A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

25 de março de 2013

Cortando caminhos



Viver era como correr em círculo num grande labirinto, esse gênero de labirinto para crianças que se vê em certos parques de jogos modernos; em cima de uma pedra no meio do labirinto há uma pedra brilhante; os miúdos chegam com as faces coradas, cheios de uma fé inabalável na honestidade do labirinto e começam a correr com a certeza de alcançarem dentro de pouco tempo o seu alvo. Corremos, corremos, e a vida passa, mas continuaremos a correr na convicção de que o mundo acabará por se mostrar generoso para quem correr sem desanimo  e quando por fim descobrimos que o labirinto só aparentemente tende para o ponto central, é tarde demais - de facto, o construtor do labirinto esmerou-se a desenhar várias pistas diferentes, das quais só uma conduz à pérola, de modo que é o acaso cego e não a justiça lúcida o que determina a sorte dos que correm. Descobrimos que gastamos todas as nossas forças a realizar um trabalho perfeitamente inútil, mas é muito tarde já para recuarmos. Por isso não é de espantar que os mais lúcidos saiam da pista e suprimam algumas voltas inúteis para atingirem o centro cortando caminho.


Não devemos esquecer que a imoralidade de um homem não poderá, nunca por nunca ser, competir com o malefício da ordem do mundo cujas engrenagens bem oleadas funcionam sempre na perfeição. Temos, por um lado, um desespero que se incendeia rapidamente assumindo formas cada vez menos equilibradas e, por outro lado, uma consciente imoralidade de reflexos metálicos e glaciais, orgulhosa do seu gelo e do seu fulgor.


Desde quando é que se tornou digno de louvor o fato de alguém possuir uma natureza de escravo? Depois de todos os símbolos do poder terem desaparecido, já não tinhas qualquer razão para obedecer, mas continuaste a fazê-lo. Que força misteriosa te impelia a obedecer às ordens de pessoas tão desgraçadas como tu, tão nuas e miseráveis como tu? Eras demasiado covarde para tentares fazer como os outros, para experimentares dizer uma vez que fosse ao capitão: vai buscar lenha, preciso me aquecer à fogueira. Não, tinhas descoberto uma outra solução; enquanto estavas ainda saciado, calculavas friamente que chegaria a hora em que a tua fome seria maior do que a dos outros todos. E então pensavas: em breve ficarei faminto, tornar-me-ei selvagem e sem escrúpulos, revoltar-me-ei, não abertamente, mas de modo dissimulado, contra estes terroristas. Com a cabeça fria, fazias projetos sobre a maneira como utilizarias a tua embriaguez, e é isso que é desprezível. Para que serve o desejo de revolta se te recusas a revoltar-te quando estás saciado?


Eu acredito que o inimigo natural do homem é a mega-organização porque ela lhe rouba a necessidade vital de se sentir responsável por seus semelhantes,restringindo sua possibilidades de mostrar solidariedade e amore, ao contrário, torna-o um agente de poder, que num instante pode ser direcionado contra outros, mas em última instância é direcionado contra si mesmo.


Vermos qualquer coisa de sólido em vez deste vazio pavoroso neste espaço, cuja extensão atroz nunca ousamos imaginar enquanto vivíamos no nosso buraco, é como um poço sem fundo; debruçamo-nos cada vez mais, a tal ponto que acabamos por cair, e uma vez caídos, continuamos a cair toda a vida sem termos outra coisa para viver além dessa queda sem fim, até ao dia em que morremos em plena queda sem jamais chegarmos a atingir fundo algum, porque somos aniquilados durante a nossa própria queda e devorados pelo vazio depois de termos desesperadamente tentando dar-lhes sentido esforçando-nos para chegar ao fundo.


(textos de Stig Dagerman)


11 de março de 2013

WikiLeaks, Anarchism and Technologies of Dissent

Curran, G.1 and Gibson, M.2 (2013), WikiLeaks, Anarchism and Technologies of Dissent. Antipode, 45: 294–314. doi: 10.1111/j.1467-8330.2012.01009.x

Author Information
1 School of Government and International Relations, Griffith University, Brisbane, Queensland, Australia; g.curran@griffith.edu.au
2 School of Political Science and International Studies, University of Queensland, Brisbane, Queensland, Australia; morgan.gibson@uqconnect.edu.au


Abstract: WikiLeaks is a controversial organisation that attracts polarised responses. This is not unexpected given its key objective of exposing the secrets and social control ambitions of the powerful. While its supporters laud its pursuit of an informational commons, its detractors condemn its antisocial character, its megalomania—and its anarchism. It is the latter that particularly interests us here. This paper treats the “charge” of anarchism seriously, however, giving it the analytical attention it warrants. It does this by first identifying those characteristics of the organisation that would render it anarchist, and then to conceptualise what this anarchism means. It highlights two important elements of the WikiLeaks story: the anarchical character of the technologies it utilises to foment its dissent; and the anarchical ethos of the organisation's radical politics. We conclude by also considering the tensions and contradictions in WikiLeaks that temper both its anarchism and its social change objectives.

Wikileaks: PSDB prometeu entregar o pré-sal aos norte-americanos


Telegrama enviado da embaixada americana para o Departamento de Estado dos Estados Unidos, vazado pelo Wikileaks, denuncia que Serra prometeu entregar o pré-sal às petroleiras do exterior.

“Eles são os profissionais e nós somos os amadores”, teria afirmado Patrícia Padral, diretora da americana Chevron no Brasil, sobre a lei proposta pelo governo. Segundo ela, o tucano José Serra teria prometido mudar as regras se fosse eleito presidente.

“Deixa esses caras (do PT) fazerem o que eles quiserem. As rodadas de licitações não vão acontecer, e aí nós vamos mostrar a todos que o modelo antigo funcionava… E nós mudaremos de volta”, teria dito o pré-candidato.

leia mais em Anonymous Brasil.com

5 de março de 2013

CARTA ABERTA DOS ESTUDANTES DE PÓS-GRADUAÇÃO DO INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL DA UFRJ AO PREFEITO EDUARDO PAES


Rio de Janeiro, 04 de março de 2013

CARTA ABERTA DOS ESTUDANTES DE PÓS-GRADUAÇÃO DO INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL DA UFRJ AO PREFEITO EDUARDO PAES

Os estudantes de pós-graduação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro vêm, por meio desta, manifestar repúdio à iniciativa da Prefeitura do Rio de Janeiro em comprar e distribuir o jogo Banco Imobiliário: Cidade Olímpica nas escolas municipais da cidade.

Baseando-nos no conjunto de leis que estabelecem as diretrizes gerais da educação e da política urbana no Brasil, concluímos que esta atitude foi orientada por interesses políticos e econômicos que não estão comprometidos com o amadurecimento crítico dos jovens cariocas.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação determina, em seu parágrafo segundo, que “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

O brinquedo em questão não contribui com a formação intelectual e cidadã dos educandos acerca do espaço urbano do município do Rio de Janeiro. Ao invés disso, o jogo praticamente naturaliza a competitividade para a acumulação e a especulação imobiliária quando, em sua dinâmica, gera expectativas de ganhos econômicos a partir de intervenções urbanísticas realizadas pelo Estado.

Afora isso, ele ainda exalta as obras realizadas pela atual gestão municipal, caracterizando-se como um instrumento de propaganda política, despreocupado em disseminar entre os discentes da rede municipal um entendimento das reais condições urbanas de moradia e do uso de equipamentos públicos nas diferentes localidades da cidade mencionadas pelo brinquedo.

Questionamo-nos: Por que em uma atividade lúdica sobre a cidade em que os alunos vivem, realizada nas dependências escolares, o princípio do “preparo para o exercício da cidadania” está confundido com princípios que orientam e regulam os mercados capitalistas? Por que não se desenvolveu um jogo que buscasse propagar princípios básicos do Estatuto das Cidades, já que esse “estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”?

O jogo estimula o educando a entender a cidade como um espaço exclusivamente mercantil. A “compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade” são apresentados de forma a impor uma ideologia baseada na competição e na acumulação individual de bens materiais.

A solidariedade humana e a atuação em prol do coletivo (como previsto no Estatuto das Cidades) são substituídas por valores individuais. A cidade é informada como sendo mero espaço de acumulação, na qual os problemas resumem-se aos meios para a valorização dos imóveis particulares. O “aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO) são, portanto, contrariados, considerando-se as diretrizes básicas da educação e da política urbana no Brasil.

Por fim, o brinquedo não estimula a criticidade e a competência na resolução de problemas reais no ambiente urbano brasileiro, como a desigualdade no acesso à infraestrutura social, aos serviços públicos e à moradia digna. Ele conforma um discurso ideológico que apresenta um modelo de cidade, resultante de um projeto político e econômico de um determinado grupo dominante, como natural e inquestionável aos educandos, ignorando os conflitos que se dão no espaço urbano em torno da luta por condições dignas e igualitárias de moradia e acesso aos equipamentos públicos de uso coletivo.

Isto posto, tendo como base os Artigos 32º e 35º da Lei de Diretrizes e Bases da educação, que dispõe, respectivamente, sobre a finalidade do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, e o Estatuto das Cidades, que estabelece as diretrizes gerais da política urbana, concluímos que a iniciativa de utilizar tal jogo nas escolas é inadequada e nociva para a formação cidadã dos educandos.

Assim, reafirmamos o nosso repúdio e indignação quanto à distribuição do jogo Banco Imobiliário: Cidade Olímpica nas escolas da cidade do Rio de Janeiro.

Assinado: Estudantes de pós-graduação do IPPUR/UFRJ

4 de março de 2013

I SEMINÁRIO INTERNACIONAL: TEMAS TRANSVERSAIS EM SOCIOLOGIA – ESTUDOS ANARQUISTAS


O I Seminário Internacional temas transversais em Sociologia, promovido e realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) e pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Anarquistas (GEPAn), da Universidade Federal da Paraíba, propondo a prática da transversalidade como princípio teórico-metodológico, tem por objetivo reunir professores e pesquisadores provenientes de universidades do país e do exterior em torno da temática dos Estudos Anarquistas. Leia mais...

Data: 25 a 27 de março de 2013.

Página do evento: http://www.cchla.ufpb.br/estudosanarquistas/
Contato: seminarioestudosanarquistas@gmail.com


Convidados

Adelaide Gonçalves, professora no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará. Coautora, entre outros, de: A Bibliografia Libertária. O Anarquismo em Língua Portuguesa (São Paulo, Imaginário, 2001); A Imprensa Libertária no Ceará (São Paulo, Imaginário, 2000).

Alberto Centurião, dramaturgo, ator e diretor; foi professor (1986-1993) do Curso de Artes Cênicas da Faculdade Martup, ministrando aulas de Encenação, Teatro Aplicado à Educação e História do Teatro; é associado do Centro de Cultura Social de São Paulo.

Daniel Colson, professor de Sociologia na Universidade Jean Monnet (Sainte Etienne, França) e pesquisador no Centre Max Weber (Centre national de la recherche scientifique). Autor, entre outros, de: Petit lexique philosophique de l’anarchisme : de Proudhon à Deleuze (LGF, 2001) e Trois essais de philosophie anarchiste. Islam – histoire – monadologie (Léo Scheer, 2004).

Jesús Sepúlveda, professor na Universidade do Oregon (EUA); entre seus ensaios, destacam-se: El jardín de las peculiaridades (Ediciones del Leopardo, 2002); Realidades multidimensionales (Cuarto Próprio, 2011).

John Zerzan, pesquisador independente, filósofo e escritor. Editor da revista americana Green Anarchy e autor, entre outros, de: Future Primitive and Other Essays (Autonomedia, New York, 1994); Against Civilization: Readings and Reflections (Feral House, Los Angeles, 2005); Future Primitive Revisited(Feral House, Los Angeles, 2012).

Loreley Garcia, professora associada e coordenadora do Programa de Pós Graduação em Sociologia (UFPB). Entre suas publicações, destaca-se: Sexo e Anarquia (2012), Meio Ambiente e Gênero ( Ed. Senac, 2012), Família como Armadilha (João Pessoa, Ed. Universitária, 2011), A pimenta e o sonho(João Pessoa, Ed. Universitária, 2008); e coorganizadora do “Dossiê Estudos Anarquistas Contemporâneos”, Revista Política & Trabalho nº 37 (João Pessoa, PPGS, 2012).

Nildo Avelino, professor no Departamento de Ciências Sociais e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, coordenador do Grupo de Estudos Anarquistas (GEPAn), pesquisador no Centre Max Weber. Autor de Anarquistas: ética e antologia de existências (Rio de Janeiro, Achiamé, 2004); e coorganizador do “Dossiê Estudos Anarquistas Contemporâneos”, Revista Política & Trabalho nº 37 (João Pessoa, PPGS, 2012).

Renata Pallottini, poetisa, dramaturga e ensaísta; foi professora na Escola de Comunicação e Artes da USP. Dentre seus trabalhos, destacam-se:Enquanto se vai morrer (1972), peça abordando o crime de tortura; Colônia Cecília (1987), adaptação para o teatro de uma das mais significativas experiências do anarquismo brasileiro. Estes e outros ensaios foram reunidos no volume Teatro completo (São Paulo, Editora Perspectiva, 2006, 888p).

Rodrigo Cruz Gagliano, anarquista, escreve sobre saúde como autogestão e resistência, amor livre e contra a sociologia e a linguística.

Semana contra o Apartheid de Israel



Ninth Annual Israeli Apartheid Week(February - March 2013)

We are excited to announce the upcoming 9th annual Israeli Apartheid Week (IAW) starting late February in Europe and moving to various countries through the month of March.

Israeli Apartheid Week (IAW) is an annual international series of events (including rallies, lectures, cultural performances, film screenings, multimedia displays and boycott of Israel actions) held in cities and campuses across the globe. Last year’s IAW was incredibly successful with over 215 cities participating worldwide.

IAW seeks to raise awareness about Israel's apartheid policies towards the Palestinians and to build support for the growing Boycott, Divestment, and Sanctions (BDS) against Israel campaign.

To accommodate various university schedules and cities from around the world, IAW will take place in slightly different weeks but all in the months of February and March. Here is a list of dates for regions confirmed so far:

Europe: February 25 - March 10
Palestine: 8-15 March
United States: March 4 - 8
Canada: March 4 - 8
South Africa: March 11 – 17


Da Redação do Brasil de Fato

O boicote a Israel e o apoio à luta da Palestina ganha novo fôlego internacional no mês de março. Em todo mundo será realizada a Semana contra o Apartheid de Israel (Israeli Apartheid Week – IAW). O evento acontece em várias cidades do mundo há nove anos e, segundo o site oficial, busca aumentar a consciência das pessoas sobre as políticas de apartheid em Israel contra os palestinos e construir apoios para a campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções contra Iseael (BDS).

1 de março de 2013

No hay Papa!

No hay Papa...

pouco

sempre
é pouco

quando
não é
demais


Arnaldo Antunes

Por que os fundamentalistas de livre mercado acreditam que 2013 será o melhor ano de todos


(*) Artigo públicado originalmente no Blog da Boitempo

A edição de natal da revista britânica The Spectator publicou um editorial chamado “Por que 2012 foi o melhor ano de todos?” (disponível aqui, em inglês). O texto criticava a ideia de que vivemos em “um mundo perigoso e cruel, em que as coisas estão ruins e ainda pioram”. Eis o parágrafo de abertura: “Talvez não pareça, mas 2012 foi o ano mais formidável na história mundial. Essa afirmação soa algo extravagante, mas pode ser corroborada pelos fatos. Nunca houve menos fome, menos doenças ou mais prosperidade. O ocidente permanece em um marasmo econômico, mas a maioria dos países em desenvolvimento está progredindo e as pessoas estão saindo da pobreza a uma velocidade jamais registrada. Felizmente o número de mortos pela guerra ou por doenças naturais também está baixo. Estamos vivendo na idade do ouro.”

Essa mesma ideia tem sido fomentada de modo sistemático em uma série de bestsellers, que vai de Rational Optimist, de Matt Ridley, a Better Angels of Our Nature, de Steven Pinker. Também há uma versão mais prática que se costuma ouvir na mídia, principalmente nos países fora da Europa: crise, que crise? Vejamos os chamados países do BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China –, ou países como Polônia, Coreia do Sul, Singapura, Peru, até mesmo vários Estados da África subsaariana: todos estão progredindo. Os perdedores são a Europa Ocidental e, até certo ponto, os Estados Unidos – então não estamos lidando com uma crise global, mas simplesmente com a mudança do progresso, que se afasta do Ocidente. Um símbolo poderoso dessa mudança não seria o fato de que, recentemente, muita gente de Portugal, país em crise profunda, está voltando para Moçambique e Angola, ex-colônias de Portugal, mas dessa vez como imigrantes econômicos, e não como colonizadores?

Até mesmo com respeito aos direitos humanos: a situação na China e na Rússia não é melhor agora do que há 50 anos? Descrever a crise existente como um fenômeno global, como dizem, é uma típica visão eurocentrista advinda dos esquerdistas que geralmente se orgulham de seu antieurocentrismo. Nossa “crise global”, na verdade, é um mero abalo local em uma história mais ampla do progresso geral.

Mas é preciso conter nossa alegria. A pergunta que deve ser feita é: se a Europa, sozinha, está em declínio gradual, o que está substituindo sua hegemonia? A resposta é: “o capitalismo de valores asiáticos” – o que, obviamente, não tem nada a ver com o povo asiático e tudo a ver com a tendência nítida e atual do capitalismo contemporâneo em limitar ou até mesmo suspender a democracia.

Essa tendência não contradiz de modo nenhum o tão celebrado progresso da humanidade – ela é sua característica imanente. Todos os pensadores radicais, de Marx aos conservadores inteligentes, eram obcecados por esta questão: qual é o preço do progresso? Marx era fascinado pelo capitalismo, pela produtividade sem precedentes que ele desencadeava; mas Marx também frisava que esse sucesso engendra antagonismos. Devemos fazer o mesmo hoje: ter em vista a face obscura do capitalismo global que fomenta revoltas.

As pessoas se rebelam não quando as coisas estão realmente ruins, mas quando suas expectativas são frustradas. A Revolução Francesa ocorreu apenas quando o rei e os nobres começaram a perder o poder; a revolta anticomunista de 1956 na Hungria eclodiu depois que Imre Nagy já era primeiro-ministro há dois anos, depois de debates (relativamente) livres entre os intelectuais; as pessoas se rebelaram no Egito em 2011 porque houve certo progresso econômico sob o governo de Mubarak, dando origem a uma classe de jovens instruídos que participavam da cultura digital universal. E é por isso que o pânico dos comunistas chineses faz sentido: porque, no geral, as pessoas hoje estão vivendo melhor do que há quarenta anos – os antagonismos sociais (entre os novos ricos e o resto) explodem e as expectativas são muito mais elevadas.

Eis o problema com o desenvolvimento e o progresso: são sempre desiguais, dão origem a novas instabilidades e antagonismos, geram novas expectativas que não podem ser correspondidas. No Egito, pouco antes da Primavera Árabe, a maioria vivia um pouco melhor do que antes, mas os padrões pelos quais mediam sua (in)satisfação eram muito mais altos.

Para não perder o elo entre progresso e instabilidade, é preciso realçar sempre como aquilo que, à primeira vista, parece ser a realização incompleta de um projeto social na verdade sinaliza sua limitação imanente. Existe uma história (apócrifa, talvez) sobre o economista keynesiano de esquerda John Galbraith: antes de uma viagem à URSS no final da década de 1950, ele escreveu para seu amigo anticomunista Sidney Hook: “Não se preocupe, não me deixarei seduzir pelos soviéticos e voltarei para casa dizendo que eles têm socialismo!”. Hook respondeu imediatamente: “Mas é isso que me preocupa – que você volte dizendo que a URSS não é socialista!”. O que Hook temia era a defesa ingênua da pureza do conceito: se as coisas derem errado com a construção de uma sociedade socialista, isso não invalida a ideia em si, mas significa apenas que não a executamos apropriadamente. Essa mesma ingenuidade não é detectada nos fundamentalistas de mercado da atualidade?

Durante um recente debate televisivo na França, quando o filósofo e economista francês Guy Sorman afirmou que a democracia e o capitalismo necessariamente andam juntos, não pude me negar fazer esta óbvia pergunta: “Mas e a China?”, ao que ele me repreendeu: “Na China não há capitalismo!” Para o pós-capitalista fanático Sorman, um país não é verdadeiramente capitalista se não for democrático, exatamente da mesma maneira que, para os comunistas democráticos, o stalinismo simplesmente não era uma forma autêntica de comunismo.

É assim que os atuais apologistas do mercado, em um sequestro ideológico sem precedentes, explicam a crise de 2008: não foi o fracasso do livre mercado que a provocou, mas sim a excessiva regulação estatal; o fato de que nossa economia de mercado não foi um verdadeiro Estado de bem-estar social, mas esteve, em vez disso, nas garras desse Estado. Quando rejeitamos as falhas do capitalismo de mercado como infortúnios acidentais, acabamos em um “progress(ism)o” que encara a solução como um uso mais “autêntico” e puro de uma noção, tentando assim apagar o fogo com gasolina.

Slavoj Zizek - Blog da Boitempo
Tradução: Roberto Bettoni