A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

30 de dezembro de 2013

Nei Lisboa - Produção Urgente



“O mundo é dos vivos/ O mundo é dos bancos/ E os bancos, dos mendigos/ O mundo é de loucos/ Que mundos não tem dono/ E só somos vencidos pelo sono/ O mundo é do novo/ E o novo, dos antigos/ O mundo é quem sobrar/ No fim da noite dos amigos”

epifania etílica no mictório (ou infância)

uma vez passei anos sem falar com um amigo
e um dia dividimos uma cerva

pronto
foi a noite toda
uma cerva após a outra
até que em algum momento voltamos a nossa infância
quando não sabíamos nada
este não saber nada confere a cada coisa
mesmo a mais mundana
um espanto infinito em cada grama

em cada esquina
um gibi
um filme
uma porta mágica
o mundo todo é novo
a tal ponto
que nos atravessa a vida toda

a única coisa boa de ficar mais velho é perceber
que quando éramos criança já sabíamos de tudo

Salvador Passos

What have I learned (O que aprendi)


What have I learned but
the proper use for several tools?

The moments
between hard pleasant tasks

To sit silent, drink wine,
and think my own kind
of dry crusty thoughts.

—the first Calochortus flowers
and in all the land,
it's spring.
I point them out:
the yellow petals, the golden hairs,
to Gen.

Seeing in silence:
never the same twice,
but when you get it right,

you pass it on.

Gary Snyder


O que aprendi a não ser
o uso correto de certas ferramentas?

Os momentos
entre gratificantes tarefas árduas

Sentar calado, beber vinho,
e pensar meu próprio tipo
de pensamentos simples e encrostados.

-- as primeiras flores do calocorto
e em toda a terra,
é primavera.
Eu as mostro:
as pétalas amarelas, os filamentos dourados,
pro Gen.

Contemplando em silêncio:
nunca o mesmo duas vezes,
mas quando você capta isto completamente,

você transmite.

Gary Snyder

Mensagem de Natal de Edward Snowden



Na noite de Natal, logo após a mensagem da Rainha da Inglaterra à nação, o Channel 4 exibiu uma mensagem alternativa gravada por Edward Snowden. Esta é a tradução da mensagem dele.

Occupy Mordor


27 de dezembro de 2013

decálogo de um escritor


um. pode-se escrever o que quiser, na ordem e do modo que quiser
dois. querer não basta, é preciso transformar o querer em texto
três. o sentido é o acúmulo, não a história
quatro. texto de história é mau texto
cinco. o texto deve atingir os sentidos, não a cabeça
seis. o fracasso ocorre todo dia, algum dia a mão é feliz
sete. apenas alguns são autores – a maioria morre ou desiste
oito. escrever é ir ao outro
nove. a palavra impressa é o som que deve atrair o silêncio
dez. não é preciso regra, escrever apenas porque é necessário

andré fernandes
extraído do livro Habitar (São Paulo: Hedra, 2010)

Tudo é narrativa


Posted on February 7, 2013 by Odyr



Esse não é o primeiro nem segundo artigo que vejo dizendo isso – a ciência comprova o que os grandes narradores (da política, da literatura, da música popular…) sempre souberam – contar uma história é a forma mais efetiva de transmitir uma idéia, fazer uma conexão, transformar as pessoas. A narrativa é mais forte que os fatos. Porque a narrativa é como entendemos o mundo.

Às vezes me impressiona o número de narrativas que conseguimos manter em paralelo. Nossa capacidade de acompanhar meia dúzia de seriados, enquanto lendo dois ou três livros, se mantendo a par do que acontece no escândalo da política dessa semana e na vida dos seus amigos. Tudo é história (queria poder usar estória aqui, maldita mudança essa que fizeram) tudo é narrativa. Mesmo o Eu, é uma construção narrativa. Ninguém se vê como um acúmulo de fatos (75% de água, 20% de gordura, classe social, raça, genética, etc), mas como uma história em andamento – eu era assim, aí aconteceu isso, e depois aquilo e agora estou aqui, agora sou assim.

Os exemplos que vêm da pesquisa científica são incríveis – leituras cerebrais demonstram que quando alguém ouve uma história, seu cérebro se alinha com o narrador. As mesmas áreas se acendem nos dois. O cérebro faz pouca separação entre ler sobre uma experiência e viver uma experiência. Uma outra pesquisa que vi há um tempo atrás dizia que ver filmes de ação faz perder peso. Você gasta calorias, porque seu cérebro entende que você está vivendo de fato aquelas aventuras.



(E, essa parte achei linda, a ciência defendendo a imaginação e a criatividade – os clichês da língua, as formas usadas até quase perder todo o significado, são percebidas como palavras simplesmente. Não causam sensações reais no leitor. Você escreve que sujeito “lutou com unhas e dentes” para se salvar e o leitor não vê unha, não vê dente, não acredita na luta. O mesmo com imagens, suponho. Para você acreditar, há que haver uma verdade ali e a verdade é específica, não é genérica.)

As mudanças no mundo são antecipadas e acompanhadas por mudanças nas histórias. Milan Kundera dizia que o romance antecipou a psicanálise, o Marxismo, o feminismo. O corpo de narrativas da humanidade é flexível, muda com o tempo, com a necessidade de novas histórias.

Tudo me faz pensar sobre a tremenda responsabilidade de quem conta histórias. Mas também aumenta meu desejo de contar histórias. Porque tem uma parte que esses estudos não cobrem e não poderiam cobrir, que é o papel transformador da história em quem a conta. Os motivos que nos fazem querer contar certas histórias.

O outro dia atormentei longamente a querida Angélica Freitas (como às vezes atormento vocês), com dúvidas que me atormentam sobre meu trabalho e por momentos eu conseguia me ver de fora – que fútil, que desimportante essa conversa poderia parecer. Como explicar a obsessão dos artistas com o seu trabalho?

Pra mim, a resposta está na minha crença de que a arte transforma não só o público como o artista, que no processo de contar essa história resolve coisas íntimas, pessoais, complicadas. São as histórias que ele precisa contar. Mesmo que não saiba. São porque você escolhe contar aquelas histórias, da forma que conta. E, com sorte, aquela história vai fazer o mesmo por alguém. Como dizia a de Beauvoir, uma das funções da literatura é mostrar que não estamos sozinhos.

Odyr Bernardi

As Barbas de Tirana




"Através dos murais, os albaneses também fazem pressão pública sobre pessoas de cujo comportamento se discorda. Perguntei a um grupo de estudantes da Universidade de Tirana o que ocorreria se um deles aparecesse na escola com cabelos longos e barba. A princípio, eles ficaram muito constrangidos em responder, pelo fato de eu próprio estar de bigode, cavanhaque e cabelos um tanto longos para o padrão albanês. Depois, uma estudante soltou-se:

- Bom, primeiro a gente conversa com ele na sala de aula e diz que essa atitude não condiz com a nossa moral comunista. Se não adiantar, leva-se o caso à União da Juventude, que também vai discutir com ele. Caso também não adiante, a gente parte para as ruas, fazendo charges ou textos até mesmo ridicularizando sua atitude.

O barbudo terá direito a defender-se, mas o mais certo é que abandonará sua 'tentativa de ocidentalização'. Barba e cabelos longos na Albania, são considerados fatores de influencia externa e, portanto, condenados pela sua moral. Não faz muitos anos, no tempo dos hippies, a moda dos cabelos longos chegou à Albania, principalmente por meio da televisão dos países vizinhos, cujos sinais são facilmente captáveis. Mais foi fortemente combatida pelo partido e pelo governo. Naquele período, quem chegasse ao país com barba e cabelos longos podia entrar, desde que aceitasse o convite de passar pela barbearia que funcionava no aeroporto".

Neil Young "Comes A Time" [Live at the Cow Palace, 1978]






Comes a time when you're drifting
Comes a time when you settle down
Comes a light, feeling's lifting
Lift that baby right up off the ground

Oh, this old world keeps spinning round
It's a wonder tall trees ain't laying down
There comes a time

You and I we were captured
We took our souls and we flew away
We were right, we were giving
That's how we kept what we gave away.

Oh, this old world keeps spinning round
It's a wonder tall trees ain't laying down
There comes a time

O preço da "liberdade" na internet?


https://lavabit.com/

Lavabit is an encrypted email service, founded in 2004, that suspended operations on August 8, 2013 after it was ordered to turn over its Secure Sockets Layer (SSL) private key to the US government. Lavabit is owned and operated by Ladar Levison.[1][3][4]

Lavabit received media attention in July 2013 when it was revealed that Edward Snowden was using the Lavabit email address edsnowden@lavabit.com to invite human rights lawyers and activists to a press conference during his confinement at Sheremetyevo International Airport in Moscow.[11] The day after Snowden revealed his identity, the federal government served a court order, dated June 10, 2013 and issued under 18 USC 2703(d), a 1994 amendment of the Stored Communications Act, asking for metadata on a customer that was unnamed. Kevin Poulsen of Wired wrote that "that the timing and circumstances suggest" that Snowden was this customer.[12] In July 2013 the federal government obtained a search warrant demanding that Lavabit give away the private SSL keys to its service affecting all Lavabit users.

On August 8, 2013, Lavabit suspended its operations, and the email service log-in page was replaced by a message from the owner and operator Ladar Levison.[1] The New Yorker suggested that the suspension might be related to the National Security Agency’s "domestic-surveillance practices".[14]Wired speculated that Levison was fighting a warrant or national security letter seeking customer information under extraordinary circumstances, as Lavabit had complied with at least one routine search warrant in the past.[11][15] Levison stated in an interview that he has responded to "at least two dozen subpoenas" over the lifetime of the service.[16] He hinted that the objectionable request was for "information about all the users" of Lavabit.[17]

Levison explained he was under gag order and that he was legally unable to explain to the public why he ended the service.[16] Instead, he asked for donations to "fight for the Constitution" in the United States Court of Appeals for the Fourth Circuit. Levison also stated he has even been banned from sharing some information with his lawyer.[16] Meanwhile, the Electronic Frontier Foundation called on the FBI to provide greater transparency to the public, in part to help observers "understand what led to a ten-year-old business closing its doors and a new start-up abandoning a business opportunity".[18]

Levison said that he could be arrested for closing the site instead of releasing the information, and it was reported that the federal prosecutor's office had sent Levison's lawyer an e-mail to that effect.[17] [19]

Lavabit is believed to be the first technology firm that has chosen to suspend/shut down its operation rather than comply with an order from the United States government to reveal information or grant access to information.[3] Silent Circle, an encrypted email, mobile video and voice service provider, followed the example of Lavabit by discontinuing its encrypted email services.[20] Citing the impossibility of being able to maintain the confidentiality of its customers' emails should it be served with government orders, Silent Circle permanently erased the encryption keys that allowed access to emails stored or transmitted by its service.[21]

In September 2013 Levison appealed the order that resulted in the closing of his website.[22]

Levison and his lawyer made two requests to Judge Claude M. Hilton to unseal the records which were denied. They also launched an appeals case regarding legality of the original warrant. The appeals court then requested the records to be unsealed. Judge Claude M. Hilton then granted the request to unseal the records, despite his refusal the previous two times. On October 2, 2013, the Federal District Court in Alexandria, Virginia unsealed records in this case, with only the name and detail of the target of the search order censored. Wired suggested the target was likely Snowden.[4] The court records show that the FBI sought Lavabit's SSL private key. Levison objected saying that the key would allow the government to access communications by all 400,000 customers of Lavabit. He also offered to add code to his servers that would provide the information required just for the target of the order. The court rejected this offer since it would require the government to trust Mr. Levison and stated that just because the government could access all customers' communication did not mean they would be legally permitted to do so. Lavabit was ordered to provide the SSL key in machine readable format by noon, August 5 or face a fine of $5000 per day.[23] Levison closed down Lavabit 3 days later.

On October 14, 2013, Levison announced he would allow Lavabit users to change their passwords until October 18, 2013, after which they could download an archive of their emails and personal data.

Mammals and Monogamy


http://www.nature.com/nature/journal/v500/n7461/full/500125b.html?WT.ec_id=NATURE-20130808

"Using an evolutionary tree of 230 primates as a framework, Christopher Opie of University College London and his colleagues ran simulations of evolutionary history to investigate what conditions might produce the behaviours of modern primates. They conclude that monogamy arose after males began guarding females to stop rivals from killing their offspring.

Tim Clutton-Brock and Dieter Lukas at the University of Cambridge, UK, used a similar method to study how monogamy came about in mammals generally. Using an evolutionary tree of more than 2,000 species, they found that monogamy tended to arise when females lived alone and were widely dispersed. Pair-living probably arose because males could not cover a large enough area to monopolize more than one female."

AGORA COM ISSO DE INTERNET DÁ COBRIR UMA ÁREA MAIOR...

... AINDA QUE ESSA COSIA DE MONOPÓLIO ESTEJA EM BAIXA.



20 de dezembro de 2013

nem mesmo a morte nos cala

o nulo do mundo não cala
nem mesmo a morte nos cala
viramos lembranças distantes
e mesmo morrendo bem antes
ainda morremos de novo
um pouco na morte da gente
& de novo na morte dos outros

Raimundo Beato


Amigo Secreto na Casa Branca

Sou do contra





Sou do contra
Não acredito em verdades
Tampouco acredito em mentiras
Não tenho problemas com verdades e mentiras
Na realidade, só tenho problemas em acreditar

Em um mundo repleto de planos
que traçam paralelos que me excluem
não me resta opção:
eu os transverso.


Walace Cestari

18 de dezembro de 2013

Sangue Corsário




anjos descem das palmeiras
na rua São Luiz

era noite.

porque não bebemos
porque o amor não foi em nós
realizado
porque de gás flores colhemos
dos letreiros de néon
não nos escolheram

e é assim
agências de turismo
nuvens oferecem ao nosso alcance
águas termais
hotéis de espuma
fascínios orientais de almanaque
o Louvre
a Santa Sé
o Palácio da Rainha
mas estamos nus – cabelos em desalinho
viajar nos é proibido
nos transatlânticos de primeira

O fracasso socialista de Mandela



Nas últimas duas décadas da vida, Nelson Mandela foi festejado como modelo de como libertar um país do jugo colonial sem sucumbir à tentação do poder ditatorial e sem postura anticapitalista. Em resumo, Mandela não foi Robert Mugabe, e a África do Sul permaneceu democracia multipartidária com imprensa livre e vibrante economia bem integrada no mercado global e imune a horríveis experimentos socialistas. Agora, com a morte dele, sua estatura de sábio santificado parece confirmada para toda a eternidade: há filmes sobre ele (com Morgan Freeman no papel de Mandela; o mesmo Freeman, aliás, que, noutro filme, encarnou Deus em pessoa). Rock stars e líderes religiosos, esportistas e políticos, de Bill Clinton a Fidel Castro, todos dedicados a beatificar Mandela.

Mas será essa a história completa? Dois fatos são sistematicamente apagados nessa visão celebratória. Na África do Sul, a maioria pobre continua a viver praticamente como vivia nos tempos do apartheid, e a ‘conquista’ de direitos civis e políticos é contrabalançada por violência, insegurança e crime crescentes. A única mudança é que onde havia só a velha classe governante branca há agora também a nova elite negra. Em segundo lugar, as pessoas já quase nem lembram que o velho Congresso Nacional Africano não prometera só o fim do apartheid; também prometeu mais justiça social e, até, um tipo de socialismo. Esse CNA muito mais radical do passado está sendo gradualmente varrido da lembrança. Não surpreende que a fúria outra vez esteja crescendo entre os sul-africanos pretos e pobres
A África do Sul, quanto a isso, é só a mesma versão repetida da esquerda contemporânea. Um líder ou partido é eleito com entusiasmo universal prometendo “um novo mundo” – mas então, mais cedo ou mais tarde, tropeçam no dilema chave: quem se atreve a tocar nos mecanismos capitalistas? Ou prevalecerá a decisão de “jogar o jogo”? Se alguém perturba esse mecanismo, é rapidamente “punido” com perturbações de mercado, caos econômico e o resto todo. Por isso parece tão simples criticar Mandela por ter abandonado a perspectiva socialista depois do fim do apartheid. Mas ele chegou realmente a ter alguma escolha? Andar na direção do socialismo seria possibilidade real?

É fácil ridicularizar Ayn Rand, mas há um grão de verdade no famoso “hino ao dinheiro” do seu romance A revolta de Atlas: “Até que e a não ser que você descubra que o dinheiro é a raiz de todo bem, você pede por sua própria destruição. Quando o dinheiro deixa de ser o meio pelo qual os homens lidam uns com os outros, tornam-se os homens ferramentas de outros homens. Sangue, chicotes e armas de fogo ou dólares. Faça sua escolha – não há outra.” Não disse Marx algo semelhante em sua conhecida fórmula de como, no universo da mercadoria, “as relações entre pessoas assumem o disfarce de relações entre coisas”? (O capital, p.147)

Na economia de mercado, acontece de relações entre pessoas aparecerem sob disfarces que os dois lados reconhecem como liberdade e igualdade: a dominação já não é diretamente exercida e deixa de ser visível como tal. O que é problemático é a premissa subjacente de Rand: de que a única escolha é entre relações diretas ou indiretas de dominação e exploração, com qualquer outra alternativa dispensada como utópica. No entanto, deve-se ter em mente que o momento de verdade da (se não por isso, ridiculamente ideológica) alegação de Rand: a grande lição do socialismo de estado foi efetivamente a de que uma abolição direta da propriedade privada e da troca regulada pelo mercado carente de formas concretas de regulação social do processo de produção necessariamente ressuscita relações diretas de servidão e dominação. Se apenas extinguirmos o mercado (inclusive a exploração do mercado), sem substituí-lo por uma forma própria de organização comunista da produção e da troca, a dominação volta como uma vingança, e com a exploração direta pelo mercado.

A regra geral é que, quando começa uma revolta contra um regime opressor semidemocrático, como aconteceu no Oriente Médio em 2011, é fácil mobilizar grandes multidões com slogans que só se podem descrever como “formadores de massa”: pela democracia, contra a corrupção, por exemplo. Mas adiante gradualmente vamos nos deparando com escolhas mais difíceis: quando nossa revolta é bem sucedida no alcance de seu objetivo direto, passamos a nos dar conta de que o que realmente nos atormentava (a falta de liberdade pessoal, a humilhação, a corrupção das autoridades, a falta de perspectiva de, algum dia, chegar a ter uma vida decente) perdura sob nova roupagem. A ideologia dominante mobiliza aqui todo o seu arsenal para nos impedir de chegar a essa conclusão radical. Começam a nos dizer que a liberdade democrática implica responsabilidades; que a liberdade democrática tem seu preço; que ainda não estamos plenamente amadurecidos, se esperamos demais da democracia.

Num plano diretamente mais político, a política externa dos EUA elaborou detalhada estratégia para controle de danos: basta converter o levante popular em restrições capitalistas-parlamentares palatáveis. Isso, precisamente, foi feito com sucesso na África do Sul, depois do fim do regime de apartheid; foi feito nas Filipinas depois da queda de Marcos; foi feito na Indonésia depois da queda de Suharto e foi feito também em outros lugares. Nessa precisa conjuntura, as políticas radicais de emancipação enfrentam o seu maior desafio: como fazer avançar as coisas depois de acabado o primeiro estágio de entusiasmo, como dar o passo seguinte sem sucumbir à catástrofe da tentação “totalitária”, em resumo: como avançar além de Mandela, sem se converter num Mugabe.

Se quisermos permanecer fiéis ao legado de Mandela, temos de deixar de lado as lágrimas de crocodilo das celebrações e nos focar em todas as promessas não cumpridas infladas sob sua liderança e por causa dela. Assim se verá facilmente que, apesar de sua indiscutível grandeza política e moral, Mandela, no fim da vida, era também um velho triste, bem consciente de que seu triunfo político e sua consagração como herói universal não passavam de máscara para esconder uma derrota muito amarga. A glória universal de Mandela é também prova de que ele não perturbou a ordem global do poder.

Slavoj Zizek
*Publicado originalmente no New York Times, em 9/11/2013. Esta é uma tradução ampliada e cotejada daquela feita por Vila Vudu, no redecastorphoto.

16 de dezembro de 2013

Mc Greve


Funcionários de redes fast-food promovem "McGreve"

Milhares de empregados vão às ruas dos EUA para denunciar trabalho degradante e exigir aumento do salário mínimo
por Eduardo Graça publicado 07/12/2013


McGreve
"Covers" de Ronald McDonald engrossam os protestos por melhores salários nas redes de fast-food
De Nova York

Sem uniformes, apoiados por uma legião de professores, estudantes universitários, manifestantes herdeiros do Ocupem Wall Street, grupos de defesa de imigrantes não-documentados, lideranças sindicais e um massa de trabalhadores “low-budget”, que recebem, dependendo do estado, entre 7 e 8 dólares por hora de trabalho, milhares de funcionários de empresas conhecidas dos brasileiros, como McDonald’s, Burger King, Wendy’s, Walgreens, Macy’s e Sears, tomaram as ruas de uma centena de cidades americanas na quinta-feira 5 exigindo o aumento do salário mínimo para 15 dólares por hora.
Era uma denúncia direta tanto do aumento da desigualdade social na maior economia do planeta quanto da resistência dos republicanos, maioria na Casa dos Representantes, equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil, de sequer iniciar discussão sobre o tema, alarmados com a possibilidade da diminuição do ritmo da recuperação econômica do país.

Nas manifestações de peso em cidades tão diversas como Nova York, Chicago, Los Angeles, Boston, Detroit, Oakland, Charleston, Providence, Pittsburgh e Saint Louis, celebrou-se o discurso do presidente Barack Obama no dia anterior, em Washington, de defesa de um aumento imediato no salário-base federal de 1.250 dólares ao mês, mas pediu-se bem mais.

Na Praça Foley, no Centro Cívico de Manhattan, depois de sucessivos piquetes em frente aos restaurantes de fast-food localizados na vizinha Broadway, centenas de manifestantes enfrentaram o frio do outono nova-yorkino, animados por uma banda de rhythm & blues. O escritor e comediante de stand-up Ted Alexandro, de 44 anos, conhecido na cidade por conta de seus programas no canal de tevê Comedy Center, carregava um cartaz de protesto em que todos os Ms aparecem desenhados como se fossem o símbolo do Mc Donald’s.

“Para ajudar a pagar minha universidade, trabalhei em uma franquia do Burger King. Mas, com o aumento da desigualdade social nos EUA, a média de idade do trabalhador de lanchonetes nos EUA, hoje, é de 29 anos, bem menos jovens do que na minha época. Como é que uma pessoa vai sustentar sua família ganhando pouco mais de 1.000 dólares por mês? É impossível. A luta aqui, hoje, é, sim, dos funcionários de fast-food, mas você também vê esta gama de organizações na praça por conta da necessidade de se negociar logo um aumento do salário mínimo. Nós estamos conscientemente saindo às ruas, um dia depois do discurso do presidente Obama, para pressionar Washington”, disse, em meio a gritos de ordem que resumiam o pensamento do fim de tarde: “Os bancos foram resgatados, mas nós é que pagamos a conta”.

Além do minuto de silêncio por conta da morte do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela, o outro instante em que os discursos na Foley se diversificaram em relação à primeira, e surpreendente, paralisação dos “assalariados por baixo” nova-yorkinos, em agosto, se deu com a celebração de apoio ao evento político de quarta-feira organizado pelo governo federal em Anacostia, um dos bairros mais pobres da periferia da capital americana. Na ocasião, em um discurso inflamado, Barack Obama afirmou que combater a desigualdade social é o “desafio que definirá nossa era” e que uma década de aumento com velocidade jamais vista na maior economia do planeta da disparidade entre ricos e pobres, “é uma ameaça real ao sonho americano”.

As agendas da Casa Branca e do movimento de trabalhadores não-sindicalizados se coincidiram por conta da necessidade de o governo recuperar o momento político depois de quase dois meses enredado no fiasco do lançamento do Obamacare, o projeto de reforma do combalido sistema de saúde do país. O governo ensaia um apoio formal à proposta dos senadores democratas, de elevação do mínimo para 10,10 dólares por hora, ainda bem abaixo do que pediam ontem as ruas dos maiores centros urbanos do país.

Na quarta-feira, Obama mencionou como principais injustiçados no mercado de trabalho americano, além dos enfermeiros (outro grupo presente em peso nas três passeatas de quinta-feira na Grande Nova York) e dos funcionários de shoppings e grandes lojas de departamento, os trabalhadores das redes de fast-food, historicamente afastados dos sindicatos por conta de característica específica do ramo: o gerenciamento dos negócios feitos por franquias, dissociadas umas das outras.

A primeira vez em que trabalhadores do setor cruzaram os braços nos EUA cerca de 200 funcionários de redes de fast-food deixaram de trabalhar por um dia em novembro de 2012, mobilizados por grupos locais como o Fast Food Forward (FFF) e o Fight for 15, hoje apoiados por centrais sindicais poderosas, como a União Nacional dos Professores, . “O que queremos, no fim, é um salário-base de 15 dólares/hora e o direito de nos sindicalizarmos”, dizia, em alto e bom som, microfone na mão, o dia todo, um dos principais organizadores da greve, Kendall Fells, principal líder do FFF.

A discrepância dos dois lados da pirâmide da indústria alimentícia nos EUA é denunciada pelos ativistas sem qualquer titubeio: enquanto CEOs de McDonald’s, KFC, Taco Bell, Pizza Hut e Red Olive aparecem na lista da revista “Fortune” recebendo salários de até 14 milhões de dólares por ano, pesquisa do Economy Police Institute revela que seus funcionários recebem 788 vezes menos. Mas o caldeirão só transbordou, reconhecem os organizadores da greve, por conta da recessão americana e do aumento do desemprego, que levou a idade média dos funcionários do setor, como apontada por Ted Alexandro, de 25 para 29 anos em meia década. Trinta e um por cento dos funcionários tem pelo menos um diploma universitário e mais de 25% da força de trabalho sustenta pelo menos uma criança com o salário recebido. É fato que nos últimos 14 anos nenhum setor da economia americana gerou mais postos de emprego. No entanto, a quase totalidade é de remuneração baixíssima.

Enquanto o lucro das empresas do setor foi estimado em 7,4 bilhões de dólares em 2013, os organizadores da greve dizem que quase 60% dos trabalhadores dependem do vale-alimentação do governo federal para abastecerem as geladeiras. Alem do mais, frisou um dos donos da Zingerman’s Deli, em Ann Arbor, Michigan, Paul Saignaw, em entrevista à “The Nation”, em frase poderosa: “É, no mínimo, uma vergonha termos funcionários de lanchonetes e restaurantes passando fome”. Os benefícios trabalhistas praticamente inexistem. De acordo com o National Employment Law Project, os custos para o contribuinte americano com os tratamentos de saúde apenas de funcionários do McDonald’s e seus dependentes chega a 1,2 bilhão de dólares.

Um dos maiores grupos lobistas de Washington, a National Restaurants Association, alertou esta semana que o virtual aumento do pagamento mínimo para 15 dólares por hora acarretará necessariamente no corte de empregados e em maior automação de serviços. Lisa McCombs, porta-voz do McDonald’s, disse, em e-mail distribuído à imprensa, que o grupo empresarial não considera os eventos desta semana “greves, e sim manifestações avulsas, que contaram com a adesão de pouquíssimas das 700 mil pessoas que trabalham para o Mc Donald’s”. Um Ronald McDonald vestido como o frio e ganancioso Grinch, o personagem criado por Dr.Seuss que quer ‘roubar’ o Natal, e os piquetes nas portas de restaurantes da rede em todo o país mostraram, no entanto, um incremento claro dos protestos em relação às paralisações-relâmpagos de novembro do ano passado e agosto último.

De acordo com a Wider Opportunities for Women, um indivíduo precisa ganhar hoje 10,20 dólares por hora nos EUA para se conseguir sobreviver em uma localidade de custo baixo. A média nacional é de 14,17 dólares. Ainda é uma incógnita se as greves conseguirão melhorar as condições dos trabalhadores que servem bilhões de hambúrgueres por dia nos EUA, mas uma vitória o neo-sindicalismo americano já pode celebrar: colocou na pauta do dia o aumento do salário mínimo na mesma semana em que o governo celebra o anúncio do menor índice de desemprego em cinco anos e da criação de 200 mil novos postos de emprego na economia americana nos últimos quatro meses.

13 de dezembro de 2013

Laika

 Numa esfera de metal
Do melhor que possuímos
Gira dia após dia um cão morto
À roda da nossa terra
Como aviso
De que também ano após ano
Poderá um dia girar à roda do sol,
Carregado com uma humanidade morta,
O planeta terra
O melhor que possuímos.

Günter Kunert





As folhas dos dias estavam em branco

Em Agosto havia
tempo e vagar. Obras
paradas, cães sem coleira
e um vizinho sentado à janela
entre cortinas de mofo. Hang on
sleepy town. Tudo adiado.
Sobrávamos nós, os conspiradores,
murados no terraço pela sombra
das montanhas; sobravam
também, toda a tarde,
as luzidias ilhas de vinil
em rotação –
e enquanto o espinho
de diamante as percorria,
víamos por vezes
acender-se na penumbra
a cidade de onde nos tinham
degredado desde sempre
e para sempre, tão forte
era o apelo da estranha língua
nativa: ruas sem retorno, negras
escadarias, túneis que levavam,
madrugada dentro, aos enredos
do futuro –
por favor, por favor,
que tudo comece. Num silêncio
sem paz nem sossego
ficávamos depois abandonados.
E esses foram, já se sabe,
os melhores dias.

Rui Pires Cabral, Oráculos de Cabeceira

12 de dezembro de 2013

a vida que passa

ressaca cansada
da vida que passa
na frente de todos
tal trem que se afasta
tal nave perdida
tal nau que naufraga
fragata que erra
no sonho que assanha
a sanha da vida
a sina perdida
a letra jaz morta
ressoa tal eco
no oco da gente
ecoa no mundo
um eco que explode
vai indo em frente
perpétuo contínuo
e treme no peito
um R que range
a porta que trava
a trova que solta
o som do infinito
na rota da reta
(caminho mais curto)
que encurta os dizeres
do tudo não dito
o pouco que sobra
nem sempre recruta
verdade evidente
as vezes o certo
é mesmo incerto
é pleno deserto
é falta que sobra
é sobra que falta
é coisa que para
é mágoa
é mistério
é sombra que paira
esperança que fica
no nó da garganta
é grito que urra
é coisa que voa
é rito proscrito
dos ditos que ficam
e restam inertes
nas vozes dos verbos
no som das palavras
sentidos vigentes
perdidos pra sempre

Salvador Passos

27 de novembro de 2013

poema quebrado

entre
ter
o dia
e
não ter
amor

a
dor
me
ce
sede
de
não
ter
amor

a
mor
te
te
ce
a
se
de
de
não
ser

a
dor
me
cesse

se
não
for
dor
mente

Raimundo Beato

26 de novembro de 2013

intolerância

com o passar dos anos a infância foi ficando tola
quando na realidade deveria ser momento de sabedoria

a intolerância dos mais velhos vem da amargura de não terem sido crianças quando foi seu tempo
a sabedoria vem de poder voltar a ser criança quando se chega na fase derradeira

sou todos os momentos que me trouxeram até aqui
os certos e os errados

neste sentido não há certo ou errado
apenas totalidade

tudo que sou é a soma de tudo que fiz e do que não fiz
tudo que me cabe são minhas faltas
(meus infinitos)

meu silêncio me revela

Salvador Passos

25 de novembro de 2013

Rota ABC



Rota ABC Assista ao filme, leia o roteiro, comente 3, publique, Documentário, de Francisco Cesar Filho, Duração: 11 min,
Gênero: Documentário
Diretor: Francisco Cesar Filho
Duração: 11 min Ano: 1991 Formato: 35mm
País: Brasil Local de Produção: RJ
Cor: Colorido
Sinopse: Ensaio documental sobre os anseios e perspectivas da juventude moradora no subúrbio industrial do ABC paulista, ao som da banda punk Garotos Podres.

UMA ORAÇÃO AMERICANA (AN AMERICAN PRAYER)

UMA ORAÇÃO AMERICANA
Jim Morrison
Tradução de Fabiano Calixto
I
Vocês sabem do progresso infernal
sob as estrelas?
Sabem que nós existimos?
Teriam esquecido as chaves
do Reino?
Nasceram?
Estão vivos?
Reinventemos os deuses
& os mitos dos tempos
Celebremos os símbolos
das profundas florestas ancestrais
(Esqueceram as lições
da velha guerra?)
Precisamos de GRANDES TREPADAS douradas
Os pais gargalham nas árvores do bosque
& nossa mãe está morta no mar
Sacam que somos levados
a massacres por plácidos almirantes
& flácidos generais lerdos têm
o obsceno vício por sangue jovem?
Sacam que somos controlados pela TV?
A lua é um animal de sangue seco
Guerrilheiros lançam os dados
na vizinhança de verdes vinhas
preparando-se para a batalha contra
inocentes pastores em frangalhos
Ó Grande Criador da existência
nos conceda um momento mais para
mostrarmos nossa arte
& aperfeiçoarmos a vida
As traças & os ateus são duplamente divinos
& moribundos
Vivemos, morremos
& a morte não acaba
com isso
Viajamos mais e mais para dentro
do pesadelo
Agarre-se à vida
Essa nossa flor apaixonada
Agarre-se às bucetas & caralhos
do desespero
Nossa última visão nos deu
a gonorréia
Os ovos de Colombo
incharam de morte verde
(Apalpei-lhe a bunda
& a morte sorriu)
Nós no centro deste teatro
senil e insano
A propagar nosso tesão pela vida
& fugir da sabedoria fervilhante
das ruas
Os celeiros foram destruídos
As janelas preservadas
& somente um entre tantos
Pra dançar & nos salvar
C/ o divino deboche das
palavras
& música inflamando o espírito
(Quando os assassinos do verdadeiro Rei
possuem a liberdade
1000 mágicos surgem
na terra)
Onde as farras
que nos prometeram?
Onde o vinho?
– O Vinho Novo –
(está morrendo na uva)
O deboche residente
Cede uma hora à magia
& nós da rubra luva
& nós do vôo maligno
& da hora de veludo
Nós saídos dos deleites árabes
Da cúpula do sol & das 1001 noites
Dê-nos algo
em que crer
Noite de LUXÚRIA
Dê-nos a bênção
de sua Noite
Dê-nos da cor
cem matizes
uma rica mandala
para mim & para você
& para a sua casa
forrada de seda
uma cabeça, sabedoria
& uma cama
Decrépito decreto,
o deboche decerto
clama seu crédito
Costumávamos crer
nos velhos tempos
E hoje apenas nos sobram
um sorriso engarrafado
As Coisas Delicadas
& a face terna
esquecem & consentem
Sabem que a liberdade só existe
nos livros escolares?
Sabem que os loucos
enchem as cadeias?
C/ uma cela, c/ uma gaiola,
C/ num Maelstrom ianque
Como pêndulos de cabeça para baixo
à beira do tédio
Buscamos a morte
na treva de uma vela
Procuramos algo
que já nos encontrou
Podemos criar nossos Reinos
grandes tronos rubros, sofás de luxúria,
& devemos nos amar numa cama de armar
Portas de aço asfixiam os gritos
da prisão
& música elétrica liga os sonhos
Não temos o ímpeto negro
da libertação
& os anjos loucos separam o joio do trigo
Uma colagem de revistas velhas
Postadas nos muros da fé
Esta é a justa prisão daqueles que devem
levantar cedo & suar, por repugnantes
inúteis valores
enquanto virgens em pranto
exibem miséria
& beicinhos diante da insana
sociedade
Porra, estou cheio das dúvidas!
Quero viver ao sol de um certo
Norte
Cruéis ligações
Os servos têm o poder
cabeças-de-porco & suas reles mulheres
cobrindo com míseros mantos
nossos marujos
(& onde você estava nessa hora difícil?)
Ordenhando seu bigode?
ou esmagando uma flor?
Estou cheio dessas caras feias
Que me olham da torre de
TV – Eu quero rosas no
rosto do meu jardim,
sacou?
Bebês reis, rubis
irão tomar o lugar de
estranhos abortados na lama
Esses mutantes, adubo sangüíneo
para o cultivo da planta
Estão à espreita para nos levar aos
jardins segregados
Sabem da palidez & da lascívia aguda
da morte quando, às horas insólitas,
sem aviso, sem escolta,
como um tenebroso conhecido,
nos leva pra cama?
A morte faz de todos nós anjos
& nos põe asas
onde antes havia ombros
macios como as garras
dos corvos
Chega de grana! Chega de luxo!
Este outro Reino parece ser de longe o melhor
até que outra mandíbula revele incesto
& perca o respeito à lei vegetal
Não
Eu não vou
Prefiro a farra de amigos
à família Gigante
II
Grande Cristo que grita
Margarida excitada
Maria-sem-vergonha, você se erguerá
numa manhã de domingo?
“O filme começa em 5 minutos”
uma voz idiota anunciou
“Todos os de pé esperarão
pela próxima sessão”
Lentamente entramos
na sala. O auditório era
vasto & silencioso.
Estávamos sentados & escurecia
A voz prosseguia:
“A programação desta noite
não é novidade. Vocês
já viram esse filme.
Viram seu nascimento,
vida & morte; devem se lembrar
do resto – (você encontrou
um mundo bom quando
morreu?) – passaria
um filme?”
Uma gargalhada de ferro arrebentou nossa mente
como uma porrada.
Vou sair daqui
Onde você vai?
Pro outro lado da manhã
Por favor, não persiga as nuvens,
os ritos, os templos
A xota dela prendeu-o
como uma morna e amigável
mão.
“Tudo bem.
Todos os seus amigos estão aqui.”
Quando vou vê-los?
“Depois de ter comido”
Estou sem fome
“Quer dizer, depois de ser espancado”
Riacho de prata, grito prateado,
impossível concentração
Aí vêm os comediantes
Veja como eles riem
Como eles dançam
uma dança estranha
Olhe seus gestos
Quanto aprumo
Ao público!
Palavras veladas
Palavras rápidas
Palavras-bengalas
Plante-as
Elas crescerão
Observe como tremem
Prefiro ser um
homem-palavra
a um homem-pássaro
Cobrarei
Ninguém se manda
s/ morrer com uma grana
Vou ter que repetir?
Vou ter que gritar? Você se ligou?
S/ grana: nada de comida!
Serei o irlandês baderneiro
metendo, na boa, meu bico
no pico dos poderes
Oh, garota, desmanche
esse penteado cafona!
Ah, mas que mente careta!
Pecados nas moitas
Vistos pelas persianas
Ela fareja o prejuízo
no meu colarinho novo
Prosa arrogante
Amarrada numa rede de busca rápida
Daí a obsessão
Rápido se admite
o ritmo roubado
a mulher perdida
Mulheres do mundo, uni-vos!
Fazei do mundo um helldorado
Para a vasta vida libertina
Ha! Ha!! Ha!!!
Corte sua garganta
A vida é uma pândega
Sua esposa num canal!
A mesma nau!!
Aí vem o cabrual!!!
Sangue Sangue Sangue Sangue
Estão fazendo piada
do nosso universo
III
Caixa de fósforos
Você é mais real que eu
Vou te queimar & te libertar
Lágrimas amargas derramadas
Grande e inesquecível
lisonja
IV
A lava doente e quente fluiu
Enferrujando & borbulhando
A cara de papel.
Máscara-espelho, amo seu reflexo
Sofreu lavagem cerebral durante 4 horas
O Tenente se confundiu de novo
“Pronto pra falar?”
“Não senhor” – foi tudo que disse
Volte à ginástica
Pacífica
Meditação
Na base aérea do deserto
olhando pelas venezianas
um avião
uma flor do deserto
um gibi bacana
O resto do Mundo
é imprudente & perigoso
Veja os
bordéis
Filmes de foda
Classe Z
V
Um navio deixa o porto
cavalo selvagem de outra floresta
osso do desejo
avilta a raposa de metal
***
Abaixo, uma leitura do próprio Morrison e, mais abaixo, o poema original. Abrax!
AN AMERICAN PRAYER Do you know the warm progress/ under the stars?/ Do you know we exist?/ Have you forgotten the keys/ to the Kingdom/ Have you been borne yet/ & are you alive?// Let’s reinvent the gods, all the myths/ of the ages/ Celebrate symbols from deep elder forests/ (Have you forgotten the lessons/ of the ancient war)// We need great golden copulations // The fathers are cackling in trees of the forest/ Our mother is dead in the sea// Do you know we are being led to/ slaughters by placid admirals/ & that fat slow generals are getting/ obscene on young blood// Do you know we are ruled by T.V./ The moon is dry blood beast/ Guerrilla bands are rolling numbers/ in the next block of green vine/ amassing for warfare on innocent herdsmen / who are just dying// O great creator of being/ grant us one more hour to/ perform our art/& perfect our lives// The moths & atheists are doubly divine/ & dying/ We live, we die/ & death not ends it/ Journey we more into the/ Nightmare/ Cling to life/ our passion’d flower/ Cling to Cunts & cocks/ of despair/ We got our final vision/ by clap/ Columbus groin got/ filled w/green death// (I touched her thigh/ & death smiled)// We have assembled inside this ancient/ & insane theatre/ To propagate our lust for life/ & flee the swarming wisdom/ of the streets/ The barns are stormed/ The windows kept/ & only one of all the rest/ To dance & save us/ W/the divine mockery/ of words/ Music inflames temperament// (When the true King’s murderers/ are allowed to roam free/ a 1000 Magicians arise /in the land)// Where are the feasts/ we were promised/ Where is the wine/The New Wine/ (dying on the vine)// resident mockery/ give us an hour for magic/ We of the purple glove/ We of the starling flight/ & velvet hour/ We of arabic pleasure’s breed/ We of sundome & the night// Give us a creed/ To believe/ A night of Lust/ Give us trust in The Night// Give of color/ hundred hues/ a rich mandala/ for me & you// & for your silky/ pillowed house/ a head, wisdom/ & a bed// Troubled decree/ Resident mockery/ has claimed thee// We used to believe/ in the good old days/ We still receive/ In little ways// The Things of Kindness/ & unsporting brow/ Forget & allow/ Did you know freedom exists/ in school book/ Did you know madmen are/ running our prisons/ w/in a jail, w/in a gaol/ w/in a white free protestant/ Maelstrom// We’re perched headlong/ on the edge of boredom/ We’re reaching for death/ on the end of a candle/ We’re trying for something/ That’s already, found us// We can invent Kingdoms of our own/ grand purple thrones, those chairs of lust/ & love we must, in beds of rust// Steel doors lock in prisoner’s screams/ & muzak, AM, rocks their dreams/ No black men’s pride to hoist the beams/ while mocking angels sift what seems// To be a collage of magazine dust/ Scratched on foreheads of walls of trust/ This is just jail for those who must/ get up in the morning & fight for such// unusable standards/ while weeping maidens/ show-off penury & pout ravings for a mad/ staff// Wow, I’m sick of doubt/ Live in the light of certain/ South// Cruel bindings/ The servants have the power/ dog-men & their mean women/ pulling poor blankets over/ our sailors/ (& where were you in our/ lean hour)/ Milking your mustache?/ or grinding a flower?/ I’m sick of dour faces/ Staring at me from the T.V./ Tower. I want roses in/ my garden bower; dig?/ Royal babies, rubies/ must now replace aborted/ Strangers in the mud/ These mutants, blood-meal/ for the plant that’s plowed// They are waiting to take us into/ the severed garden/ Do you know how pale & wanton thrillful/ comes death on a stranger hour/ unannounced, unplanned for/ like a scaring over-friendly guest you’ve/ brought to bed/ Death makes angels of us all/ & gives us wings/ where we had shoulders/ smooth as raven’s/ claws// No more money, no more fancy dress/ This other kingdom seems by far the best/ until its other jaw reveals incest// & loose obedience to a vegetable law/ I will not go / Prefer a feast of friends/ To the Giant family// II // Great screaming Christ/ Upsy-daisy/ Lazy Mary will you get up/ upon a Sunday morning// “The movie will begin in 5 moments”/ The mindless Voice announced/ “All those unseated, will await/ The next show”// We filed slowly, languidly/ into the hall. The auditorium/ was vast, & silent./ As we seated & were darkened/ The Voice continued:// “The program for this evening/ is not new. You have seen/ This entertainment thru & thru./ You’ve seen your birth, your/ life & death; you might recall/ all of the rest – (did you/ have a good world when you/ died?) – enough to base/ a movie on?”// An iron chuckle rapped our/ minds like a fist.// I’m getting out of there/ Where’re you going?/ To the other side of morning/ Please don’t chase the clouds/ pagodas, temples// Her cunt gripped him/ like a warm friendly/ hand.// “It’s all right./ All your friends are here.”// When can I meet then?/ “After you’ve eaten”/ I’m not hungry “O, we meant beaten”/ Silver stream, silvery scream,/ impossible concentration// Here come the comedians/ look at them smile/ Watch them dance/ an indian mile// Look at them gesture/ How aplomb/ So to gesture everyone// Words dissemble/ Words be quick/ Words resemble walking sticks// Plant them/ They will grow/ Watch them waver so// I’ll always be/ a word-man/ Better than a birdman// But I’ll charge/ Won’t get away/ w/ out lodging a dollar// Shall I say it again/ aloud, you get the point/ No food w/ out fuel’s gain// I’ll be, the irish loud/ unleashed my beak/ at peak of powers// O girl, unleash/ your worried comb// O worried mind// Sin in the fallen/ Backwoods by the blind// She smells debt/ on my new collar// Arrogant prose/ Tied in a network/ of fast quest/ Hence the obsession// Its quick to admit/ Fast borrowed rhythm/ Woman came/ between them// Women of the world unite/ Make the world safe/ For a scandalous life// Hee Heee/ Cut your throat/ Life is a joke// Your wife’s in a moat/ The same boat/ Here comes the goat// Blood Blood Blood Blood/ They’re making a joke/ of our universe// III / Matchbox/ Are you more real than me/ I’ll burn you, & set you free/ Wept bitter tears/ Excessive courtesy/ I won’t forget// IV / A hot sick lava flowed up,/ Rustling & bubbling./ The paper face./ Mirror-mask, I love your mirror.// He had been brainwashed for 4 hrs./ The LT. puzzled in again/ “ready to talk”/ “No sir” – was all he’d say./ Go back to the gym./ Very peaceful/ Meditation// Air base in the desert/ looking out venetian blinds/ a plane/ a desert flower/ cool cartoon// The rest of the World / is reckless & dangerous/ Look at the/ brothels/ Stag films/ Exploration// V / A ship leaves port/ mean horse of another thicket/ wishbone of desire /decry the metal fox
Do livro An American Night: The Writings of Jim Morrison. Volume 2. Vintage Books: New York, 1991

Um tratado para estabelecer o governo das multinacionais


Lori Wallach*


As discussões sobre um acordo de livre-comércio entre o Canadá e a União Europeia foram concluídas em 18 de outubro. Um bom presságio para o governo dos EUA, que espera firmar uma parceria desse tipo com a Europa. Negociado em segredo, permitiria às multinacionais processar qualquer Estado que não siga as normas do liberalismo

É possível imaginar as multinacionais levando aos tribunais os governos cuja orientação política tivesse por efeito diminuir seus lucros? É concebível pensar que elas podem exigir – e conseguir! – uma compensação generosa pela perda de rendimentos causada por um direito do trabalho muito restritivo ou por uma legislação ambiental muito espoliadora? Por mais improvável que possa parecer, esse cenário não é novo. Ele já aparecia com todas as letras no projeto do Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), secretamente negociado entre 1995 e 1997 pelos 29 países-membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE) [1]. Divulgada in extremis, a cópia despertou em vários países uma onda de protestos sem precedentes, forçando seus promotores a mandá-la para a gaveta. Quinze anos depois, ei-la de volta em grande estilo, com uma nova roupagem.

O acordo para criar uma Parceria de Investimento e Comércio Transatlântica (TTIP, na sigla em inglês), negociado desde julho de 2013 pelos Estados Unidos e pela União Europeia, é uma versão modificada do AMI. Ele prevê que as legislações em vigor em ambos os lados do Atlântico estejam em conformidade com as normas de livre-comércio estabelecidas pelas – e para as – principais empresas europeias e norte-americanas, sob pena de sanções comerciais ao país transgressor ou de uma reparação de vários milhões de euros em favor dos queixosos.

De acordo com o calendário oficial, as negociações só devem chegar a um resultado após um prazo de dois anos. O acordo combina, aprofundando-os, os elementos mais nefastos das parcerias efetivadas no passado. Se tivesse entrado em vigor, os privilégios das multinacionais assumiriam força de lei e amarrariam as mãos dos governantes. Impermeável às alternâncias políticas e às mobilizações populares, ele se aplicaria pelo bem ou pela força, já que suas disposições só poderiam ser alteradas com o consentimento unânime dos países signatários. Ele replicaria na Europa o espírito e as modalidades do modelo asiático, o acordo de Parceria Transpacífica (Trans-Pacific Partnership, TPP), que está sendo adotado em doze países depois de ter sido ardorosamente promovido pela comunidade empresarial norte-americana. Juntas, a TTIP e a TPP formariam um império econômico capaz de ditar suas condições para além de suas fronteiras: qualquer país que buscasse estabelecer relações comerciais com os Estados Unidos ou a União Europeia seria forçado a adotar tais e quais as regras que prevalecem no mercado comum deles.

Tribunais especiais

Como almejam liquidar porções inteiras do setor não comercial, as negociações sobre a TTIP e a TPP são realizadas a portas fechadas. As delegações norte-americanas têm mais de seiscentos consultores comissionados pelas multinacionais, que dispõem de acesso ilimitado aos documentos preparatórios e aos representantes do governo. Nada deve ser filtrado. Foi dada a instrução de deixar jornalistas e cidadãos fora das discussões: eles serão informados em tempo hábil, na assinatura do tratado, quando será tarde demais para reagir.

Em uma explosão de sinceridade, Ron Kirk, ex-secretário do Comércio dos Estados Unidos, defendeu as vantagens de “preservar certo grau de discrição e confidencialidade” [2]. Na última vez que foi publicada uma versão de um acordo que estava sendo negociado, apontou Kirk, as negociações fracassaram – uma alusão à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), um modelo expandido do Acordo de Livre Comércio Norte-Americano (Nafta); o projeto, ferozmente defendido por George W. Bush, foi revelado no site do governo em 2001. Porém, a senadora Elizabeth Warren retruca que um acordo negociado sem nenhum exame democrático nunca deveria ser assinado [3].

O imperioso desejo de ocultar a preparação do tratado EUA-UE da atenção do público é facilmente compreensível. É melhor usar o tempo para anunciar ao país os efeitos que ele vai produzir em todos os níveis: desde o topo do governo federal até os conselhos municipais, passando pelos governos e pelas assembleias locais, as autoridades eleitas devem redefinir de alto a baixo suas políticas públicas de maneira a satisfazer os apetites do setor privado, nas áreas que ainda lhe escapam. Segurança alimentar, normas de toxicidade, seguros-saúde, preço dos medicamentos, liberdade na internet, proteção de privacidade, energia, cultura, direitos autorais, recursos naturais, formação profissional, equipamentos públicos, imigração: não há um campo de interesse geral que não passe pelo jugo do livre-comércio institucionalizado. A ação política dos eleitos se limitará a negociar com as empresas ou seus mandatários locais as migalhas de soberania que eles quiserem lhes permitir.

Está desde já estipulado que os países signatários vão assegurar a “colocação em conformidade de suas leis, de seus regulamentos e de seus procedimentos” com as disposições do tratado. Ninguém duvida que eles vão se esforçar para honrar esse compromisso. Caso contrário, poderiam ser objeto de processos diante de um dos tribunais criados para arbitrar disputas entre os investidores e os países, e com o poder de impor sanções comerciais contra estes últimos.

A ideia pode parecer improvável; contudo, ela se inscreve na filosofia dos acordos comerciais já em vigor. No ano passado, a Organização Mundial do Comércio (OMC) condenou os Estados Unidos por latas de atum rotuladas como “sem perigo para os golfinhos”, pela indicação do país de origem em carnes importadas e pela proibição de tabaco com cheiro de bombom, sendo tais medidas de proteção consideradas entraves ao livre-comércio. Ela também infligiu à União Europeia sanções de centenas de milhões de euros por sua recusa em importar transgênicos. A novidade introduzida pela TTIP e pela TTP é que elas permitiriam às multinacionais processar em seu nome um país signatário cuja política tivesse um efeito restritivo sobre sua exploração comercial.

Sob tal regime, as empresas seriam capazes de contrariar as políticas de saúde, de proteção ambiental ou de regulação das finanças em vigor nesse ou naquele país, exigindo uma indenização em tribunais extrajudiciais. Compostas por três advogados da área empresarial, essas cortes especiais que atendem às leis do Banco Mundial e da ONU estariam habilitadas a condenar o contribuinte a pesadas reparações quando sua legislação reduzisse os “lucros futuros esperados” de uma corporação.

Esse sistema “investidor versus Estado”, que parecia varrido do mapa após o abandono da AMI em 1998, foi restaurado em segredo ao longo dos anos. Em virtude de vários acordos comerciais assinados por Washington, US$ 400 milhões passaram do bolso do contribuinte para o das multinacionais, graças à proibição de produtos tóxicos, ao controle da exploração da água, do solo ou da madeira etc. [4]. Sob a égide desses mesmos tratados, os procedimentos atualmente em curso – em assuntos de interesse geral, tais como as patentes médicas, a luta antipoluição ou as leis sobre o clima e os combustíveis fósseis – estão elevando os pedidos de indenização a US$ 14 bilhões.

A Parceria de Investimento e Comércio Transatlântica também tornaria mais pesada a fatura dessa extorsão legalizada, dada a importância dos interesses em jogo no comércio entre as regiões. Nos Estados Unidos, com 24 mil filiais, existem 3,3 mil empresas europeias, e cada uma delas poderia se considerar apta a buscar reparação por uma perda comercial. Tal efeito ultrapassaria em muito os custos ocasionados pelos tratados anteriores. Por sua vez, os países-membros da União Europeia se veriam expostos a um risco financeiro ainda maior, sabendo que 14,4 mil empresas norte-americanas têm na Europa uma rede de 50,8 mil filiais. No total, são 75 mil empresas que poderiam se lançar na caça aos tesouros públicos.

Oficialmente, esse sistema deveria de início servir para consolidar a posição dos investidores em países em desenvolvimento desprovidos de um sistema legal confiável; ele lhes permitiria fazer valer seus direitos em caso de desapropriação. Mas a União Europeia e os Estados Unidos não constituem exatamente zonas de ausência de direitos; eles dispõem, ao contrário, de uma justiça funcional e plenamente respeitadora do direito à propriedade. Ao colocá-los sob a tutela de tribunais especiais, a TTIP demonstra que seu objetivo não é proteger os investidores, mas aumentar o poder das multinacionais.

Processo por aumentar o salário mínimo

Os advogados que compõem esses tribunais não têm contas a prestar a nenhum eleitorado. Invertendo alegremente os papéis, eles podem tanto servir como juízes quanto defender a causa de seus poderosos clientes [5]. É um mundo bem pequeno esse dos juristas do investimento internacional: eles são apenas quinze a compartilhar entre si 55% dos casos tratados até hoje. Obviamente, suas decisões são finais.

Os “direitos” que eles têm por missão proteger são formulados de maneira deliberadamente vaga, e sua interpretação poucas vezes serve aos interesses da grande maioria. É o caso do direito concedido ao investidor de se beneficiar de um marco regulatório coerente com suas “previsões” – pelo que convém entender que o governo vai proibir a si mesmo de modificar sua política depois que o investimento tiver sido feito. Já o direito de obter uma compensação em caso de “desapropriação indireta” significa que os poderes públicos deverão colocar as mãos no bolso se sua legislação tiver por efeito reduzir o valor de um investimento, inclusive quando essa mesma lei também se aplica a empresas locais. Os tribunais reconhecem igualmente o direito do capital de adquirir cada vez mais terras, recursos naturais, equipamentos, fábricas etc. Nenhuma contrapartida por parte das multinacionais: elas não têm obrigação alguma para com os países e podem disparar processos quando e onde lhes convier.

Alguns investidores têm uma concepção muito ampla de seus direitos inalienáveis. Vimos recentemente empresas europeias moverem processos contra o aumento do salário mínimo no Egito ou contra a limitação das emissões tóxicas no Peru [6]. Outro exemplo: a gigante dos cigarros Philip Morris, incomodada pelas legislações antifumo do Uruguai e da Austrália, representou contra esses dois países diante de um tribunal especial. O grupo farmacêutico norte-americano Eli Lilly pretende fazer justiça contra o Canadá, culpado de ter criado um sistema de patentes que torna certos medicamentos mais acessíveis. O fornecedor de eletricidade sueco Vattenfall exige vários bilhões de euros da Alemanha por sua “virada energética”, que enquadra mais severamente as centrais de carvão e promete o abandono da energia nuclear.

Não há limite para as penalidades que um tribunal pode impor a um Estado em benefício de uma multinacional. Há um ano, o Equador se viu condenado a pagar a soma recorde de 2 bilhões de euros para uma companhia petrolífera [7]. Mesmo quando os governos ganham o processo, eles devem pagar as custas judiciais e as comissões diversas, que atingem em média US$ 8 milhões, de forma que os poderes públicos muitas vezes preferem negociar com o queixoso que defender sua causa no tribunal. Assim, o governo canadense evitou uma convocação para os tribunais anulando rapidamente a proibição de um aditivo tóxico utilizado pela indústria petrolífera.

No entanto, as reclamações não param de crescer. De acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), o número de casos sujeitos aos tribunais especiais foi multiplicado por dez desde o ano 2000. Desde que foi criado na década de 1950, o sistema de arbitragem comercial nunca prestou tantos serviços aos interesses privados quanto em 2012, ano recorde em termos de abertura de casos. Esse boom criou um florescente viveiro de consultores financeiros e de advogados da área empresarial.

O projeto do grande mercado americano-europeu é apoiado há muitos anos pelo Diálogo Transatlântico de Negócios (TABD, na sigla em inglês), um lobby mais conhecido hoje pelo nome de Transatlantic Business Council (TBC). Criado em 1995 sob o patrocínio da Comissão Europeia e da Secretaria do Comércio norte-americana, esse fórum de empresários ricos faz campanha por um “diálogo” altamente construtivo entre as elites econômicas dos dois continentes, o governo de Washington e os comissários de Bruxelas. O TABD é um fórum permanente que permite às multinacionais coordenar seus ataques contra os políticos que ainda estão de pé em ambos os lados do Atlântico.

Seu objetivo, público, é eliminar o que chama de “discórdias comerciais” (trade irritants), ou seja, operar nos dois continentes sob as mesmas regras e sem interferência dos poderes públicos. “Convergência regulatória” e “reconhecimento mútuo” fazem parte dos painéis semânticos que o TABD exibe para encorajar os governos a permitir produtos e serviços que contrariam as legislações locais.

“Injusta rejeição ao cloridrato de ractopamina”

Mas, em vez de defender uma simples flexibilização das leis existentes, os ativistas do mercado transatlântico se propõem a reescrevê-las eles mesmos. Assim, a Câmara Americana de Comércio e o BusinessEurope, duas das maiores patronais do planeta, pediram aos negociadores da TTIP que reunissem em torno de uma mesa de trabalho um grupo de grandes acionistas e políticos para que “redijam juntos os textos de regulamentação”, que terão em seguida força de lei nos Estados Unidos e na União Europeia. É de perguntar, também, se a presença dos políticos na oficina de escrita comercial é realmente indispensável...

De fato, as multinacionais exibem uma notável franqueza na declaração de suas intenções − por exemplo, na questão dos transgênicos. Enquanto nos Estados Unidos um estado em cada dois planeja tornar obrigatório um rótulo que indique a presença de organismos geneticamente modificados (OGMs) em um alimento – medida desejada por 80% dos consumidores do país –, os industriais do setor agroalimentar batalham pela proibição da rotulagem. A Associação Nacional dos Confeiteiros não mediu palavras: “A indústria norte-americana gostaria que a TTIP avançasse nessa questão, eliminando a rotulagem OGM e as normas de rastreabilidade”. Por sua vez, a muito influente Associação da Indústria de Biotecnologia (BIO, na sigla em inglês), da qual faz parte a Monsanto, fica indignada pelo fato de produtos contendo transgênicos e vendidos nos Estados Unidos poderem obter uma resposta negativa no mercado europeu. Consequentemente, ela espera que o “fosso que se alarga entre a desregulamentação de novos produtos biotecnológicos nos Estados Unidos e sua acolhida na Europa” seja rapidamente preenchido [8]. A Monsanto e seus amigos não escondem a esperança de que a zona de livre-comércio transatlântica permita enfim impor aos europeus seu “catálogo abundante de produtos OGM que aguardam aprovação” [9].

A ofensiva não é menos vigorosa na área da vida privada. A Coalizão do Comércio Digital (DTC, na sigla em inglês), que agrupa industriais da internet e da alta tecnologia, pressiona os negociadores da TTIP a remover as barreiras que impedem os fluxos de dados pessoais de se espalhar livremente da Europa para os Estados Unidos. “O ponto de vista atual da UE, segundo o qual os Estados Unidos não oferecem uma proteção ‘adequada’ da vida privada, não é razoável”, impacientam-se os lobistas. À luz das revelações de Edward Snowden sobre o sistema de espionagem da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), essa opinião não deixa de fazer sentido. No entanto, ela não se iguala à declaração do US Council for International Business, um grupo de empresas que alimentaram maciçamente a NSA com dados pessoais: “O acordo deveria procurar circunscrever as exceções, como a segurança e a vida privada, para garantir que elas não sirvam como entraves disfarçados ao comércio”.

As normas de qualidade na alimentação também são tomadas como alvo. A indústria de carnes dos Estados Unidos pretende obter a supressão da regra europeia que proíbe frangos desinfectados com cloro. Na vanguarda dessa luta, o grupo Yum, dono da cadeia de fast-food KFC, pode contar com o poder de fogo das patronais. “A UE autoriza somente o uso da água e do vapor de água nas carcaças”, protesta a Associação Americana da Carne, enquanto outro grupo de pressão, o Instituto Americano da Carne, lamenta a “recusa injustificada [por Bruxelas] das carnes com adição de beta-agonistas como o cloridrato de ractopamina”. A ractopamina é uma droga usada para inflar o teor de carne magra em suínos e bovinos. Por causa dos riscos para a saúde dos animais e dos consumidores, ela é proibida em 160 países, incluindo membros da União Europeia, a Rússia e a China. Para a indústria de carne de porco norte-americana, essa medida de proteção constitui uma distorção da livre concorrência na qual a TTIP deve colocar um fim com urgência.

“Os produtores de carne suína dos EUA não aceitarão nenhum outro resultado que não seja o levantamento do embargo europeu da ractopamina”, ameaça o Conselho Nacional dos Produtores de Porco (NPPC, na sigla em inglês). Durante esse tempo, do outro lado do Atlântico, os industriais do BusinessEurope denunciam as “barreiras que afetam as exportações europeias para os Estados Unidos, como a lei sobre a segurança alimentar”. Desde 2011, esta permite que os serviços de controle retirem do mercado produtos de importação contaminados. Mais uma vez, os negociadores da TTIP são convidados a fazer tábua rasa disso.

O mesmo acontece com as emissões de gases de efeito estufa. A organização Airlines for America (A4A), o braço armado dos transportes aéreos norte-americanos, estabeleceu uma lista de “regulamentações inúteis que trazem prejuízo considerável à indústria” e que a TTIP, é claro, poderia riscar do mapa. No topo dessa lista está o sistema europeu de troca de cotas de emissões, que obriga as companhias aéreas a pagar por sua poluição de carbono. Bruxelas suspendeu temporariamente esse programa; a A4A exige a supressão definitiva em nome do “progresso”.

Mas é no setor financeiro que a cruzada dos mercados é mais virulenta. Cinco anos após a eclosão da crise dos subprimes, os negociadores concordaram que as veleidades de regulação da indústria financeira já tiveram seu tempo. O quadro que eles desejam colocar em prática prevê remover todas as barreiras em matéria de investimentos de risco e impedir os governos de controlar o volume, a natureza e a origem de produtos financeiros colocados no mercado. Em suma, trata-se pura e simplesmente de eliminar do mapa a palavra regulação.

De onde vem esse extravagante retorno aos velhos tempos thatcheristas? Em particular, ele responde aos desejos da Associação de Bancos Alemães, que não deixa de expressar suas “preocupações” com a reforma, ainda que tímida, de Wall Street adotada no rescaldo da crise de 2008. Um de seus membros mais empreendedores sobre essa questão é o Deutsche Bank, que recebeu, em 2009, centenas de bilhões de dólares do Federal Reserve em troca de títulos lastreados em hipotecas [10]. O mastodonte alemão quer acabar com a regulamentação Volcker, a pedra angular da reforma de Wall Street, que exerce, segundo ele, “uma pressão pesada demais sobre os bancos não americanos”. A Insurance Europe, a ponta de lança das empresas de seguros europeias, deseja de seu lado que a TTIP “remova” as garantias colaterais que dissuadem o setor de se aventurar em investimentos de alto risco.

Já o Fórum dos Serviços Europeu, patronal da qual faz parte o Deutsche Bank, trava há anos conversas de bastidores para que as autoridades de controle norte-americanas parem de enfiar o nariz nos assuntos dos grandes bancos estrangeiros que operam em seu território. Do lado dos Estados Unidos, espera-se sobretudo que a TTIP venha a enterrar para sempre o projeto europeu de taxação sobre as transações financeiras. O caso parece estar contornado, posto que a própria Comissão Europeia considerou que a taxa não está de acordo com as regras da OMC [11]. Na medida em que a zona de livre-comércio transatlântica promete um liberalismo ainda mais desenfreado que o da OMC, e como o Fundo Monetário Internacional (FMI) se opõe sistematicamente a qualquer forma de controle sobre os movimentos de capitais, a frágil “taxa Tobin” não preocupa mais muita gente nos Estados Unidos.

Mas o canto de sereia da desregulamentação não se faz ouvir apenas na indústria financeira. A TTIP tenciona abrir para a concorrência todos os setores “invisíveis” ou de interesse geral. Os países signatários se veriam obrigados não só a submeter seus serviços públicos à lógica do mercado, mas também a renunciar a qualquer intervenção sobre os prestadores de serviços estrangeiros que cobiçam seus mercados. As margens de manobra política em matéria de saúde, energia, educação, água ou transporte seriam reduzidas a um fio. A febre comercial também não poupa a imigração, já que os instigadores da TTIP se arrogam a competência de estabelecer uma política comum nas fronteiras – sem dúvida para facilitar a entrada daqueles que têm um bem ou um serviço para vender, em detrimento de outros.

Nos últimos meses, o ritmo das negociações se intensificou. Em Washington, há boas razões para acreditar que os líderes europeus estão dispostos a fazer qualquer coisa para reviver um crescimento econômico moribundo, ainda que à custa de uma negação de seu pacto social. O argumento dos defensores da TTIP, segundo o qual o livre-comércio desregulamentado facilitaria as trocas comerciais e seria, portanto, gerador de empregos, aparentemente pesa mais do que o medo de um terremoto social. As barreiras tarifárias que ainda persistem entre a Europa e os Estados Unidos são, no entanto, “já bastante baixas”, como reconheceu o representante de Comércio dos Estados Unidos [12]. Os próprios artífices da TTIP admitem que seu principal objetivo não é reduzir as restrições alfandegárias, de qualquer maneira insignificantes, mas impor “a eliminação, a redução e a prevenção de políticas nacionais supérfluas”, [13] sendo considerado “supérfluo” tudo que retarda o escoamento de bens, tais como a regulação financeira, a luta contra o aquecimento global e o exercício da democracia.

É verdade que os poucos estudos consagrados às consequências da TTIP quase não se detêm sobre suas consequências sociais e econômicas. Um relatório frequentemente citado, oriundo do Centro Europeu de Economia Política Internacional (Ecipe, na sigla em inglês), afirma, com a autoridade de um Nostradamus de escola de comércio que a TTIP vai fornecer à população do mercado transatlântico um aumento de riqueza de 3 centavos per capita e por dia... a partir de 2029 [14].

Apesar de seu otimismo, o mesmo estudo estima em apenas 0,06% a alta do PIB na Europa e nos Estados Unidos após a entrada em vigor da TTIP. Mesmo tal “impacto” é altamente irreal, já que seus autores postulam que o livre-comércio “dinamiza” o crescimento econômico − uma teoria regularmente refutada pelos fatos. Além disso, uma elevação tão infinitesimal seria imperceptível. Em comparação, o lançamento do iPhone5 da Apple levou os Estados Unidos a um aumento oito vezes mais significativo do PIB.

Quase todos os estudos sobre a TTIP foram financiados por instituições favoráveis ao livre-comércio ou por organizações empresariais, razão pela qual os custos sociais do tratado não aparecem neles, assim como suas vítimas diretas, que, no entanto, se poderiam contar em centenas de milhões. Mas os jogos ainda não foram jogados. Como o mostraram as desventuras da AMI, da Alca e de algumas rodadas de negociações da OMC, o uso do “comércio” como um cavalo de troia para desmantelar as proteções sociais e instaurar a junta dos encarregados de negócios fracassou em várias ocasiões no passado. Nada diz que o mesmo não acontecerá desta vez.

* Lori Wallach é diretora do Public Citizen’s Global Trade Watch.

Ilustração: Daniel Kondo

NOTAS

1. Ler “Le nouveau manifeste du capitalisme mondial” [O novo manifesto do capitalismo global], Le Monde Diplomatique, fev. 1998.

2. “Some secrecy needed in trade talks: Ron Kirk” [Algum sigilo necessário nas negociações comerciais: Ron Kirk], Reuters, 13 maio 2012. 3 “Elizabeth Warren opposing Obama trade Nominee Michael Froman” [Elizabeth Warren se opõe ao representante de Obama para o Comércio Michael Froman], Huffingtonpost.com, 19 jun. 2013.

4. “Table of foreign investor-state cases and claimsunder NAFTA and other US ‘trade’ deals” [Tabela de casos e reclamações investidor-Estado estrangeiros sob o Nafta e outros acordos “comerciais” dos Estados Unidos], Public Citizen, Washington, ago. 2013.

5. “Treaty disputes roiled by bias charges” [As disputas do tratado perturbadas por acusações de viés], Bloomberg, 10 jul. 2013.

6. “Renco uses US-Peru FTA to evade justice for La Oroya pollution” [A Renco usa tratado de livre-comércio entre Estados Unidos e Peru para escapar da justiça pela poluição de La Oroya], Public Citizen, 28 nov. 2012.

7. “Ecuador to fight oil dispute fine” [O Equador vai contestar multa de disputa de petróleo], AFP, 13 out. 2012.

8. Comentários sobre o acordo para a TTIP, documento do BIO, Washington, DC, maio 2013.

9. “EU-US high level working group on jobs and growth. Response to consultation by EuropaBio and BIO” [Grupo de trabalho de alto nível UE-EUA sobre os empregos e o crescimento. Resposta à consulta feita por EuropaBio e BIO]. Disponível em: .

10. “FED opens books, revealing European megabanks were biggest beneficiaries” [FED abre livros, revelando que megabancos europeus foram os maiores beneficiários], HuffingtonPost.com, 10 jan. 2012.

11. “Europe admits speculation taxes a WTO problem” [A Europa admite que os impostos sobre a especulação são um problema para a OMC], Public Citizen, 30 abr. 2010.

12. Carta de Demetrios Marantis, representante de Comércio dos EUA, a John Boehner, porta-voz republicano na Câmara dos Deputados, Washington, 20 mar. 2013.

13. “Final report. High level working group on jobs and growth” [Relatório final. Grupo de trabalho de alto nível sobre os empregos e o crescimento], 11 fev. 2013.

14. “TAFTA’s trade benefit: a candy bar” [Benefício do comércio Tafta: uma barra de chocolate recheado], Public Citizen, 11 jul. 2013.

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil - Ano 7 - Número 76 - 01 de novembro de 2013 - Internet: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1522

19 de novembro de 2013

Sobre os presos no Rio: o cansaço não é uma opção!


Sobre os presos no Rio: o cansaço não é uma opção!
NOVEMBRO 18TH, 2013
Não estamos todos aqui, faltam os presos. Essa é a sensação de nós que não esquecemos de Baiano e de Rafael. Eles têm sido uma das formas do Estado se vingar da nossa ousadia. Eles não aceitariam tão facilmente tanto distúrbio e agora querem nos fazer temer para que durmam em paz. Porém não esquecemos dos presos e enquanto estiverem lá, estaremos aqui lutando contra as opressões e pela libertação de todos. Eles apostam no nosso cansaço e no nosso esquecimento, mas todos sabem que quem recebe a tapa nunca esquece. 

Rafael Vieira foi preso no dia 20 de junho por portar produtos de limpeza. Saía da sua casa, uma loja abandonada, no centro do Rio de Janeiro quando se deparou com a maior manifestação política na história recente do país. Agora está encarcerado no complexo presidiário de Japeri. Obviamente o fato de ser negro e morador de rua explicam o motivo de ainda estar encarcerado. Um frasco de desinfetante e outro de água sanitária de plástico não podem ser usados como Coquetel Molotov como é alegado pela justiça. Mas ainda assim não há previsão para o seu julgamento. Mais do que um nome ele é a realidade do que o Estado faz com negros e pobres. 

Já Baiano, Jair Seixas Rodrigues, foi preso no dia 15 de outubro nos protestos no Rio de Janeiro, foi acusado de ser parte do Black Bloc. Esse nome virou uma grande ficção midiática criada para criminalizar qualquer um que estiver nas ruas. Não existem provas que o conectem a nenhum grupo de confronto de rua, mas isso não importa mais no Brasil. Agora ele se encontra no presídio Bangu 9 e está recebendo mais apoio que Rafael por conta da sua militância. O seu julgamento está marcado para terça-feira (19/11) e aguardamos ansiosos para ver o resultado. 

Dois integrantes do movimento “Ocupa Câmera” fazem greve de fome pela libertação dos presos desde o dia 7 de novembro. Afirmam que só pararão no dia que a demanda for acatada. Alguns outros coletivos se mobilizam pelos presos e aqui nos juntamos a esse esforço. Acreditamos ser esse um momento oportuno para pensarmos seriamente por aqui que não existem “presos políticos”, pois todos são presos políticos por ousarem desafiar as leis do capital. Os contatos dos manifestantes que foram encarcerados com os outros presos nos relembraram para o fato de que esses campos de concentração chamados de presídios são lugares onde podem ser construídas cumplicidades contra as opressões do cotidiano. Por isso clamamos pela libertação imediata de todos os presos (sem adjetivos). A liberdade é o crime que contem todos os crimes!

14 de novembro de 2013

How science is telling us all to revolt

retirado de NewStateman

Naomi Klein: How science is telling us all to revolt

Is our relentless quest for economic growth killing the planet? Climate scientists have seen the data – and they are coming to some incendiary conclusions.
By Naomi Klein [1] Published 29 October 2013 10:00

Is our relentless quest for economic growth killing the planet? Climate scientists have seen the data – and they are coming to some incendiary conclusions.

Waste land: large-scale irrigation strips nutrients from the soil, scars the landscape and could alter climatic conditions beyond repair. Image: Edward Burtynsky, courtesy Nicholas Metivier Gallery, Toronto/ Flowers, London, Pivot Irrigation #11 High Plains, Texas Panhandle, USA (2011)

In December 2012, a pink-haired complex systems researcher named Brad Werner made his way through the throng of 24,000 earth and space scientists at the Fall Meeting of the American Geophysical Union, held annually in San Francisco. This year’s conference had some big-name participants, from Ed Stone of Nasa’s Voyager project, explaining a new milestone on the path to interstellar space, to the film-maker James Cameron, discussing his adventures in deep-sea submersibles.

But it was Werner’s own session that was attracting much of the buzz. It was titled “Is Earth F**ked?” (full title: “Is Earth F**ked? Dynamical Futility of Global Environmental Management and Possibilities for Sustainability via Direct Action Activism”).

Standing at the front of the conference room, the geophysicist from the University of California, San Diego walked the crowd through the advanced computer model he was using to answer that question. He talked about system boundaries, perturbations, dissipation, attractors, bifurcations and a whole bunch of other stuff largely incomprehensible to those of us uninitiated in complex systems theory. But the bottom line was clear enough: global capitalism has made the depletion of resources so rapid, convenient and barrier-free that “earth-human systems” are becoming dangerously unstable in response. When pressed by a journalist for a clear answer on the “are we f**ked” question, Werner set the jargon aside and replied, “More or less.”

There was one dynamic in the model, however, that offered some hope. Werner termed it “resistance” – movements of “people or groups of people” who “adopt a certain set of dynamics that does not fit within the capitalist culture”. According to the abstract for his presentation, this includes “environmental direct action, resistance taken from outside the dominant culture, as in protests, blockades and sabotage by indigenous peoples, workers, anarchists and other activist groups”.

Serious scientific gatherings don’t usually feature calls for mass political resistance, much less direct action and sabotage. But then again, Werner wasn’t exactly calling for those things. He was merely observing that mass uprisings of people – along the lines of the abolition movement, the civil rights movement or Occupy Wall Street – represent the likeliest source of “friction” to slow down an economic machine that is careening out of control. We know that past social movements have “had tremendous influence on . . . how the dominant culture evolved”, he pointed out. So it stands to reason that, “if we’re thinking about the future of the earth, and the future of our coupling to the environment, we have to include resistance as part of that dynamics”. And that, Werner argued, is not a matter of opinion, but “really a geophysics problem”.

Plenty of scientists have been moved by their research findings to take action in the streets. Physicists, astronomers, medical doctors and biologists have been at the forefront of movements against nuclear weapons, nuclear power, war, chemical contamination and creationism. And in November 2012, Nature published a commentary by the financier and environmental philanthropist Jeremy Grantham urging scientists to join this tradition and “be arrested if necessary”, because climate change “is not only the crisis of your lives – it is also the crisis of our species’ existence”.

Some scientists need no convincing. The godfather of modern climate science, James Hansen, is a formidable activist, having been arrested some half-dozen times for resisting mountain-top removal coal mining and tar sands pipelines (he even left his job at Nasa this year in part to have more time for campaigning). Two years ago, when I was arrested outside the White House at a mass action against the Keystone XL tar sands pipeline, one of the 166 people in cuffs that day was a glaciologist named Jason Box, a world-renowned expert on Greenland’s melting ice sheet.

“I couldn’t maintain my self-respect if I didn’t go,” Box said at the time, adding that “just voting doesn’t seem to be enough in this case. I need to be a citizen also.”

This is laudable, but what Werner is doing with his modelling is different. He isn’t saying that his research drove him to take action to stop a particular policy; he is saying that his research shows that our entire economic paradigm is a threat to ecological stability. And indeed that challenging this economic paradigm – through mass-movement counter-pressure – is humanity’s best shot at avoiding catastrophe.

That’s heavy stuff. But he’s not alone. Werner is part of a small but increasingly influential group of scientists whose research into the destabilisation of natural systems – particularly the climate system – is leading them to similarly transformative, even revolutionary, conclusions. And for any closet revolutionary who has ever dreamed of overthrowing the present economic order in favour of one a little less likely to cause Italian pensioners to hang themselves in their homes, this work should be of particular interest. Because it makes the ditching of that cruel system in favour of something new (and perhaps, with lots of work, better) no longer a matter of mere ideological preference but rather one of species-wide existential necessity.

Leading the pack of these new scientific revolutionaries is one of Britain’s top climate experts, Kevin Anderson, the deputy director of the Tyndall Centre for Climate Change Research, which has quickly established itself as one of the UK’s premier climate research institutions. Addressing everyone from the Department for International Development to Manchester City Council, Anderson has spent more than a decade patiently translating the implications of the latest climate science to politicians, economists and campaigners. In clear and understandable language, he lays out a rigorous road map for emissions reduction, one that provides a decent shot at keeping global temperature rise below 2° Celsius, a target that most governments have determined would stave off catastrophe.

But in recent years Anderson’s papers and slide shows have become more alarming. Under titles such as “Climate Change: Going Beyond Dangerous . . . Brutal Numbers and Tenuous Hope”, he points out that the chances of staying within anything like safe temperature levels are diminishing fast.

With his colleague Alice Bows, a climate mitigation expert at the Tyndall Centre, Anderson points out that we have lost so much time to political stalling and weak climate policies – all while global consumption (and emissions) ballooned – that we are now facing cuts so drastic that they challenge the fundamental logic of prioritising GDP growth above all else.

Anderson and Bows inform us that the often-cited long-term mitigation target – an 80 per cent emissions cut below 1990 levels by 2050 – has been selected purely for reasons of political expediency and has “no scientific basis”. That’s because climate impacts come not just from what we emit today and tomorrow, but from the cumulative emissions that build up in the atmosphere over time. And they warn that by focusing on targets three and a half decades into the future – rather than on what we can do to cut carbon sharply and immediately – there is a serious risk that we will allow our emissions to continue to soar for years to come, thereby blowing through far too much of our 2° “carbon budget” and putting ourselves in an impossible position later in the century.

Which is why Anderson and Bows argue that, if the governments of developed countries are serious about hitting the agreed upon international target of keeping warming below 2° Celsius, and if reductions are to respect any kind of equity principle (basically that the countries that have been spewing carbon for the better part of two centuries need to cut before the countries where more than a billion people still don’t have electricity), then the reductions need to be a lot deeper, and they need to come a lot sooner.

To have even a 50/50 chance of hitting the 2° target (which, they and many others warn, already involves facing an array of hugely damaging climate impacts), the industrialised countries need to start cutting their greenhouse-gas emissions by something like 10 per cent a year – and they need to start right now. But Anderson and Bows go further, pointing out that this target cannot be met with the array of modest carbon pricing or green-tech solutions usually advocated by big green groups. These measures will certainly help, to be sure, but they are simply not enough: a 10 per cent drop in emissions, year after year, is virtually unprecedented since we started powering our economies with coal. In fact, cuts above 1 per cent per year “have historically been associated only with economic recession or upheaval”, as the economist Nicholas Stern put it in his 2006 report for the British government.

Even after the Soviet Union collapsed, reductions of this duration and depth did not happen (the former Soviet countries experienced average annual reductions of roughly 5 per cent over a period of ten years). They did not happen after Wall Street crashed in 2008 (wealthy countries experienced about a 7 per cent drop between 2008 and 2009, but their CO2 emissions rebounded with gusto in 2010 and emissions in China and India had continued to rise). Only in the immediate aftermath of the great market crash of 1929 did the United States, for instance, see emissions drop for several consecutive years by more than 10 per cent annually, according to historical data from the Carbon Dioxide Information Analysis Centre. But that was the worst economic crisis of modern times.

If we are to avoid that kind of carnage while meeting our science-based emissions targets, carbon reduction must be managed carefully through what Anderson and Bows describe as “radical and immediate de-growth strategies in the US, EU and other wealthy nations”. Which is fine, except that we happen to have an economic system that fetishises GDP growth above all else, regardless of the human or ecological consequences, and in which the neoliberal political class has utterly abdicated its responsibility to manage anything (since the market is the invisible genius to which everything must be entrusted).

So what Anderson and Bows are really saying is that there is still time to avoid catastrophic warming, but not within the rules of capitalism as they are currently constructed. Which may be the best argument we have ever had for changing those rules.

In a 2012 essay that appeared in the influential scientific journal Nature Climate Change, Anderson and Bows laid down something of a gauntlet, accusing many of their fellow scientists of failing to come clean about the kind of changes that climate change demands of humanity. On this it is worth quoting the pair at length:

. . . in developing emission scenarios scientists repeatedly and severely underplay the implications of their analyses. When it comes to avoiding a 2°C rise, “impossible” is translated into “difficult but doable”, whereas “urgent and radical” emerge as “challenging” – all to appease the god of economics (or, more precisely, finance). For example, to avoid exceeding the maximum rate of emission reduction dictated by economists, “impossibly” early peaks in emissions are assumed, together with naive notions about “big” engineering and the deployment rates of low-carbon infrastructure. More disturbingly, as emissions budgets dwindle, so geoengineering is increasingly proposed to ensure that the diktat of economists remains unquestioned.

In other words, in order to appear reasonable within neoliberal economic circles, scientists have been dramatically soft-peddling the implications of their research. By August 2013, Anderson was willing to be even more blunt, writing that the boat had sailed on gradual change. “Perhaps at the time of the 1992 Earth Summit, or even at the turn of the millennium, 2°C levels of mitigation could have been achieved through significant evolutionary changes within the political and economic hegemony. But climate change is a cumulative issue! Now, in 2013, we in high-emitting (post-)industrial nations face a very different prospect. Our ongoing and collective carbon profligacy has squandered any opportunity for the ‘evolutionary change’ afforded by our earlier (and larger) 2°C carbon budget. Today, after two decades of bluff and lies, the remaining 2°C budget demands revolutionary changeto the political and economic hegemony” (his emphasis).

We probably shouldn’t be surprised that some climate scientists are a little spooked by the radical implications of even their own research. Most of them were just quietly doing their work measuring ice cores, running global climate models and studying ocean acidification, only to discover, as the Australian climate expert and author Clive Hamilton puts it, that they “were unwittingly destabilising the political and social order”.

But there are many people who are well aware of the revolutionary nature of climate science. It’s why some of the governments that decided to chuck their climate commitments in favour of digging up more carbon have had to find ever more thuggish ways to silence and intimidate their nations’ scientists. In Britain, this strategy is becoming more overt, with Ian Boyd, the chief scientific adviser at the Department for Environment, Food and Rural Affairs, writing recently that scientists should avoid “suggesting that policies are either right or wrong” and should express their views “by working with embedded advisers (such as myself), and by being the voice of reason, rather than dissent, in the public arena”.

If you want to know where this leads, check out what’s happening in Canada, where I live. The Conservative government of Stephen Harper has done such an effective job of gagging scientists and shutting down critical research projects that, in July 2012, a couple thousand scientists and supporters held a mock-funeral on Parliament Hill in Ottawa, mourning “the death of evidence”. Their placards said, “No Science, No Evidence, No Truth”.

But the truth is getting out anyway. The fact that the business-as-usual pursuit of profits and growth is destabilising life on earth is no longer something we need to read about in scientific journals. The early signs are unfolding before our eyes. And increasing numbers of us are responding accordingly: blockading fracking activity in Balcombe; interfering with Arctic drilling preparations in Russian waters (at tremendous personal cost); taking tar sands operators to court for violating indigenous sovereignty; and countless other acts of resistance large and small. In Brad Werner’s computer model, this is the “friction” needed to slow down the forces of destabilisation; the great climate campaigner Bill McKibben calls it the “antibodies” rising up to fight the planet’s “spiking fever”.

It’s not a revolution, but it’s a start. And it might just buy us enough time to figure out a way to live on this planet that is distinctly less f**ked.

Naomi Klein, the author of “The Shock Doctrine” and “No Logo”, is working on a book and a film about the revolutionary power of climate change. You call follow her on twitter@naomiaklein

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