A Caverna
Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes
Jean Louis Battre, 2010
 
  
 
 
 
          
        
          
        
Instruções para compor um folk
Na
 Teodoro, me parece, nenhum momento é insignificante o bastante, como 
queríamos crer. A qualquer instante, entre vendedores de doces ou filmes
 pirata & algum grupo fazendo piadas com a nova estrela do futebol 
paulista, encontramos aquela garota com olhos cheios d’água carregando 
um pequeno vaso com flores da Nicarágua.  Então ficamos em dúvida se 
deixamos na secura do ar aquela memória triste ou se a encharcamos com 
cerveja gelada – naquela lanchonete que vende os salgadinhos mais 
vagabundos da cidade, mas tem as mesas limpas & três ou quatro belas
 reproduções de Rothko. Inevitável não lembrar daqueles folks que falam 
dessa vida maltratada que levamos neste planeta. Aliás, para retomar 
aquele assunto sobre a composição de um folk, penso que, para compor um,
 precisamos do repouso pós-degustação das inflorescências femininas do 
cânhamo, da Berenice das insônias de Murilo, de rimar kiddin’ you com 
didn’t you. Precisamos de oferendas & arranjos florais. Precisamos 
nos imaginar Jean-Luc Godard vendendo, em um qualquer sebo parisiense, 
os livros autografados por Valéry roubados ao valerianum (a ilustre 
biblioteca de seu avô). O tema é tão antigo quanto um sorriso, homens 
decapitados & ervas daninhas. Tão conhecido quanto a caganeira de 
Pedro I, a gagueira de George VI & a demência do Führer. (Aliás, 
rimar esfíncter com Hitler daria uma boa fluidez à composição, além de 
funcionar como uma poderosa alegoria). Antes de cruzar a avenida & 
entrar na Oscar Freire, imagino que as pernas nuas da mulher amada 
poderão dar um perfume acústico à melodia. Mas, sabe que é estranho 
compor um folk? Há uma certa urgência, um desmentir, uma espécie de 
não-lugar fantasmagórico. Veja só: o que terá nomeado primeiro o 
primeiro poeta? Ao percorrer com as retinas alumbradas Vieira da Silva 
conseguiremos desadoecer a lâmina que insiste renomear nossa jugular? 
Que ansiedade porta um poliedro de fogo quando sabemos que poliedros de 
fogo não nos servem mais como inspiração? E, nesta praia de ossos, que 
inspiração? Não tendo como responder a isso, é necessário sujar os dedos
 de sangue. Não se deve ter medo das metáforas, já que a apregoada 
“morte da metáfora” é já, por si, uma metáfora. Se isso não for 
possível, talvez um sorvete de frutas vermelhas que, derretendo, escorra
 sua calda açucarada sobre a mão esquerda num domingo de sol enquanto se
 diz à namorada que nem os mais altos & complexos malabarismos da 
mente valem uma violeta. Mas, para ser mais preciso, insisto, seria mais
 bacana sangue. Ser duro (às vezes, cruel). Saber que a tristeza é a 
primeira flor do tempo, que nela é que, queiramos ou não, viveremos 
intensamente o suicídio de nossos desejos. Um a um. Então a morte 
novamente dará as cartas. Isso nos dissolverá. Um carinho ausente – por 
pura escolha. É muito válido, para compor um folk, uma nova reunião. 
& outra. Mais outra. De versos, de beijos, de amigos, de nãos, de 
figurinhas da Copa da Espanha. Ter a perfeita noção de que as pessoas a 
quem se destina o folk estarão interessadas exclusivamente em situações 
inesquecíveis. Pois quem já tocou a pele de seda & vidro moído da 
vida sabe que só o alumbramento vale o vexame de definhar-se, dia após 
dia, frente às contorções de tantas datas. Comprar certas brigas, 
respeitando sempre aquilo que nos eleva a nós mesmos & que, por 
isso, nos leva leves aos outros. Por exemplo: não precisa ser pró-Cuba 
nem anti-Cuba para entender que esta noite milhões de crianças dormirão 
nas ruas do mundo etc. Um folk, meu caro amigo, é um silêncio brutal, é 
um hesitar, evitando relações com gente de temperamento sórdido, quando 
os vermes da alta patifaria endinheirada dizem que “o que fazemos não 
presta, porque andamos com uma roupa sovada & o colarinho sujo”. 
Sim, eu sei éramos o tipo de garotos que não costumavam chorar, nem 
mesmo sobre pesados invernos onde cai pesada, dentro da sessão da tarde,
 a solidão. Creio que, para compor um folk, não é preciso estudar numa 
escola rural & depois ingressar num seminário. Não é preciso 
trabalhar como tipógrafo, nem ter morado em Petrogrado. Não são 
necessários arranjos florais ou oferendas, nem padrinhos ou projetos 
aprovados pelo ministério da cultura. Conversar com Mársias sobre 
possíveis parcerias, sim – afinal, as flautas! Não é preciso devorar a 
comida siciliana, mas vale muito a pena comer as mil cortesãs de 
Corinto. Não é preciso rodar as ruas & vielas do Rio, como um zumbi,
 trincando de bêbado, à caça de Luísa Porto, nem é preciso emular as 
extravagâncias de William Cannastra. Lembra-se quando falei sobre o 
sangue? Pois então, levemos Iessiênin para passear pela Praça da 
República: Adeus, amigo, sem mãos nem palavras etc., imagine um poetic 
gore movie, imagine as curvas no rosto da garota Podolski quando 
caligrafava & desenhava O país onde tudo é permitido. Para compor um
 folk, turvos de amores & horrores, observando andorinhas chocando 
balas de fuzil, nós, indecisos pobres ossos de nós mesmos, na arena 
dessa desgraça portátil, tendo ou não colhido tulipas negras ou dálias 
azuis, devemos compreender que o horror não nos divide, o horror nos 
cerca. Observar a precisão astronômica dos moai do Pacífico Sul & 
ter em mente que todas as regras de construção só são válidas para os 
poemas que são cópias de outros poemas. Por isso: caminhar, caminhar – 
sabendo que, quando a ave sangria cantar três mil vezes, entraremos no 
império do transe & do delírio, onde, diria um carbonário, o planeta
 entra na órbita do coração.
Fabiano Calixto
Do livro 
Nominata morfina
 
 
 
          
      
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Nenhum comentário:
Postar um comentário