A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

4 de dezembro de 2010

Ex isto


Ex Isto, mais novo trabalho de Cao Guimarães,o filme explora, de maneira bem livre e experimental o já experimental Catatau de Paulo Leminski.



O catatau de linguagens de Paulo Leminski

http://unisinos.br/blog/ihu/2009/06/26/o-catatau-de-linguagens-de-paulo-leminski/

Por André Dick

O “romance-ideia” Catatau, que ocupou nove anos da vida de Paulo Leminski, de 1966 a 1974, foi lançado primeiramente em 1975. Do trio Noigandres (Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos), lembrado na dedicatória, Leminski não chegou a ver nenhum texto escrito em vida. Incomodado com isso, escreveu ele em suas cartas a Régis Bonvicino em Envie meu dicionário (mantenho o corte poético que Leminski dava às suas frases): “não sei bem dizer se eles gostaram ou não / enfim, o que é gostar? / tenho certeza q para o paladar weberiano-joãogilbertesco / de Augusto / o Catatau deve ter parecido bagunçado demais / irregular demais / entrópico demais / / Augusto nunca foi muito claro comigo acerca do q ele achou do / Catatau produto final / o saque cartésio x trópico a anedota eu sei q ele adora / / décio se refere ao Catatau falando em ‘monolito’, ‘é uma boa’, / coisas assim / / haroldo, de haroldo nunca ouvi nem uma palavra”. Foi justamente Haroldo de Campos quem escreveu sobre Catatau no ano da morte do autor, no texto “Uma leminskíada barrocodélica”. Contudo, Leminski morreu antes de ele ser publicado. Décio, por sua vez, como coordenador da Fundação Cultural de Curitiba, abriu espaço para a pesquisa que terminaria na visão crítica e anotada de Catatau lançada pela Travessa dos Editores em 2004.

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A expectativa de Leminski em relação à opinião dos poetas concretos caracterizou boa parte de sua trajetória. Catatau revela um encontro entre as ideias deles (mesmo que não possa ser entendido à luz do plano-piloto) e a Tropicália (Leminski, a princípio, dedicaria o livro a Caetano Veloso e a Gilberto Gil). Ou seja, o cartesianismo é visto como pano-de-fundo para um movimento de contracultura (embora seja difícil negar que haja nesta, como em qualquer transformação cultural, um pensamento pré-programado). Lembremos também que Caetano, em 1981, lançou a música “Outras palavras”, uma composição de influência joyciana e também leminskiana – já que o cantor e o poeta conviviam com frequência naquele período (mesmo que Caetano não o cite em nenhum momento em Verdade tropical). Essas influências mostravam os caminhos de Leminski, dividido entre e o erudito e o popular.
Catatau, ao mesmo tempo, e não há nada de novo nessa consideração, dialoga criticamente com obras experimentais, como Finnegans wake e Ulysses, de Joyce, Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e Galáxias, de Haroldo de Campos. Sem dúvida, as palavras-montagem e o clima onírico na obra de Leminski dialogam com as criações joycianas. Também há traços de Guimarães Rosa. Em comparação à obra máxima do escritor mineiro, no entanto, como respondeu Leminski numa entrevista à revista Quem (1978), Catatau tenta ir além, chegando aos limites da “ininteligibilidade” e avançando nos meandros do Finnegans wake, que, para o teórico francês Michel Butor, poderia ser lido a partir de qualquer página. Considerar a obra uma diluição ou uma glosa da de Haroldo de Campos já não parece tão verdadeiro. Não que Galáxias não tenha servido de forte inspiração para Leminski – serviu. Mas Catatau, embora não pareça, é um livro que apresenta, ao contrário da multiplicidade barroca de Haroldo, uma ideia (fantasiosa) básica: a de René Descartes (latinizado para Renatus Cartesius, como era de praxe na época) ter parado em terras brasileiras, mais exatamente na Recife holandesa de Maurício de Nassau, estando à espera do polaco Articewski, estrategista do exército da Companhia das Índias Ocidentais, para solucionar suas dúvidas, despertadas pela febre diante do universo tropical, de paisagens em forma de pesadelo, línguas e linguagens excessivas para seu racionalismo. À espera dele, Cartesius caminha pelo parque de Vrijburg, construído por Nassau em Recife.
Catatau parece apresentar uma ligação, por vezes alegórica, com passagens significativas da trajetória de Leminski, que era professor de história, com tendência a Borges. Foi numa aula de história que, en passant, Leminski teve a ideia de imaginar que, se Maurício de Nassau veio a Recife, Pernambuco, pode ter vindo junto, em sua comitiva, o filosófo René Descartes, que pertencia ao seu círculo. Isso nunca aconteceu. Ou seja, a história de Leminski é implausível do ponto de vista histórico. A ideia anotada durante a aula acabou virando um conto chamado Descartes com lentes, que Leminski enviou ao 1º Concurso de Contos do Paraná. Por uma confusão na hora de contar os votos, perdeu (mas Fausto Cunha, representante do júri, escreveria a Leminski, em 1987, dizendo que o melhor conto havia sido o dele). Como escreve Leminski, no texto “Descordenadas artesianas”, que encerra Catatau e ajuda a explicá-lo: “Descartes com lentes era um esquema: trazia em si um princípio de crescimento, uma lei e uma necessidade de expansão, como uma alegoria barroca”. Alegoria barroca, como a vida de Leminski, que misturava inúmeras linguagens. Ele lidou com uma quantidade considerável de leituras, de experimentações, de identidades: estudou no Mosteiro de São Bento (onde se aperfeiçoou no latim, que utilizaria em sua tradução, em 1985, de Satyricon); largou duas faculdades, de Letras e de Direito; viajou de carona, como um beatnik, para a Semana de Poesia de Vanguarda, em Minas Gerais, onde conheceu os poetas concretos; trabalhou como professor em cursinhos, para depois viver como um hippie no Rio de Janeiro; e, ao voltar para Curitiba, ingressou na publicidade, foi professor de judô e um representante da contracultura de Curitiba, não se ligando, contudo, às linhas básicas de certa poesia marginal mais conhecida (a de Cacaso). De um autor com essas características e máscaras (personae) não se poderia esperar certamente um romance linear: e dar como subtítulo de Catatau a definição de “romance-ideia” é oferecer um resumo direto ao leitor – mesmo que ele tenha escrito na nota ao livro, “Repugnatio benevolentiae”: “Me nego a ministrar clareiras para a inteligência deste catatau que, por oito anos, agora, passou muito bem sem mapas. Virem-se”. O recado parece ser de que o leitor desista de procurar uma narrativa em seu livro, mas que busque “ideias”, “linguagens”, “insights”, misturas de estilos. Catatau é composto por imagens características de “alegoria barroca”, como ele escreve em “Descordenadas artesianas”, dentro de uma “estética do desperdício”, conforme Severo Sarduy, nunca buscando algum centro, deixando o fluxo aberto à experimentação, através de uma sonoridade própria da tradição galego-portuguesa). O fluxo é contínuo ao longo das mais de 200 páginas sem parágrafos, sem personagens bem delineados, tramas internas ou sequências lineares. O mote inicial é apenas um motivo para Leminski anarquizar com a linguagem. Como escrevia Leminski, no seu ensaio “Anti-projeto à poesia no Brasil”, publicado na revista Convivium (1965): “A prosa poética é a corrupção da prosa: mais vale a poesia prosaica. Poesia prosaica, vale dizer, a tudo aberta, compreensiva. Os fazedores de poesia prosaica são os maiores inventores: Dante (…), Tristan Corbière (…), Ezra Pound. A adoção-compreensão da poesia prosaica era um passo à frente”.

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Em Catatau, em meio a um aglomerado de linguagens configuradas pela “poesia prosaica”, encontra-se a admiração de Leminski pela mitologia grega, que antecede, afinal, o racionalismo cartesiano, onde ainda se separavam os deuses dos comuns mortais. A figura de Narciso, que ganharia relevo em seu livro Metaformose, permeia Catatau (as citações são muitas, mas talvez colaborem na interpretação do livro): “Narciso contempla narciso, no olho mesmo da água. Perdido em si, só para aí se dirige. Reflete e fica a vastidão, vidro de pé, perante vidro, espelho ante espelho, nada a nada, ninguém olhando-se a vácuo”; “Olhos. Espelhos d’alma, Narciso está?”; Amores de Narciso: preciso: sair do espelho. Narciso, o ausente no lugar”; “No espelho triplo, se repete o eco e diz de novo que era assim”; “Alma, entra dentro de ti mesma, o alvo não passa de um espelho”, “Meu narcisismo anarquiza a alta conta, elevada estima e grande monta de consideração: uns catipiripapos, e a criatura fica parecida com a caricatura”. E define: “Anarquizo Narciso”. Parecem trechos saídos diretamente de Metaformose, escrito anos depois e deixado no fundo de uma caixa dada por Leminski à amiga e poeta Josely Vianna Baptista.
Em Catatau também estão o labirinto do Minotauro e Ariadne, sereias, Aquiles e a tartaruga, Zenão, Medusa, centauros, persas, Dédalos, Vênus, Hércules, Atenas, e Tróia; citações a filósofos (Sócrates, Platão, Aristóteles, obviamente Descartes). São traços de um universo filosófico e mitológico que se faria presente também em Agora é que são elas (1984), um novo fracasso do autor, no qual Leminski dizia trabalhar a ideia da impossibilidade de escrever um romance – quando a impossibilidade de escrever um romance linear já estava em Catatau.
A impossibilidade de escrever um romance linear vai certamente contra a figura de Descartes num livro como Discurso do método. Leminski desconstrói o método de Descartes, o mesmo que faria com as funções do conto nas teorias do russo Propp, em seu romance dos anos 80, zombando de sua filosofia (“Sou louco logo sou”), mas, ao mesmo tempo, o utilizando como mote para contestar a linguagem ditatorial de seu tempo. Como Cartesius iria descrever a razão lógica, que é filha da democracia, num país dominado pela ditadura (esquecendo-se aqui que a narrativa se passa na Recife holandesa, e se lembrando que Leminski menciona muitas vezes em Catatau a cidade de Brasília, arquitetada por Niemeyer)?
A falta de lógica se adensa quando surge o monstro Occam, para descontrolar ainda mais a linguagem do confuso Cartesius. Além disso, espalha referências à cultura polonesa pelo texto – afinal trata-se da espera de um matemático como Descartes por um polaco, Artiscewski (grafado de outras formas ao longo do livro). Mas Leminski está mais para as dúvidas de Descartes do que para a embriaguez do polonês em questão. Como Descartes faz em seu Discurso do método, Leminski, no decorrer de Catatau, fala de sua pretensa trajetória intelectual, desde a infância: “Letras me nutriram desde a infância” – como escreve Descartes em seu livro –, de impressões sobre bichos, máquinas e a sobre a função do corpo. Leminski não é Descartes, mas tem muito dele, tanto que se sente à vontade para zombar de seu trabalho, pois zomba de si mesmo. Afinal, se ele foi tão influenciado pela poesia concreta, ele possivelmente tinha uma mente em parte cartesiana. Com isso, se percebe em Catatau, como um contraponto à filosofia de Descartes, que tinha como objetivo discutir as questões metafísicas. Leminski, ex-seminarista do mosteiro de São Bento, se pergunta: “Como pode haver mais de um deus se sou só um eu, um sou?”. Há momentos que parecem recriados (e não transpostos) a partir de sua vivência no mosteiro de São Bento: “O pastor carrega suas ovelhas por dentro, interioriza o rebanho, assimila a páscoa e desaparecem pastor e rebanho”; “Naveguei com sucesso entre a higiene e o batismo, entre o catecismo e o ceticismo, a idolatria e a iconoclastia”; “Mosteiro comigo às costas, o caramujo cara de monge”. E há referência ao fato de a flora e a fauna do Brasil parecerem, ao olhar europeu, uma espécie de paraíso: “Dei dez pontos do pomo de Adão ao umbigo de não sei quem”; “Dor, no éden. Ser, em casa. Voz, debaixo dágua alguma”.

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O mais interessante é que, como percebe Flora Süssekind, no ensaio “Hagiografias”, Leminski foi um dos poetas que mais se utilizaram de uma temática religiosa, algo bastante raro na literatura brasileira. Versos como “um deus também é o vento / só se vê nos seus efeitos / árvores em pânico / bandeiras / água trêmula / navios a zarpar”, até pedir: “me ensina / a sofrer sem ser visto” e consagrar: “a este deus / que levanta a poeira dos caminhos / os levando a voar / consagro este suspiro / / nele cresça / até virar vendaval” mostram sua inclinação a uma subjetividade baseada na formação religiosa.
A insegurança humana, misturada à religiosidade de Leminski, o leva a escrever os seguintes versos em La vie en close, desconfiando de si mesmo: “pedirem um milagre / nem pisco / transformo água em água / e risco em risco”; “desmantelar / a máquina do amor / peça por peça / onde luzia flor e flor / não deixar nem promessa / isto sim eu faria / se pudesse / transformar em pedra fria / minha prece”. Ou em “não são / são não / rogai por nós / para que não / sejamos senão”. Temos também, em O ex-estranho, aquela poética religiosa de ex-monge beneditino, que Leminski concentra no fundo de sua obra, percebida, com mais destaque, em “Sacro lavoro”, no qual ele lembra: “as mãos que escrevem isto / um dia iam ser de sacerdote / transformando o pão e o vinho forte / na carne e sangue de Cristo / / hoje transformam palavras / num misto entre o óbvio e o nunca visto”. Num outro poema do livro, “Tamanho momento”, diz: “nossa senhora da luz / ouro do rio de belém / que seja eterno este dia / enquanto a sombra não vem” e “nunca sei ao certo / se sou um menino de dúvidas / ou um homem de fé / / certezas o vento leva / só dúvidas continuam de pé”. No entanto, resta a esperança de “Sintonia para pressa e presságio”, de La vie en close: “Eis a voz, eis o deus, eis fala, / eis que a luz se acendeu na casa / e não cabe mais na sala”. Em “Profissão de febre”: “quando chove, / eu chovo, / faz sol, / eu faço, / de noite, / anoiteço, / tem deus, / eu rezo, / não tem, / esqueço”.
Leminski desconfia de um deus que possa salvá-lo, mas é visível que alguns de seus poemas são teológicos: eles falam de um deus que o poeta quer tornar visível, mesmo impossibilitado, chegando a um bom humor, em Distraídos venceremos: “eu ontem tive a impressão / que deus quis falar comigo / não lhe dei ouvidos / / quem sou eu para falar com deus / ele que cuide dos seus assuntos / eu cuido dos meus”. Os poemas de Leminski são densos e comovem, como a biografia que ele fez de Jesus Cristo, vendo essa figura religiosa antes de tudo como um poeta. Entre o Colégio São Bento e a fuga e a rebeldia, Leminski se situa no paradoxo da própria dúvida. Hegel afirmava que a religião tinha algo sublime: ela consiste em “não permanecer presa a nenhuma intuição ou deleite passageiro, embora anseie por beleza e bem-aventurança eternas”. O que ela procura é, em suma, “o absoluto e o eterno”. Leminski desconfia do absoluto e do eterno – mas sabe que no seu subjetivo a ordem cresce em sua escrita, precária e passageira.
Parece-me inadequado, com tudo isso, as referências mito-filosóficas e religiosas, ver Catatau apenas como um duelo entre o erudito (como as citações em latim, o discurso religioso, o pensamento filosófico matemático) e o popular (as brincadeiras com os provérbios). Isso dá a impressão que o livro é denso por um lado e rasteiro por outro, ou que é uma espécie de briga entre o erudito e o popular, o que não é o caso: Leminski mantém o ritmo e a consciência de linguagem ao longo de toda a obra, não deixando se impregnar demais pelo rebuscamento ou adotando uma espécie de escrita automática, nem caindo em gracejos – a brincadeira com provérbios, por exemplo, não tira a densidade do texto; os provérbios são subvertidos em prol de um experimentalismo da linguagem de Descartes. Se algumas vezes esse programa acaba cansando em alguns momentos, a linguagem consegue ser sempre ousada, com a sintaxe que se destacaria nos autores neobarrocos, com delírio da imaginação. Leminski mantém sua obra aberta. A linguagem de Descartes, atingida por Occam, por filosofias religiosas, por sonoridades plurilíngues, é afastada do racionalismo, da matemática cerebral e se aproxima de uma espécie de “sonho da razão” de Goya.

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