disputando, enquanto a chuva criava minúsculos lagos no terreiro, depois reunia-os em lagos maiores que eram poças, charcos, ainda não seria desta vez que Ricardo Reis iria até ao cais ver baterem as ondas, começava a dizer isto mesmo, a lembrar que aqui estivera, e ao olhar para o lado viu que Fernando Pessoa se afastava, só agora notava que as calças lhe estavam curtas, parecia que de deslocava em andas, enfim ouviu-lhe a voz próxima, embora estivesse ali adiante, Continuaremos esta conversa noutra altura, agora tenho de ir, lá longe, já debaixo da chuva, acenou com a mão, mas não se despedia, eu volto.

José Saramgo

Horizonte

Só havia eu em nada feito
De(s)feito de nascença
Esse não ser exato que me faz ser assim não sendo sempre
Não sou mais
Não sou menos
Só esse arrastado estar em algum outro lugar

Raimundo Beato

16 de setembro de 2010

Descartes?

Tejo



Sou,
sem ter sido
Estou,
sem ter ficado
Voltei,
sem ter chegado

Nestas idas sem voltas
Reviravoltas das palavras
Que dizem o que não foi
Mas que mesmo não sendo,
foram acontecendo

Um Tejo
Que apesar de rio
é mar
E mesmo sendo
Não é

Não é Tejo na aldeia em que nasceu
Chega sem ter partido
Pois outro nome o leva onde chega

É o Tejo o meu rio pois não é
Tão somente é lembrança
Como a língua (das palavras que não falo)
Não é minha
Este rio também não

É herança que não chega
Sempre falta
Não me basta
Esta língua
Das palavras que não calam
Só carrega mais lembrança
Da saudade que só há
Nesta fala lusitana
Que de lusa não se dá

Na herança que não tenho
É meu rio este Tejo?
Sou eu este que invejo
Esta gente d`além mar?

Vem de longe
Desde antes
Tão mais antes
Que nem sei
Se desde sempre
Ou quem sabe
Desde nunca
Vem de terra
Vem de vela
Atravessa denso mar

Mas não chega

Esta gente
Esta fala
Este rio (que não é)
É linguagem
Nada é tudo
Tudo passa
Tudo é nada

Ele passa
Mas não chega
Não me canso de lembrar
Ele passa
Tudo passa
Mas não cansa
Não se cansa de passar
Ele passa
Ele passa
Outro rio

Eu não passo
Não me canso de pensar

Ele passa
Outro rio
Não meu Rio
Como a língua
Mais lembrança
Que verdade
Mais herança
Que palavra
Não alcança
Sempre falta

Nunca chega este rio
Da palavra que não há

Outro rio d´outro povo
Ele passa mas não passa
É distância

Neste rio que me leva
Outro nome me carrega
Ao rio que não sou

Raimundo Beato

13 de setembro de 2010

Sobre as pesquisas científicas

Sobre as pesquisas científicas, ratos brancos murmuram nos laboratórios: "Eles não se atreveriam a fazer isso com os ursos polares."

Ramón Gómez de la Serna

Grande Sertão

Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.

O diabo é às brutas; mas Deus é traiçoeiro!

A colheita é comum, mas o capinar é sozinho.

O que lembro, tenho.

Quem muito se evita, se convive.

Julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado.

Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.

Toda saudade é uma espécie de velhice.

Mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir.

Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!

O sertão é do tamanho do mundo.

Sertão é dentro da gente.

O sertão é sem lugar.

O sertão não tem janelas, nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa.

O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena.

O sertão é uma espera enorme

Viver - não é? - é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver mesmo.

Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...

Um sentir é do sentente, mas outro é do sentidor.

Tudo é e não é.


João Guimarães Rosa

1 de setembro de 2010

Saia de mim

Saia de mim como suor
Tudo que eu sei de cor
Saia de mim como excreto
Tudo que está correto
Saia de mim
Saia de mim
Saia de mim como um peido
Tudo que for perfeito
Saia de mim como um grito
Tudo que eu acredito
Tudo que eu não esqueça
Tudo que for certeza
Saia de mim vomitado
Expelido, exorcizado
Tudo que está estagnado
Saia de mim como escarro
Espirro, pus, porra, sarro
Sangue, lágrima, catarro
Saia de mim a verdade
Saia de mim a verdade
Saia de mim a verdade

Arnaldo Antunes