A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010
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19 de janeiro de 2017

Então

vocês que fuzilaram garcía lorca
& cozinham crianças nas nuvens dos sacrifícios
vocês que destroçaram caminhos
& continuam a fabricar extermínios
nas tempestades de armas nas arquiteturas de amônia
nos verbos dos genocídios

vocês que chacinaram noites & dias
com terremotos de mil vírus explosivos
& se persignam ao moerem ossos vivos
vocês que rapinam o ouro nos úteros do orvalho
vocês que trancados nos salões sombrios
dispõem das tripas da vida & dos demônios da morte
impermeáveis aos gritos por todos os tímpanos moídos

vocês que trucidaram os ventos serão cobertos pela praga
dos bichos torrados nas florestas de cálcio
convulsões de oceanos purulentos
& rios empedrados nas fontes que urinam
vaginas sem suco & sêmens se esvaecendo
púrpuros berros de suicidas ardendo
abismos & mandíbulas trituradas nas invernias
vocês que serão os últimos consumidos
nas malhas em febre das cidades que agonizam
vocês que assistirão em transe o desfile das terríveis profecias
por sobre um carnaval de navalhas & máscaras vazias
vocês que uivarão vomitando 
catedrais de miasmas das radioativas neblinas 
vocês apodrecidos sem lamento 
vocês rasgaram as primaveras 
vocês assassinaram os ventos

Afonso Henriques Neto

15 de janeiro de 2015

O procedimento do nômade



O procedimento do nômade - o sem teto, o camelô, o favelado, o migrante - é sempre tático. Ele não dispõe de dispositivos de planejamento e coerção: sua ação é ditada pelas necessidades de sobrevivência individual. Ele instrumentaliza tudo o que está ao seu alcance: o morador de rua usa a torneira do posto de gasolina, o camelô toma para si um trecho da calçada, o favelado ocupa áreas junto a autopistas e viadutos e faz ligações clandestinas de luz. Toda a infra-estrutura urbana vai sendo potencialmente requisitada e redirecionada para outros usos (...) O nômade está sempre produzindo aramas, criando dispositivos de guerra. São instrumentos e equipamentos de sobrevivência na cidade global (...) As zonas, espaços e objetos que os imigrantes inventam são territórios de jogo e ironia, onde o estranhamento opera para criar linguagem e desenhar um novo lugar. A cidade é um espaço compartimentalizado pelo capital e o trabalho. Mas movimentos colocam continuamente em xeque essas repartições rígidas. Processos fluidos que vazam através dos limites reconfigurando de outro modo as situações. As populações sem moradia, os que se dedicam ao comércio informal e os catadores de papel são agentes destes fluxos, da maré do indiferenciado que corrói as estruturas urbanas estabelecidas (...) Os nômades metropolitanos operam uma máquina de guerra contras as políticas urbanas e os empreendimentos imobiliários que determinam a estruturação excludente da cidade (...) Os percursos dos sem lugar estabelecem um outro modo de organizar e perceber o espaço(...) Eles tomam o território através de densificações e intensificações (...) Aparelhos de captura são construídos para se apropriarem das máquinas de guerra. Tomada pelo Estado, a máquina de guerra é dirigida contra os nômades. (...) é o modelo da fortaleza: cada vez que há operação de desestabilização, que um novo potencial nomádico aparece, a resposta do aparelho consiste em estriar o espaço, contra tudo o que ameaça invadir ou transbordá-lo. Daí as cercas, os condomínios, as áreas restritas para o comércio informal, as práticas de remoção das populações sem moradia. A arquitetura é, em geral, um aparelho de captura.

Nelson Brissac Peixoto

6 de novembro de 2014

Discurso

nada existe, celebremos
a alegria.
o nascer e o morrer
não nos acontece.
só para os outros
somos espetáculo.
há vento em excesso
pelos buracos da linguagem.
um jardim muito espesso
labirinto de idéias
flocos de imagens
sobre natais de fumaça.
nada existe, celebremos
aventura.
tudo se instala
o sentido esvaziou-se do oceano
praias da totalidade.
o que não existe
celebra a concretude.
é grave a pedra
a pele desgarrada
o esqueleto do silêncio.
lábios se tocam
em alegria
beijo seco
jardim de séculos.
quase nenhuma fala
ninguém
mas os caminhos.
recordemos:
infância veloz
olfato de espantos
estátua ardente
arfando
no sonho.
apenas não há
ninguém
mas os espaços
(apenas o já nascido
previamente ido).
infinito buraco sem tempo
celebração.

Affonso Henriques Neto