Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não correm, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.
Julio Cortázar
A Caverna
Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes
Jean Louis Battre, 2010
Jean Louis Battre, 2010
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26 de outubro de 2016
20 de outubro de 2016
Quase ninguém vai tirar você do sério
O cavalo relincha, o cachorro late,
a soma dos ângulos de um triângulo
é igual a dois retos,
a sopa, a consciência, a alcachofra, depois
do dois, o três; depois de hoje, amanhã
quase ninguém vai tirar você do sério.
Quase ninguém nem nada, porque
como levar a sério essas pulsações
em que o sonho é acesso, esses olhares
de insuportável lucidez num bonde
isso que diz agora: Foge,
mas afinal, ao fim e ao cabo, não passava
de um gomo de laranja
explodindo na boca?
Como levar à sério que uma porta
dê na tristeza se o arquiteto
a abriu para o corredor, que uns seios
desenhem paralelos seus jardins
quando é hora de ir para o trabalho?
Impossível negar as evidências
diz o doutor e diz bem, inútil
tirar do sério o honesto almanaque,
São Rulfo, Santa Tecla, São Fermim,
a Assunção,
o cavalo relincha, o cachorro late,
quase ninguém lhe oferece numa esquina
um pedacinho solto de bicicleta ou pião,
quase nunca é verão em pleno inverno
por razões de lógica estritamente polida
é preciso ser o que se é ou não ser nada, e nada
vai tirar você do sério, ninguém
vai tirar, e se um cavalo late
nunca o saberemos, porque
os cavalos não latem.
Bastaria um só isso, um não quero,
para começar o dia de outra maneira,
ferver o rádio junto com as batatas
e dar a cada menino um jacaré
para que as escolas cheirem a medo,
levar os mortos para tomarem ar,
enfiar as mitras na maionese,
atividades subversivas, é claro,
mas outras coisas há: fuzis
correm pelas trilhas, a América do Sul
cresce em sua selva rumo à aurora,
de tanto arroz banhado em sangue
nascerá outra maneira de ser homem.
Menciono apenas estas poucas coisas,
tiro do sério uns e outros
que ainda acreditam na poesia
que leva a sério seu vocabulário
cheio de compromissos com o abstrato.
(A soma dos ângulos de um triângulo.)
((Os cavalos não latem.))
(((Diz o doutor, e diz bem.)))
a soma dos ângulos de um triângulo
é igual a dois retos,
a sopa, a consciência, a alcachofra, depois
do dois, o três; depois de hoje, amanhã
quase ninguém vai tirar você do sério.
Quase ninguém nem nada, porque
como levar a sério essas pulsações
em que o sonho é acesso, esses olhares
de insuportável lucidez num bonde
isso que diz agora: Foge,
mas afinal, ao fim e ao cabo, não passava
de um gomo de laranja
explodindo na boca?
Como levar à sério que uma porta
dê na tristeza se o arquiteto
a abriu para o corredor, que uns seios
desenhem paralelos seus jardins
quando é hora de ir para o trabalho?
Impossível negar as evidências
diz o doutor e diz bem, inútil
tirar do sério o honesto almanaque,
São Rulfo, Santa Tecla, São Fermim,
a Assunção,
o cavalo relincha, o cachorro late,
quase ninguém lhe oferece numa esquina
um pedacinho solto de bicicleta ou pião,
quase nunca é verão em pleno inverno
por razões de lógica estritamente polida
é preciso ser o que se é ou não ser nada, e nada
vai tirar você do sério, ninguém
vai tirar, e se um cavalo late
nunca o saberemos, porque
os cavalos não latem.
Bastaria um só isso, um não quero,
para começar o dia de outra maneira,
ferver o rádio junto com as batatas
e dar a cada menino um jacaré
para que as escolas cheirem a medo,
levar os mortos para tomarem ar,
enfiar as mitras na maionese,
atividades subversivas, é claro,
mas outras coisas há: fuzis
correm pelas trilhas, a América do Sul
cresce em sua selva rumo à aurora,
de tanto arroz banhado em sangue
nascerá outra maneira de ser homem.
Menciono apenas estas poucas coisas,
tiro do sério uns e outros
que ainda acreditam na poesia
que leva a sério seu vocabulário
cheio de compromissos com o abstrato.
(A soma dos ângulos de um triângulo.)
((Os cavalos não latem.))
(((Diz o doutor, e diz bem.)))
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