A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010
Mostrando postagens com marcador Slavoj Zizek. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Slavoj Zizek. Mostrar todas as postagens

1 de abril de 2014

Žižek: O que a Europa deveria aprender com a Ucrânia

Publicado em |
14.03.31_Zizek_Maidan_2



Devemos olhar para as próximas eleições na Europa sob o pano de fundo dos recentes acontecimentos na Ucrânia. Os protestos que derrubaram Yanukovich e sua gangue foram desencadeados pela opção do governo por priorizar sua relação com a Rússia sobre a integração com a União Européia. Como era de se esperar, muitos esquerdistas reagiram à noticia dos protestos massivos com seu habitual tratamento paternalista e racista dos pobres ucranianos: o quão iludidos estão, ainda idealizando a Europa, incapazes de ver que ela está em declínio, e que se juntar à União Européia só fará da Ucrânia uma colônia econômica da Europa Ocidental, eventualmente levada a posição equivalente à da Grécia… O que esses esquerdistas ignoram é que os ucranianos estão longe de estarem cegos sobre a realidade da UE: plenamente conscientes de seus problemas e disparidades, sua mensagem era simplesmente a de que sua própria situação é muito pior. Os problemas da Europa são ainda problemas de rico – lembre que, apesar do terrível predicamento da Grécia, refugiados africanos ainda estão desembarcando lá en masse, fazendo a ira de patriotas direitistas.

Mas muito mais importante é a pergunta: o que representa a “Europa” a que se referem os manifestantes? Ela não pode ser reduzida a uma única visão: abarca o escopo completo, desde elementos nacionalistas e inclusive fascistas até a ideia daquilo que Étienne Balibar chama de égaliberté – “liberdade-na-igualdade”, a contribuição singular da Europa ao imaginário político global, mesmo que seja hoje mais e mais traída pelas instituições europeias –, e ainda, entre esses dois pólos, a ingênua confiança no capitalismo liberal-democrático. O que a Europa deveria ver nos protestos ucranianos é sua própria imagem, no que tem de melhor e de pior.

O nacionalismo ucraniano de direita é parte de uma renovada onda populista anti-imigrante que se apresenta como a defesa da Europa. O perigo nessa nova direita foi claramente percebida um século atrás por G.K Chesterton que, em seu Ortodoxia, expôs o impasse fundamental dos críticos da religião: “Homens que começam a combater a Igreja em virtude da liberdade e da humanidade acabam jogando fora a liberdade e a humanidade só para poderem com isso combater a Igreja.”
O mesmo não vale para os próprios porta-vozes da religião? Quantos defensores fanáticos da religião que começaram atacando ferozmente a cultura contemporânea secular não acabaram traindo toda e qualquer experiência religiosa significativa? E o mesmo não vale também para a recente onda de defensores da Europa contra a ameaça imigrante? Em seu zelo em proteger o legado cristão, os novos fanáticos estão dispostos a traírem o verdadeiro coração desse legado.

Então o que fazer em uma situação como essa? Os liberais do mainstreem estão nos dizendo que, quando os valores democráticos básicos estão sob ameaça por fundamentalistas étnicos ou religiosos, devemos todos nos unir sob a agenda liberal-democrática de tolerância cultural, salvar o que pode ser salvo, e renunciar sonhos maiores de uma transformação social mais radical. Então, como fica o sonho europeu do capitalismo liberal-democrático? Não se pode saber, a certo, o que espera a Ucrânia no interior da UE, a começar pelas medidas de austeridade. Todos sabemos da conhecida piada da última década da União Soviética sobre Rabinovitch, um judeu que quer emigrar… O burocrata do escritório de emigração o pergunta por que, e Rabinovitch responde: “Por dois motivos. O primeiro é que temo que na União Soviética os comunistas perderão poder, e que o novo governo jogará toda a culpa pelos seus crimes em nós, judeus – haverá, mais uma vez, uma política calcada no anti-semitismo…” “Mas”, interrompe o burocrata, “isso é besteira, nada pode mudar na União Soviética: o poder dos comunistas durará para sempre!” “Bem,” responde Rabinovitch calmamente, “esse é meu segundo motivo”.

Podemos facilmente imaginar uma conversa semelhante entre um ucraniano critico e um administrador financeiro da UE. O ucraniano reclama: “existem dois motivos pelos quais estamos em pânico aqui na Ucrânia. Primeiro, tememos que a UE irá simplesmente nos abandonar à pressão russa e deixar que nossa economia caia por água abaixo.” O administrador da UE o interrompe: “Mas pode confiar na UE, não vamos abandonar vocês: nós os controlaremos com firmeza e diremos o que devem fazer”. “Bem,” responde o ucraniano calmamente, “esse é meu segundo motivo”.

Então sim, os manifestantes da praça Maidan foram heróis, mas a verdadeira luta começa agora: a luta pelo que será a nova Ucrânia. E essa luta será muito mais dura do que a luta contra a intervenção de Putin. A questão não é se a Ucrânia é digna ou não da Europa, sé é boa o suficiente para entrar para a UE, mas se a Europa de hoje é digna das aspirações mais profundas dos ucranianos. Se a Ucrânia for acabar como uma mistura de fundamentalismo étnico e capitalismo liberal, com oligarcas controlando a cena, será um quadro tão europeu quanto o é o da Rússia (ou da Hungria) hoje. Comentadores políticos alegaram que a UE não apoiou a Ucrânia suficientemente em seu conflito com a Rússia, que sua resposta à ocupação russa e a anexação da Crimeia foi pouco enfático. Mas há outro tipo de apoio que estava faltando mais ainda: oferecer à Ucrânia uma estratégia factível de como se desvencilhar de seu impasse sócio-econômico. Para fazer isso, a Europa deverá primeiro se transformar e renovar seu compromisso com o núcleo emancipatório de seu legado.

Em suas Notas para a definição de cultura, o grande conservador T.S. Eliot comentou que há momentos em que a única escolha é aquela entre o sectarismo e a descrença, em que a única forma de manter uma religião viva é efetuando um racha sectário de seu corpo principal. Essa é nossa única chance hoje: é somente através de um “racha sectário” do cadáver decadente da velha Europa que poderemos manter vivo o legado europeu de égaliberté. Tal racha deverá tornar problemáticas as próprias premissas do que tendemos a aceitar como destino, como dados não-negociáveis de nosso predicamento – o fenômeno comumente designado como Nova Ordem Mundial e a necessidade, através da “modernização”, de nos acomodar a ele. 

Dito de forma direta: se a Nova Ordem Mundial que está surgindo for o destino não-negociável de todos nós, então a Europa está perdida e portanto sua única saída é assumir o risco e quebrar esse feitiço de nosso destino. Somente em uma tal nova Europa poderá a Ucrânia encontrar seu lugar. Não são os ucranianos que devem aprender com a Europa, é a própria Europa que deve aprender a incorporar o sonho que motivou os manifestantes da praça Maidan.

Que mensagem então os ucranianos receberão das eleições europeias?


A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.
14.03.31_Zizek_Maidan_4


18 de dezembro de 2013

O fracasso socialista de Mandela



Nas últimas duas décadas da vida, Nelson Mandela foi festejado como modelo de como libertar um país do jugo colonial sem sucumbir à tentação do poder ditatorial e sem postura anticapitalista. Em resumo, Mandela não foi Robert Mugabe, e a África do Sul permaneceu democracia multipartidária com imprensa livre e vibrante economia bem integrada no mercado global e imune a horríveis experimentos socialistas. Agora, com a morte dele, sua estatura de sábio santificado parece confirmada para toda a eternidade: há filmes sobre ele (com Morgan Freeman no papel de Mandela; o mesmo Freeman, aliás, que, noutro filme, encarnou Deus em pessoa). Rock stars e líderes religiosos, esportistas e políticos, de Bill Clinton a Fidel Castro, todos dedicados a beatificar Mandela.

Mas será essa a história completa? Dois fatos são sistematicamente apagados nessa visão celebratória. Na África do Sul, a maioria pobre continua a viver praticamente como vivia nos tempos do apartheid, e a ‘conquista’ de direitos civis e políticos é contrabalançada por violência, insegurança e crime crescentes. A única mudança é que onde havia só a velha classe governante branca há agora também a nova elite negra. Em segundo lugar, as pessoas já quase nem lembram que o velho Congresso Nacional Africano não prometera só o fim do apartheid; também prometeu mais justiça social e, até, um tipo de socialismo. Esse CNA muito mais radical do passado está sendo gradualmente varrido da lembrança. Não surpreende que a fúria outra vez esteja crescendo entre os sul-africanos pretos e pobres
A África do Sul, quanto a isso, é só a mesma versão repetida da esquerda contemporânea. Um líder ou partido é eleito com entusiasmo universal prometendo “um novo mundo” – mas então, mais cedo ou mais tarde, tropeçam no dilema chave: quem se atreve a tocar nos mecanismos capitalistas? Ou prevalecerá a decisão de “jogar o jogo”? Se alguém perturba esse mecanismo, é rapidamente “punido” com perturbações de mercado, caos econômico e o resto todo. Por isso parece tão simples criticar Mandela por ter abandonado a perspectiva socialista depois do fim do apartheid. Mas ele chegou realmente a ter alguma escolha? Andar na direção do socialismo seria possibilidade real?

É fácil ridicularizar Ayn Rand, mas há um grão de verdade no famoso “hino ao dinheiro” do seu romance A revolta de Atlas: “Até que e a não ser que você descubra que o dinheiro é a raiz de todo bem, você pede por sua própria destruição. Quando o dinheiro deixa de ser o meio pelo qual os homens lidam uns com os outros, tornam-se os homens ferramentas de outros homens. Sangue, chicotes e armas de fogo ou dólares. Faça sua escolha – não há outra.” Não disse Marx algo semelhante em sua conhecida fórmula de como, no universo da mercadoria, “as relações entre pessoas assumem o disfarce de relações entre coisas”? (O capital, p.147)

Na economia de mercado, acontece de relações entre pessoas aparecerem sob disfarces que os dois lados reconhecem como liberdade e igualdade: a dominação já não é diretamente exercida e deixa de ser visível como tal. O que é problemático é a premissa subjacente de Rand: de que a única escolha é entre relações diretas ou indiretas de dominação e exploração, com qualquer outra alternativa dispensada como utópica. No entanto, deve-se ter em mente que o momento de verdade da (se não por isso, ridiculamente ideológica) alegação de Rand: a grande lição do socialismo de estado foi efetivamente a de que uma abolição direta da propriedade privada e da troca regulada pelo mercado carente de formas concretas de regulação social do processo de produção necessariamente ressuscita relações diretas de servidão e dominação. Se apenas extinguirmos o mercado (inclusive a exploração do mercado), sem substituí-lo por uma forma própria de organização comunista da produção e da troca, a dominação volta como uma vingança, e com a exploração direta pelo mercado.

A regra geral é que, quando começa uma revolta contra um regime opressor semidemocrático, como aconteceu no Oriente Médio em 2011, é fácil mobilizar grandes multidões com slogans que só se podem descrever como “formadores de massa”: pela democracia, contra a corrupção, por exemplo. Mas adiante gradualmente vamos nos deparando com escolhas mais difíceis: quando nossa revolta é bem sucedida no alcance de seu objetivo direto, passamos a nos dar conta de que o que realmente nos atormentava (a falta de liberdade pessoal, a humilhação, a corrupção das autoridades, a falta de perspectiva de, algum dia, chegar a ter uma vida decente) perdura sob nova roupagem. A ideologia dominante mobiliza aqui todo o seu arsenal para nos impedir de chegar a essa conclusão radical. Começam a nos dizer que a liberdade democrática implica responsabilidades; que a liberdade democrática tem seu preço; que ainda não estamos plenamente amadurecidos, se esperamos demais da democracia.

Num plano diretamente mais político, a política externa dos EUA elaborou detalhada estratégia para controle de danos: basta converter o levante popular em restrições capitalistas-parlamentares palatáveis. Isso, precisamente, foi feito com sucesso na África do Sul, depois do fim do regime de apartheid; foi feito nas Filipinas depois da queda de Marcos; foi feito na Indonésia depois da queda de Suharto e foi feito também em outros lugares. Nessa precisa conjuntura, as políticas radicais de emancipação enfrentam o seu maior desafio: como fazer avançar as coisas depois de acabado o primeiro estágio de entusiasmo, como dar o passo seguinte sem sucumbir à catástrofe da tentação “totalitária”, em resumo: como avançar além de Mandela, sem se converter num Mugabe.

Se quisermos permanecer fiéis ao legado de Mandela, temos de deixar de lado as lágrimas de crocodilo das celebrações e nos focar em todas as promessas não cumpridas infladas sob sua liderança e por causa dela. Assim se verá facilmente que, apesar de sua indiscutível grandeza política e moral, Mandela, no fim da vida, era também um velho triste, bem consciente de que seu triunfo político e sua consagração como herói universal não passavam de máscara para esconder uma derrota muito amarga. A glória universal de Mandela é também prova de que ele não perturbou a ordem global do poder.

Slavoj Zizek
*Publicado originalmente no New York Times, em 9/11/2013. Esta é uma tradução ampliada e cotejada daquela feita por Vila Vudu, no redecastorphoto.

18 de julho de 2013

Ditadura do proletariado em Gotham City

Artigo de Slavoj Žižek sobre “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge”



Confira abaixo artigo inédito, traduzido por Rogério Bettoni, enviado com exclusividade pelo autor para a Boitempo publicar em seu Blog.

Adverte-se aos leitores que o texto contém detalhes da trama de Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge.

Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge confirma mais uma vez como os blockbusters de Hollywood são indicadores precisos da situação ideológica da nossa sociedade. A narrativa (resumida) se dá da seguinte maneira. Oito anos depois dos eventos de Batman – O Cavaleiro das Trevas, capítulo anterior da saga Batman, a lei e a ordem prevalecem em Gotham City: sob os extraordinários poderes do Ato Dent, o comissário Gordon praticamente erradicou o crime violento e organizado. No entanto, ele se sente culpado pela cobertura dos crimes de Harvey Dent (Dent morreu ao tentar matar o filho de Gordon, salvo por Batman, que assumiu a culpa em nome da manutenção do mito de Dent, levando a uma demonização de Batman como vilão de Gotham) e planeja admitir a conspiração em um evento público de celebração a Dent, mas acaba concluindo que a cidade não está preparada para a verdade. Bruce Wayne, que não atua mais como Batman, vive isolado na própria Mansão enquanto sua empresa desmorona depois de ter investido em um projeto de energia limpa criado para aproveitar a energia nuclear, mas encerrado quando ele descobriu que o núcleo poderia ser transformado em uma bomba. A lindíssima Miranda Tate, membra do conselho administrativo da Wayne Enterprises, convence Wayne a refazer a sociedade e continuar com seus trabalhos filantrópicos.
Aqui entra o (primeiro) vilão do filme: Bane, líder terrorista e antigo membro da Liga das Sombras, consegue a cópia do discurso de Gordon. Depois que as tramas financeiras de Bane quase levam a empresa de Wayne à falência, Wayne confia a Miranda a tarefa de controlar seus negócios, além de ter com ela um breve caso amoroso. (Nesse aspecto ela compete com a gata-ladra Selina Kyle, que rouba dos ricos para redistribuir a riqueza, mas acaba se juntando a Wayne e às forças da lei e da ordem.) Ao descobrir a movimentação de Bane, Wayne retorna como Batman e confronta Bane, que afirma ter assumido a Liga das Sombras após a morte de Ra’s Al Ghul. Depois de deixar Batman gravemente ferido em um combate corpo a corpo, Bane o coloca numa prisão de onde é praticamente impossível fugir. Seus companheiros de prisão contam para Wayne a história da única pessoa que conseguiu escapar: uma criança motivada pela necessidade e pela mera força de vontade. Enquanto o prisioneiro Wayne se recupera dos ferimentos e se prepara para ser Batman de novo, Bane consegue transformar Gotham City em uma cidade-Estado isolada. Primeiro ele atrai para o subsolo a maior parte dos policiais de Gotham e os prende lá; depois provoca explosões que destroem a maioria das pontes que conectavam Gotham City ao continente, anunciando que qualquer tentativa de deixar a cidade resultaria na detonação do núcleo de Wayne, do qual se apoderou e transformou em uma bomba.
Chegamos então ao momento crucial do filme: a tomada de poder por parte de Bane acontece junto com uma vasta ofensiva político-ideológica. Bane revela publicamente o acobertamento da morte de Dent e liberta os prisioneiros detidos pelo Ato Dent. Condenando os ricos e poderosos, ele promete devolver o poder ao povo, convocando as pessoas comuns a “tomarem a cidade de volta” – Bane revela-se como “o manifestante definitivo do Occupy Wall Street, convocando os 99% a se juntarem para derrubar as elites sociais”[1]. Segue-se então a ideia do filme de poder do povo: uma sequência mostra  uma série de julgamentos e execuções dos ricos, as ruas tomadas pelo crime e pela vilania… alguns meses depois, enquanto Gotham City continua sofrendo o terror popular, Wayne consegue fugir da prisão, retorna a Gotham como Batman e convoca os amigos para ajudá-lo a libertar a cidade e desarmar a bomba nuclear antes que ela exploda. Batman confronta e domina Bane, mas Miranda intervém e apunhala Batman – a benfeitora social revela-se como Talia al Ghul, filha de Ra’s: foi ela que escapou da prisão quando criança e foi Bane que a ajudou a fugir. Depois de comunicar seu plano de terminar a tarefa do pai de destruir Gotham, Talia foge. Na confusão que se segue, Gordon destrói o dispositivo que permitia a detonação remota da bomba enquanto Selina mata Bane, permitindo que Batman vá atrás de Talia. Ele tenta forçá-la a levar a bomba para a câmara de fusão onde pode ser estabilizada, mas Talia inunda a câmara. Talia morre quando seu caminhão bate, confiante de que a bomba não pode ser detida. Usando um helicóptero especial, Batman transporta a bomba para além dos limites da cidade, onde ela explode sobre o oceano e supostamente o mata.
Agora Batman é celebrado como um herói cujo sacrifício salvou Gotham City, enquanto Wayne é tido como morto nos motins. Após seus bens serem divididos, Alfred vê Bruce e Selina juntos em um café em Florença, enquanto Blake, jovem policial honesto que conhecia a identidade de Batman, herda a Batcaverna. Em suma, “Batman salva a situação, aparece incólume e continua com uma vida normal, enquanto outro o substitui no papel de defender o sistema”[2]. A primeira pista dos fundamentos ideológicos desse final é dada por Gordon, que, no (suposto) enterro de Wayne, lê as últimas linhas de Um conto de duas cidades, de Dickens: “Esta é, sem dúvida, a melhor coisa que faço e que jamais fiz; este é, sem dúvida, o melhor descanso que terei e que jamais tive”. Alguns críticos do filme interpretaram essa citação como um indício de que o filme “atinge o nível mais nobre da arte ocidental. O filme apela para o centro da tradição norte-americana – o ideal do nobre sacrifício pelo povo comum. Batman deve se humilhar para ser exaltado e renunciar à própria vida para encontrar uma nova. [...] Como máxima figura de Cristo, Batman sacrifica a si para salvar os outros”[3].
Dessa perspectiva, com efeito, Dickens está apenas a um passo de distância de Cristo no Calvário: “Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De fato, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida?” (Mt 16:25-26 da Bíblia de Jerusalém). O sacrifício de Batman como repetição da morte de Cristo? Essa ideia não seria comprometida pela última cena do filme (Wayne com Selina em um café em Florença)? O equivalente religioso desse final não seria a conhecida ideia blasfema de que Cristo realmente sobreviveu à crucificação e teve uma vida longa e pacífica (na Índia, ou talvez no Tibete, de acordo com algumas fontes)? A única maneira de remir essa cena final seria interpretá-la como um devaneio (alucinação) de Alfred, que se senta sozinho em um café em Florença. Outra característica dickensiana do filme é a queixa despolitizada sobre a lacuna entre ricos e pobres – no início do filme, Selina sussurra para Wayne enquanto eles dançam em um baile exclusivo da elite: “Está vindo uma tempestade, sr. Wayne. É melhor que estejam preparados. Pois quando ela chegar, todos se perguntarão como acharam que poderiam viver com tanto e deixar tão pouco para o resto”. Nolan, como todo bom liberal, está “preocupado” com essa disparidade e reconhece que essa preocupação impregnou o filme:
O que vejo do filme relacionado ao mundo real é a ideia de desonestidade. O filme inteiro trata da chegada do seu ponto crítico. [...] A ideia de justiça econômica perpassa o filme, e por duas razões. Primeiro, Bruce Wayne é um bilionário. Isso tem de ser levado em conta. [...] E segundo, há muitas coisas na vida, e a economia é uma delas, em que precisamos confiar em grande parte do que nos dizem, pois a maioria de nós se sente desprovida das ferramentas analíticas para saber o que está acontecendo. [...] Não acho que existe uma perspectiva de direita ou de esquerda no filme. Ele faz apenas uma avaliação honesta, ou uma exploração honesta, do mundo em que vivemos – de coisas que nos preocupam.[4]
Por mais que os espectadores saibam que Wayne é extremamente rico, eles tendem a se esquecer de onde vem a riqueza dele: fabricação de armas e especulação financeira, e é por isso que as jogadas de Bane na Bolsa de Valores podem destruir seu império – traficante de armas e especulador, esse é o verdadeiro segredo por trás da máscara do Batman. De que modo o filme lida com isso? Ressuscitando o tema arquetípico dickensiano do bom capitalista que se envolve no financiamento de orfanatos (Wayne) versus o mau e ganancioso capitalista (Stryver, como em Dickens). Nessa moralização dickensiana excessiva, a disparidade econômica é traduzida na “desonestidade” que deveria ser “honestamente” analisada, embora não tenhamos nenhum mapeamento cognitivo confiável, e uma abordagem “honesta” como essa nos leva a mais um paralelo com Dickens – é como afirmou Jonathan (corroteirista), irmão de Christopher Nolan, sem rodeios: “Para mim, Um conto de duas cidades foi o retrato mais angustiante de uma civilização reconhecível e descritível que se desintegrou completamente em pedaços. Com os terrores em Paris, na França daquela época, não é difícil imaginar que as coisas dariam tão errado assim”[5]. As cenas do vingativo levante populista no filme (uma multidão sedenta pelo sangue dos ricos que os ignoraram e exploraram) evocam a descrição de Dickens do Reino do Terror, tanto que, embora não tenha nada a ver com política, o filme segue o romance de Dickens ao retratar “honestamente” os revolucionários como fanáticos possuídos, e assim fornece
a caricatura do que, na vida real, seriam revolucionários comprometidos ideologicamente no combate da injustiça estrutural. Hollywood conta o que o establishment quer que saibamos – que os revolucionários são criaturas brutais, sem nenhum respeito pela vida humana. Apesar da retórica emancipatória sobre a libertação, eles têm projetos sinistros por trás. Portanto, quaisquer que sejam as razões, elas precisam ser eliminadas.[6]
Tom Charity destacou corretamente “a defesa que o filme faz do establishment na forma de bilionários filantrópicos e uma polícia corrupta” – na sua desconfiança das pessoas que resolvem as coisas com as próprias mãos, o filme “demonstra tanto o desejo por justiça social quanto o medo do que realmente pode parecer nas mãos de uma multidão”[7]. Aqui, Karthick levanta uma questão bem clara sobre a imensa popularidade da figura do Coringa no filme anterior: qual o motivo de uma atitude tão hostil para com Bane quando o Coringa foi tratado com tanta mansidão no filme anterior? A resposta é simples e convincente:
O Coringa, que clama por anarquia na sua mais pura manifestação, enfatiza a hipocrisia da civilização burguesa como ela existe, mas é impossível traduzir suas visões em uma ação de massa. Bane, por outro lado, representa uma ameaça existencial ao sistema de opressão. [...] Sua força não é apenas a psique, mas também sua capacidade de comandar as pessoas e mobilizá-las rumo a um objetivo político. Ele representa a vanguarda, o representante organizado dos oprimidos que promove a luta política em nome deles para gerar mudanças sociais. Tamanha força, com o maior dos potenciais subversivos, não tem lugar dentro do sistema. Ela precisa ser eliminada.[8]
No entanto, ainda que Bane não tenha o fascínio do Coringa de Heath Ledger, há uma característica que o distingue desse último: o amor incondicional, a mesma fonte da sua dureza. Em uma cena curta mas comovente, vemos como, em um ato de amor no meio do sofrimento terrível, Bane salvou a garota Talia sem se importar com as consequências e pagando um preço terrível por isso (foi espancado quase até a morte por defendê-la). Karthick tem toda razão ao situar esse acontecimento dentro da longa tradição, de Cristo a Che Guevara, que exalta a violência como uma “obra do amor”, como nas famosas palavras do diário de Che Guevara: “Devo dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem essa qualidade”[9]. O que encontramos aqui nem é tanto a “cristificação de Che”, mas sim uma “cheização do próprio Cristo” – o Cristo cujas palavras “escandalosas” de Lucas (“se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” [Lc 14:26]) apontam exatamente na mesma direção que a famosa citação de Che: “É preciso ser duro, mas sem perder a ternura”. A afirmação de que “o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor” deveria ser interpretada juntamente com a declaração muito mais “problemática” de Guevara sobre os revolucionários como “máquinas de matar”:
O ódio é um elemento da luta; o ódio impiedoso do inimigo que nos ergue acima e além das limitações naturais do homem e nos transforma em eficazes, violentas, seletivas e frias máquinas de matar. Assim devem ser nossos soldados; um povo sem ódio não derrota um inimigo brutal.
Ou, parafraseando Kant e Robespierre mais uma vez: o amor sem crueldade é impotente; a crueldade sem amor é cega, paixão efêmera que perde todo seu vigor. Guevara está parafraseando as declarações de Cristo sobre a unidade do amor e da espada – em ambos os casos, o paradoxo subjacente consiste nisto: o que torna o amor angelical, o que o eleva acima da mera sentimentalidade instável e patética, é essa mesma crueldade, o seu elo com a violência – é esse elo que eleva o amor acima e além das limitações naturais do homem e o transforma em pulsão incondicional. É por isso que, voltando a O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o único amor autêntico no filme é o de Bane, o “amor do terrorista”, em nítido contraste a Batman.
Nesse mesmo viés, a figura de Ra’s, pai de Talia, merece um exame mais cuidadoso. Ra’s é uma mistura de características árabes e orientais, um agente do virtuoso terror lutando para contrabalancear a corrompida civilização ocidental. O personagem é interpretado por Liam Neeson, ator cuja persona na tela geralmente irradia uma nobre bondade e sabedoria (ele faz o papel de Zeus em Fúria de Titãs), e que também representa Qui-Gon Jinn em A Ameaça Fantasma, primeiro episódio da série Star Wars. Qui-Gon é um cavaleiro Jedi, mentor de Obi-Wan Kenobi, bem como o descobridor de Anakin Skywalker, acreditando que Anakin é O Escolhido que restituirá o equilíbrio do universo, ignorando os alertas de Yoda sobre a natureza instável de Anakin; no final de A Ameaça Fantasma, Qui-Gon é morto por Darth Maul[10].
Na trilogia Batman, Ra’s também é professor do jovem Wayne: em Batman Begins, ele encontra Wayne em uma prisão chinesa; apresentando-se como Henri Ducard, ele oferece um “caminho” para o garoto. Depois que Wayne é libertado, ele segue até a fortaleza da Liga das Sombras, onde Ra’s está esperando, embora se apresente como servo de outro homem chamado Ra’s Al Ghul. Depois de um longo e doloroso treinamento, Ra’s explica que Bruce deve fazer o que for preciso para combater o mal, embora revele que eles treinaram Bruce para liderar a Liga com o intuito de destruir Gotham City, que eles acreditam ter se tornado irremediavelmente corrupta. Portanto, Ra’s não é a simples encarnação do Mal: ele representa a combinação de virtude e terror, a disciplina igualitária que combate um império corrupto, e assim pertence ao fio condutor (na ficção recente) que vai de Paul Atreides em Duna até Leônidas em 300 de Esparta. E é crucial que Wayne seja seu discípulo: Wayne foi formado como Batman por ele.
Duas críticas do senso-comum se apresentam aqui. A primeira é de que houve violência e matanças monstruosas nas revoluções reais, desde o estalinismo ao Khmer Vermelho, por isso está claro que o filme não está apenas engajado na imaginação revolucionária. A segunda, oposta, é esta: o atual movimento Occupy Wall Street não foi violento, seu objetivo definitivamente não era um novo reino do terror; na medida em que se espera que a revolta de Bane extrapole a tendência imanente do movimento OWS, o filme, portanto, deturpa de maneira absurda seus objetivos e estratégias. Os atuais protestos antiglobalistas são o exato oposto do terror brutal de Bane: este representa a imagem espelhada do terror estatal, uma seita fundamentalista e homicida dominada e controlada pelo terror, e não a sua superação por meio da auto-organização popular… As duas críticas compartilham a rejeição da figura de Bane. A resposta a essas duas críticas é múltipla.
Primeiro, devemos esclarecer o atual escopo da violência – a melhor resposta para a afirmação de que a reação violenta da multidão à opressão é pior que a opressão original foi dada por Mark Twain no seu Um ianque na corte do rei Artur: “Houve dois ‘Reinos do Terror’, se bem nos lembramos; um forjado na incandescente paixão, outro no desumano sangue frio. [...] Mas todos os nossos temores, que os tenhamos pelo menor terror, o momentâneo, por assim dizer; pois o que é o terror da morte súbita pelo machado se comparado à morte em toda uma vida de fome, frio, insulto, crueldade e desilusão? O cemitério de qualquer cidade pode bem conter os caixões cheios desse breve terror, que todos aprendemos com afinco a temer e lamentar; mas a França inteira mal conteria os caixões cheios daquele outro terror, mais antigo e verdadeiro, o terror de amargura e atrocidade indizíveis, que nenhum de nós aprendeu a encarar em toda sua amplitude ou desprezo que merece”.
Depois, deveríamos desmistificar o problema da violência, rejeitando afirmações simplistas de que o comunismo do século XX agiu com uma violência homicida excessiva demais, e de que deveríamos tomar cuidado para não cair mais uma vez nessa armadilha. Com efeito, trata-se de uma terrível verdade – mas esse foco voltado diretamente para a violência obscurece uma questão basilar: o que houve de errado no projeto comunista do século XX como tal, qual foi o ponto fraco imanente desse projeto que impulsionou o comunismo a recorrer (não só) aos comunistas no poder para a violência irrestrita? Em outras palavras, não basta dizer que os comunistas “negligenciaram o problema da violência”: foi um aspecto sócio-político mais profundo que os impulsionou à violência. (O mesmo se aplica à ideia de que os comunistas “negligenciaram a democracia”: seu projeto geral de transformação social impôs sobre eles esse “negligenciar”.) Portanto, não é apenas o filme de Nolan que foi incapaz de imaginar o poder autêntico do povo – os próprios movimentos “reais” de emancipação radical também não o fizeram e continuam presos nas coordenadas da antiga sociedade, e, por essa razão, muitas vezes o efetivo “poder do povo” foi esse horror violento.
E, por último, mas não menos importante, é muito simples dizer que não há potencial violento no movimento OWS e similares – há sim uma violência em jogo em todo processo emancipatório autêntico: o problema com o filme é que ele traduziu essa violência de uma maneira errada em terror homicida. Qual é, então, a sublime violência em relação à qual até mesmo o mais brutal assassinato é um ato de fraqueza? Façamos uma digressão em Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, que conta a história dos estranhos eventos na capital sem nome de um país democrático não identificado. Quando a manhã do dia das eleições é arruinada por chuvas torrenciais, a quantidade de eleitores presentes é extremamente baixa, mas o tempo melhora no meio da tarde e a população segue em massa para as seções eleitorais. No entanto, o alívio do governo logo acaba quando a contagem de votos revela que 70% das cédulas na capital foram deixados em branco. Frustrado por esse aparente lapso civil, o governo dá aos cidadãos a chance de refazer o fato uma semana depois, em mais um dia de eleição. O resultado é pior: agora 83% dos votos foram brancos. Os dois principais partidos políticos – o governante partido da direita (p.d.d.) e seu principal adversário, o partido do meio (p.d.m.) – entram em pânico, enquanto o infeliz e marginalizado partido da esquerda (p.d.e.) apresenta uma análise afirmando que os votos brancos são, essencialmente, um voto por sua agenda progressiva. Sem saber como responder a um protesto benigno, mas certo de que existe uma conspiração antidemocrática, o governo rapidamente rotula o movimento de “terrorismo puro e duro” e declara estado de emergência, permitindo a suspensão de todas as garantias constitucionais e adotando uma série de medidas cada vez mais drásticas: os cidadãos são apanhados aleatoriamente e desaparecem em interrogatórios secretos, a polícia e a sede do governo saem da capital, proibindo a entrada e a saída da cidade e, por fim, fabricando seu próprio líder terrorista. A cidade toda continua funcionando quase normalmente, as pessoas se esquivam de todas as ofensivas do governo com uma harmonia inexplicável e com um verdadeiro nível gandhiano de resistência não violenta… isso, a abstenção dos eleitores, é um exemplo de “violência divina” verdadeiramente radical que desperta reações de pânico brutal nos detentores do poder.
Voltando a Nolan, a trilogia dos filmes do Batman, portanto, segue uma lógica imanente. Em Batman Begins, o herói continua dentro dos limites de uma ordem liberal: o sistema pode ser defendido com métodos moralmente aceitáveis. O Cavaleiro das Trevas é de fato uma nova versão de dois clássicos de faroeste de John Ford (Sangue de Heróis e O Homem Que Matou o Facínora) que retratam como, para civilizar o ocidente selvagem, é preciso “publicar a lenda” e ignorar a verdade – em suma, como nossa civilização tem de se fundamentar em uma Mentira: é preciso quebrar as regras para defender o sistema. Ou, dito de outra forma, em Batman Begins, o herói é simplesmente uma figura clássica do vigilante urbano que pune os criminosos naquilo que a polícia não pode; o problema é que a polícia, órgão responsável pela imposição das leis, relaciona-se de maneira ambígua à ajuda de Batman: enquanto admite sua eficácia, ela também considera Batman uma ameaça ao seu monopólio do poder e uma testemunha da sua ineficácia. No entanto, a transgressão de Batman aqui é puramente formal, consiste em agir em nome da lei sem a legitimação para fazê-lo: nos seus atos, ele nunca viola a lei. O Cavaleiro das Trevas muda essas coordenadas: o verdadeiro rival de Batman não é o Coringa, seu oponente, mas Harvey Dent, o “cavaleiro branco”, o novo e agressivo promotor público, um tipo de vigilante oficial cuja batalha fanática contra o crime o conduz ao assassinato de pessoas inocentes e o destrói. É como se Dent fosse a resposta à ordem legal da ameaça de Batman: contra a vigilante luta de Batman, o sistema gera seu próprio excesso ilegal, seu próprio vigilante, muito mais violento que Batman, violando diretamente a lei. Desse modo, há uma justiça poética no fato de que, quando Bruce planeja revelar ao público sua identidade como Batman, Dent o interrompe e se apresenta como Batman – ele é “mais Batman que o próprio Batman”, efetivando a tentação à qual Batman ainda era capaz de resistir. Então quando, no final do filme, Batman assume os crimes cometidos por Dent para salvar a reputação do herói popular que incorpora a esperança para o povo comum, seu ato modesto tem uma ponta de verdade: Batman, de certa forma, devolve o favor a Dent. Seu ato é um gesto de troca simbólica: primeiro Dent toma para si a identidade de Batman, e depois Wayne – o Batman verdadeiro – toma para si os crimes de Dent.
Por fim, O Cavaleiro das Trevas Ressurge ultrapassa ainda mais os limites: Bane não seria Dent levado ao extremo, à sua autonegação? Dent que chega à conclusão de que o sistema é injusto, de modo que, para combater a injustiça com eficácia, é preciso atacar diretamente o sistema e destruí-lo? E, como parte da mesma atitude, Dent que perde as últimas inibições e está pronto para usar toda sua brutalidade assassina para atingir esse objetivo? O advento dessa figura muda a constelação inteira: para todos os participantes, inclusive Batman, a moralidade é relativizada, torna-se uma questão de conveniência, algo determinado pelas circunstâncias: é uma guerra de classes aberta, tudo é permitido para defender o sistema quando estamos lidando não só com gângsteres malucos, mas com uma revolta popular.
Será, então, que isso é tudo? O filme deveria ser categoricamente rejeitado por quem se envolve em lutas emancipatórias radicais? As coisas são mais ambíguas, e é preciso interpretar o filme da maneira que se interpreta um poema político chinês: as ausências e as presenças surpreendentes também contam. Recordemos a antiga história francesa sobre uma esposa que reclama do melhor amigo do marido, dizendo que o amigo tem se insinuado sexualmente para ela: leva algum tempo para que o amigo surpreso entenda a mensagem – de uma maneira invertida, ela o está incitando a seduzi-la… É como o inconsciente freudiano que não conhece a negação: o que importa não é um juízo negativo sobre algo, mas o simples fato de que esse algo seja mencionado – em O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o poder do povo ESTÁ AQUI, encenado como um Evento, em um passo fundamental dado a partir dos oponentes habituais de Batman (criminosos megacapitalistas, gângsteres e terroristas).
Temos aqui a primeira pista – a perspectiva de que o movimento OWS tome o poder e estabeleça a democracia do povo em Manhattan é nítida e completamente tão absurda e irreal que não podemos deixar de fazer a seguinte pergunta: POR QUE UM IMPORTANTE BLOCKBUSTER DE HOLLYWOOD SONHA COM ISSO, POR QUE EVOCA ESSE ESPECTRO? Por que sequer sonhar com o OWS culminando em uma violenta tomada de poder? A resposta óbvia (manchar o OWS com acusações de que ele guarda um potencial terrorista totalitário) não é o bastante para explicar a estranha atração exercida pela perspectiva do “poder do povo”. Não admira que o funcionamento apropriado desse poder continue branco, ausente: nenhum detalhe é dado sobre como funciona esse poder do povo, sobre o que as pessoas mobilizadas estão fazendo (é preciso lembrar que Bane diz que as pessoas podem fazer o que quiserem – ele não impõe sobre elas a sua própria ordem).
É por isso que a crítica externa do filme (“sua retratação do reino do OWS é uma caricatura ridícula”) não basta – a crítica tem de ser imanente, tem de situar dentro do próprio filme uma multiplicidade de sinais que aponte para o Evento autêntico. (Recordemos, por exemplo, que Bane não é apenas um terrorista brutal, mas sim uma pessoa de profundo amor e sacrifício.) Em suma, a ideologia pura não é possível, a autenticidade de Bane TEM de deixar rastros na tecitura do filme. É por isso que o filme merece uma leitura mais íntima: o Evento – a “república do povo de Gotham City”, a ditadura do proletariado sobre Manhattan – é imanente ao filme, é o seu centro ausente.

[1] Tyler O’Neil, “Dark Knight and Occupy Wall Street: The Humble Rise”, Hillsdale Natural Law Review, 21 de  julho de 2012.
[2] Karthick RM, “The Dark Knight Rises a ‘Fascist’?”, Society and Culture, 21 de julho de 2012.
[3] Tyler O’Neil, cit.
[4] Christopher Nolan, entrevista na Entertainment 1216 (julho de 2012), p. 34.
[5] Entrevista de Christopher e Jonathan Nolan ao Buzzine Film.
[6] Karthick, cit.
[7] Forrest Whitman, “The Dickensian Aspects of The Dark Knight Rises”, 21 de julho de 2012.
[8] Karthick, cit.
[9] Citado em Jon Lee Anderton, Che Guevara: A Revolutionary Life, New York: Grove 1997, p. 636-637.
[10] Notemos a ironia do fato de que o filho de Neeson é um xiita devoto, e que o próprio Neeson às vezes fala sobre a sua futura conversão ao islamismo.

1 de março de 2013

Por que os fundamentalistas de livre mercado acreditam que 2013 será o melhor ano de todos


(*) Artigo públicado originalmente no Blog da Boitempo

A edição de natal da revista britânica The Spectator publicou um editorial chamado “Por que 2012 foi o melhor ano de todos?” (disponível aqui, em inglês). O texto criticava a ideia de que vivemos em “um mundo perigoso e cruel, em que as coisas estão ruins e ainda pioram”. Eis o parágrafo de abertura: “Talvez não pareça, mas 2012 foi o ano mais formidável na história mundial. Essa afirmação soa algo extravagante, mas pode ser corroborada pelos fatos. Nunca houve menos fome, menos doenças ou mais prosperidade. O ocidente permanece em um marasmo econômico, mas a maioria dos países em desenvolvimento está progredindo e as pessoas estão saindo da pobreza a uma velocidade jamais registrada. Felizmente o número de mortos pela guerra ou por doenças naturais também está baixo. Estamos vivendo na idade do ouro.”

Essa mesma ideia tem sido fomentada de modo sistemático em uma série de bestsellers, que vai de Rational Optimist, de Matt Ridley, a Better Angels of Our Nature, de Steven Pinker. Também há uma versão mais prática que se costuma ouvir na mídia, principalmente nos países fora da Europa: crise, que crise? Vejamos os chamados países do BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China –, ou países como Polônia, Coreia do Sul, Singapura, Peru, até mesmo vários Estados da África subsaariana: todos estão progredindo. Os perdedores são a Europa Ocidental e, até certo ponto, os Estados Unidos – então não estamos lidando com uma crise global, mas simplesmente com a mudança do progresso, que se afasta do Ocidente. Um símbolo poderoso dessa mudança não seria o fato de que, recentemente, muita gente de Portugal, país em crise profunda, está voltando para Moçambique e Angola, ex-colônias de Portugal, mas dessa vez como imigrantes econômicos, e não como colonizadores?

Até mesmo com respeito aos direitos humanos: a situação na China e na Rússia não é melhor agora do que há 50 anos? Descrever a crise existente como um fenômeno global, como dizem, é uma típica visão eurocentrista advinda dos esquerdistas que geralmente se orgulham de seu antieurocentrismo. Nossa “crise global”, na verdade, é um mero abalo local em uma história mais ampla do progresso geral.

Mas é preciso conter nossa alegria. A pergunta que deve ser feita é: se a Europa, sozinha, está em declínio gradual, o que está substituindo sua hegemonia? A resposta é: “o capitalismo de valores asiáticos” – o que, obviamente, não tem nada a ver com o povo asiático e tudo a ver com a tendência nítida e atual do capitalismo contemporâneo em limitar ou até mesmo suspender a democracia.

Essa tendência não contradiz de modo nenhum o tão celebrado progresso da humanidade – ela é sua característica imanente. Todos os pensadores radicais, de Marx aos conservadores inteligentes, eram obcecados por esta questão: qual é o preço do progresso? Marx era fascinado pelo capitalismo, pela produtividade sem precedentes que ele desencadeava; mas Marx também frisava que esse sucesso engendra antagonismos. Devemos fazer o mesmo hoje: ter em vista a face obscura do capitalismo global que fomenta revoltas.

As pessoas se rebelam não quando as coisas estão realmente ruins, mas quando suas expectativas são frustradas. A Revolução Francesa ocorreu apenas quando o rei e os nobres começaram a perder o poder; a revolta anticomunista de 1956 na Hungria eclodiu depois que Imre Nagy já era primeiro-ministro há dois anos, depois de debates (relativamente) livres entre os intelectuais; as pessoas se rebelaram no Egito em 2011 porque houve certo progresso econômico sob o governo de Mubarak, dando origem a uma classe de jovens instruídos que participavam da cultura digital universal. E é por isso que o pânico dos comunistas chineses faz sentido: porque, no geral, as pessoas hoje estão vivendo melhor do que há quarenta anos – os antagonismos sociais (entre os novos ricos e o resto) explodem e as expectativas são muito mais elevadas.

Eis o problema com o desenvolvimento e o progresso: são sempre desiguais, dão origem a novas instabilidades e antagonismos, geram novas expectativas que não podem ser correspondidas. No Egito, pouco antes da Primavera Árabe, a maioria vivia um pouco melhor do que antes, mas os padrões pelos quais mediam sua (in)satisfação eram muito mais altos.

Para não perder o elo entre progresso e instabilidade, é preciso realçar sempre como aquilo que, à primeira vista, parece ser a realização incompleta de um projeto social na verdade sinaliza sua limitação imanente. Existe uma história (apócrifa, talvez) sobre o economista keynesiano de esquerda John Galbraith: antes de uma viagem à URSS no final da década de 1950, ele escreveu para seu amigo anticomunista Sidney Hook: “Não se preocupe, não me deixarei seduzir pelos soviéticos e voltarei para casa dizendo que eles têm socialismo!”. Hook respondeu imediatamente: “Mas é isso que me preocupa – que você volte dizendo que a URSS não é socialista!”. O que Hook temia era a defesa ingênua da pureza do conceito: se as coisas derem errado com a construção de uma sociedade socialista, isso não invalida a ideia em si, mas significa apenas que não a executamos apropriadamente. Essa mesma ingenuidade não é detectada nos fundamentalistas de mercado da atualidade?

Durante um recente debate televisivo na França, quando o filósofo e economista francês Guy Sorman afirmou que a democracia e o capitalismo necessariamente andam juntos, não pude me negar fazer esta óbvia pergunta: “Mas e a China?”, ao que ele me repreendeu: “Na China não há capitalismo!” Para o pós-capitalista fanático Sorman, um país não é verdadeiramente capitalista se não for democrático, exatamente da mesma maneira que, para os comunistas democráticos, o stalinismo simplesmente não era uma forma autêntica de comunismo.

É assim que os atuais apologistas do mercado, em um sequestro ideológico sem precedentes, explicam a crise de 2008: não foi o fracasso do livre mercado que a provocou, mas sim a excessiva regulação estatal; o fato de que nossa economia de mercado não foi um verdadeiro Estado de bem-estar social, mas esteve, em vez disso, nas garras desse Estado. Quando rejeitamos as falhas do capitalismo de mercado como infortúnios acidentais, acabamos em um “progress(ism)o” que encara a solução como um uso mais “autêntico” e puro de uma noção, tentando assim apagar o fogo com gasolina.

Slavoj Zizek - Blog da Boitempo
Tradução: Roberto Bettoni

26 de fevereiro de 2013

Slavoj Žižek: um rebelde com causa – entrevista para o jornal Zero Hora




Slavoj Zizek está machucado. Na semana passada, ele caminhava numa rua de Liubliana, capital da Eslovênia, onde vive, quando escorregou numa camada de gelo e caiu de costas, fraturando três costelas. Referindo-se com bom humor ao ocorrido como um “acidente estúpido”, ele dá início na quarta-feira a uma conversa telefônica de 43 minutos com Zero Hora.

Levando em conta que Zizek é um dos mais instigantes pensadores contemporâneos, professor e diretor de instituições acadêmicas na Eslovênia e na Grã-Bretanha, o repórter considera apropriado começar a entrevista com uma questão de ordem teórica: como se pronuncia seu sobrenome?
- Jijék – é o que se pode entender da resposta. – Mas não importa, todos pronunciam errado. Se alguém o pronuncia corretamente, eu suspeito que se trata de um policial.

É a vez de Zizek perguntar o que ocorreu com o Fórum Social Mundial, que se reuniu pela primeira vez em Porto Alegre em 2001. Ele esteve por duas vezes no Brasil, passando por São Paulo, Rio e Salvador. Segue-se uma rajada de comentários sobre as peculiaridades regionais brasileiras (“Quanto mais vou para o Sul, mais gosto”), sobre as capitais baiana (“Salvador é muito quente, eles dançam muito”) e paulista (“Sou um workaholic, gosto de São Paulo. Há ordem. Certo, há caos, não ordem, mas você sabe o que quero dizer. Há uma certa dinâmica. As pessoas trabalham, não dançam. Sou muito totalitário”).

Zizek começará por Porto Alegre um giro de lançamento de seu mais recente livro traduzido para o português, Menos que Nada (Boitempo Editorial). Na Capital, ele participa do seminário Marx: a Criação Destruidora no próximo dia 5, às 19h, na Câmara Municipal. A seguir, uma síntese da entrevista a Zero Hora:

Zero Hora – Quais são suas impressões sobre o Brasil?
Slavoj Zizek - As impressões são sempre divididas, mas gosto do país. Por exemplo: sei que há muita divisão ideológica sobre o Brasil. Uma é de que é um país onde as pessoas sabem aproveitar a vida, dançar e fazer música. Mas sei que há também um outro lado. Sei que há muitos negros no Brasil, mas a elite política permanece branca. Nos governos de Lula, havia apenas aquele famoso cantor negro que era ministro da Cultura (Gilberto Gil). Talvez agora seja diferente. Isso me lembra um pouco os antigos regimes comunistas, onde havia sempre mulheres no governo, mas apenas em três pastas consideradas de segundo classe e afastadas do poder real: Cultura, Educação e Assistência Social. Por outro lado, meus amigos brasileiros dizem que há ainda uma forte divisão racial, mas que permanece invisível. O que deve surpreendê-lo a respeito do Brasil é que a divisão social, entre ricos e pobres, é visível. Você vê favelas. Durante minha primeira visita, no início dos anos 1990, fui convidado a uma reunião na casa do diretor da Volkswagen do Brasil. Era uma mansão luxuosa, mas de lá era possível ver, a pouco mais de um quilômetro, uma favela. Gosto disso. Vocês não escondem isso como em outras cidades. Vá a Buenos Aires, você não vê favelas. Estão escondidas. Inicialmente, fui cético a respeito do governo Lula. Toni Negri (Antonio Negri, sociólogo marxista italiano) me disse há muitos anos: “Não subestime Lula e não superestime Hugo Chávez”. Me convenci cada vez mais de que Chávez não resolve realmente os problemas, injeta dinheiro neles. Ele não inventa nenhuma nova forma socioeconômica. Conheço essas formas de participação dos trabalhadores nas fábricas, mas sou cínico a esse respeito. Amigos me informam que há todas essas boas notícias sobre trabalhadores que controlam fábricas, cooperativas, mas que seria bom ir até lá um ano depois e ver o que aconteceu com a fábrica. Muitas vezes faliu.

ZH – Na sua opinião, há alguma experiência positiva de governo na América Latina?
Zizek - Gosto muito mais do caso da Bolívia, com Evo Morales e seu vice-presidente, Linera (Álvaro García Linera), que conheço. Não há solução fácil com dinheiro, como no caso de Chávez. É preciso trabalhar duro. Acredito que o caso do Brasil é importante. Mesmo se concordamos que o problema é o capitalismo global, blablá, isso não significa que possamos parar e simplesmente preparar alguma grande revolução. Há muitas coisas que você pode fazer dentro da ordem atual. Há espaços abertos nos quais se pode fazer algo. O Brasil é um bom exemplo daquilo que, com uma política inteligente, você pode fazer mesmo dentro das coordenadas do (vamos chamá-lo assim) capitalismo global. Não sou contra o eurocentrismo. Acredito que a Europa levou muitas coisas boas para o mundo, como democracia, igualitarismo e assim por diante. Mas, apesar disso, percebo que muitas vezes os esquerdistas, em especial, são surpreendentemente eurocêntricos. Por exemplo, veja toda essa bobagem de que hoje estamos numa crise global e assim por diante. Quando estive no Brasil, há dois anos, ou agora, em Cingapura e na China, as pessoas estavam certas em me perguntar: dane-se, que crise? Veja, até os Estados Unidos estão se recuperando, a China está indo relativamente bem, Cingapura, Coreia do Sul, Taiwan, Indonésia. Até os países do sul da África estão indo para a frente. Sem falar no Brasil e na América Latina, então, que crise? Estritamente uma crise local e europeia. Não é uma crise global, você sabe.

ZH – O senhor não viu sinais de crise fora da Europa?
Zizek - É claro que 2008 foi o momento de uma crise global potencial, mas agora, numa perspectiva mais longa, o que vemos é que a Europa simplesmente está perdendo sua função de modelo. Incidentalmente, não acredito que isso seja um fenômeno para se comemorar. O que está surgindo no lugar do capitalismo europeu é o capitalismo com valores asiáticos, que não tem a ver com a Ásia, mas simplesmente com um capitalismo mais autoritário. É um típico exemplo de eurocentrismo incluir tudo numa crise global. Não! Se você observar os números, existe hoje um grande progresso no Brasil, na China. Sei que estão ocorrendo horrores na China. Mas sejamos francos: existe menos fome em massa na China hoje em dia do que, digamos, há 40 anos. Então, não compro essa história superficial de que o capitalismo está em crise mortal, está caminhando para o seu fim e assim por diante. A outra razão pela qual gosto da abordagem brasileira é que estou um pouco farto e cansado desses assim chamados esquerdistas radicais que ainda esperam por um grande momento revolucionário, no qual a verdadeira classe trabalhadora virá impor a sua democracia e assim por diante. Sinceramente, não compro essa história. Sim, eu sei que a democracia multipartidária tem suas limitações. Negri me convenceu de que esse foi precisamente o caso do Brasil. O jeito de Lula fazer funcionar… Foi como Negri descreveu para mim, e acreditei nele. É claro que há corrupção, porque o único jeito de Lula aprovar suas medidas foi corromper, pagar os partidos menores. Então, novamente, há limitações, mas todas aquelas histórias poéticas de cooperativas locais, produtores, comunidades interdistritais que irão se expandindo gradativamente e envolvendo todo o Estado… não, não vão. Mais do que nunca, nós precisamos de organizações globais, com grandes redes globais. Não acredito nesses mitos de comunidades locais se aproximando e assim por diante. Não estou idealizando o Brasil, mas, uma vez mais, foi exemplo modesto e hoje relativamente bem-sucedido do que você pode fazer dentro do sistema existente. Mais uma vez, é importante livrar-se dos mitos de democracia direta e mesmo anticapitalismo. É evidente que sou anticapitalista. Acredito sinceramente no que escrevi. Mas sejamos claros: podemos sequer imaginar uma alternativa hoje? É claro que não peço que ninguém dite planos para o futuro, mas mesmo aventar a ideia de um socialismo de Estado é apenas um pouco mais radical do que uma democracia social. Considero muito deprimente a maneira como a esquerda radical diz todo o tempo, enquanto nós, no Ocidente, vivemos em relativa prosperidade: “Espere um momento, haverá uma crise, vocês verão que essa prosperidade é falsa”. OK, alguns países da Europa agora enfrentam uma crise: Grécia, Espanha, Grã-Bretanha, França.

ZH – Na Bulgária, o governo caiu nesta quarta-feira.
Zizek - Sim, mas você notou como poucas ideias reais nasceram desses protestos? Acredito que essa última crise de insatisfação na Europa é o maior malogro da esquerda que podemos imaginar. Colocamos essa energia em protestos, que eu apoio totalmente, mas não conseguimos transformá-los em movimentos políticos organizados que tentassem tomar o poder e fazer alguma coisa. Lembro dos acontecimentos do movimento Occupy Wall Street. Fui a Nova York, a Frankfurt e a outras cidades e fiz aos manifestantes uma pergunta psicanalítica simples: o que vocês querem? Ouvi respostas totalmente confusas: moralismo abstrato, diversidade política, honestidade, trabalho pelo bem comum. E então você tem esse tipo de movimento antifinanceiro, que eu rejeito totalmente em razão de sua teoria protofascista, que tenta opor o mau capitalismo, que não é produtivo, ao bom capitalismo, que é realmente produtivo. Não, isso não funciona. O capitalismo de hoje é capitalismo financeiro. Você não pode imaginar que ele se financie sem bancos fortes, que ofereçam crédito e assim por diante. E há pessoas que sonham com democracia direta e socialização, mas isso não funciona. Eu estava só perguntando às pessoas: “O que vocês querem?”. E é incrível que, somente por ter feito essa pergunta, eles me tratavam como uma espécie de inimigo. Como se me dissessem: “Por que você está fazendo essa pergunta agora? Estamos na primeira fase de nosso trabalho, estamos desenvolvendo-o”. Eu sei, eu sei, mas não penso francamente que, por haver revolta, irá aparecer algum movimento forte como opção séria. O problema é que, quando você tem revolta e não tem projeto de esquerda que seja aceito pelas pessoas, obviamente, a direita radical vence.

ZH – Não é um problema antigo para a esquerda a conciliação das ideias socialistas com o movimento real das massas?
Zizek - Em primeiro lugar, o marxismo tem de fazer um pouco de autocrítica. Penso que a questão não é apenas a de como podemos mobilizar as pessoas com base em nossa teoria, mas a de nos perguntarmos se algo está errado com a própria teoria. Por exemplo, qual é o sujeito potencial da mudança amanhã? Está claro que não é mais a classe operária tradicional. Na Europa, falar na classe operária tradicional é dizer: “Sim, sim, você é explorado. Mas, pelo menos, você tem um emprego permanente no qual é permanentemente explorado. Você quase pode ser considerado um privilegiado hoje”. Há trabalhadores precarizados, desempregados, imigrantes, excluídos… Não penso que o agente potencial da mudança possa ser simplesmente a velha classe operária. A segunda observação não muito popular que eu gostaria de acrescentar é: não mistifiquemos as tentativas revolucionárias do passado. Por exemplo, as pessoas estão muito desapontadas, oh, meu Deus, com o fato de os partidos islâmicos terem tomado conta do Egito. Amigos que estiveram na Praça Tahrir disseram que não mais de 10% da população efetivamente participaram das mobilizações. Obviamente, a maioria simpatizava com o que estava acontecendo, mas estava à margem, esperando. E agora vou mais longe: você não acha que isso se aplica a todas as revoluções? Veja a Revolução de Outubro. A participação foi ainda menor. Eram um ou dois grupos nas grandes cidades. Mas há um outro exemplo, mais dramático, da Revolução Mexicana, sobre a qual recentemente li um livro. Há um momento em que Emiliano Zapata entra na Cidade do México pelo sul, e Pancho Villa, pelo norte. E o que acontece? Eles permanecem por três meses na Cidade do México, eles discutem, não sabem o que fazer e voltam para casa. É incrível: eles tomam o poder e não sabem o que fazer com ele.
ZH – O senhor acredita que a democracia representativa seja mais adequada ao exercício da vontade política?
Zizek - Não gosto dessa ideia esquerdista radical de que a democracia formal torna o povo passivo e de que precisamos de democracia participativa, na qual estaremos todos engajados. Mas deixe-me ser muito brutal: a grande maioria das pessoas, e eu me incluo nessa maioria, não quer participar o tempo todo da política. Eles querem um Estado eficiente e ordem pública que lhes permita viver em paz e de forma decente. Não vejo nada errado com essa atitude. O problema não é o grande momento extático: oh, um milhão de pessoas na praça. O problema é como mudar a vida real quando, depois do êxtase revolucionário, as coisas voltam ao normal. Existe a opção social-democrata? Sim, embora hoje esteja um pouco em crise. Há a velha opção comunista? Ela se desvaneceu. Uma vez debati com Fukuyama (Francis Fukuyama, pensador liberal americano, autor de O Fim da História) e disse a ele: “OK, você está certo, o capitalismo liberal venceu. Mas admita que os ex-comunistas na China são os melhores administradores desse novo capitalismo” (risos). Essa é a ironia da China. Yeah, yeah, yeah, capitalismo, mas vocês precisam de nós para gerenciá-lo (risos).

(Publicado no jornal Zero Hora no último sábado, 23 de fevereiro de 2013.)

Seminário tras Žižek, Harvey e Heinrich para debater marxismo em tempos de crise global

Diante das consequências da crise econômica global e da nova configuração política no Brasil e no mundo, o que Marx tem a nos ensinar hoje? Como a sua vasta obra, principalmente O capital, pode contribuir para entender e transformar o nosso tempo?

Para debater a atualidade e a pertinência da produção teórica desse gigante da filosofia, a Boitempo Editorial e o Sesc realizam durante os meses de março e maio o seminário internacional “Marx: a criação destruidora”, que reunirá alguns dos mais renomados especialistas da tradição marxista.

Destacam-se o filósofo esloveno Slavoj Žižek, o geógrafo britânico David Harvey e o cientista político alemão Michael Heinrich, integrante do projeto Mega-2 (Marx-Engels-Gesamtausgabe), instituição detentora e curadora dos manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels.

Em parceria com a Fundação Lauro Campos, a Fundação Maurício Grabois, a Fundação Rosa Luxemburgo, a Câmara Municipal de Porto Alegre, a produtora de eventos Carpe Diem, a ArtFliporto e a Universidade Federal da Bahia (UFBA), o projeto internacional “Marx: a criação destruidora”, que contempla o IV Seminário Margem Esquerda e o IV Curso Livre Marx-Engels, se estenderá às cidades de São Paulo, Porto Alegre, Brasília, Recife e Salvador, onde estão previstas as conferências internacionais de Slavoj Žižek e David Harvey.

Em São Paulo, onde o evento se concentra, a programação, dividida em três etapas, marca o histórico lançamento da edição especial, com tradução inédita, do livro I de 'O capital', de Karl Marx, 15º título da Coleção Marx Engels, além de 'Para entender O capital', de David Harvey; 'Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético', de Slavoj Žižek; 'Estado e forma política', de Alysson Leandro Mascaro; 'Marx, modo de uso', do filósofo francês Daniel Bensaïd (falecido em 2010); além do número 20 da revista Margem Esquerda.

Confira a programação completa em todas as cidades e mais informações sobre inscrições no site do projeto: http://marxcriacaodestruidora.com.br/

Do site Carta Maior:

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21645

11 de outubro de 2011

Liberty Plaza had a visit of Slavoj Zizek

Slavoj Zizek at Wall Street from David Colmenares on Vimeo.



Transcripts
Part One

…2008 financial crash more hard earned private property was destroyed than if all of us here were to be destroying it night and day for weeks. They tell you we are dreamers. The true dreamers are those who think things can go on indefinitely the way they are. We are not dreamers. We are awakening from a dream which is tuning into a nightmare. We are not destroying anything. We are only witnessing how the system is destroying itself. We all know the classic scenes from cartoons. The cart reaches a precipice. But it goes on walking. Ignoring the fact that there is nothing beneath. Only when it looks down and notices it, it falls down. This is what we are doing here. We are telling the guys there on Wall Street – Hey, look down! (cheering).

In April 2011, the Chinese government prohibited on TV and films and in novels all stories that contain alternate reality or time travel. This is a good sign for China. It means that people still dream about alternatives, so you have to prohibit this dream. Here we don’t think of prohibition. Because the ruling system has even suppressed our capacity to dream. Look at the movies that we see all the time. It’s easy to imagine the end of the world. An asteroid destroying all life and so on. But you cannot imagine the end of capitalism. So what are we doing here? Let me tell you a wonderful old joke from communist times.

A guy was sent from East Germany to work in Siberia. He knew his mail would be read by censors. So he told his friends: Let’s establish a code. If the letter you get from me is written in blue ink ,it is true what I said. If it is written in red ink, it is false. After a month his friends get a first letter. Everything is in blue. It says, this letter: everything is wonderful here. Stores are full of good food. Movie theaters show good films from the West. Apartments are large and luxurious. The only thing you cannot buy is red ink.

This is how we live. We have all the freedoms we want. But what we are missing is red ink. The language to articulate our non-freedom. The way we are taught to speak about freedom war and terrorism and so on falsifies freedom. And this is what you are doing here: You are giving all of us red ink.

There is a danger. Don’t fall in love with yourselves. We have a nice time here. But remember: carnivals come cheap. What matters is the day after. When we will have to return to normal life. Will there be any changes then. I don’t want you to remember these days, you know, like - oh, we were young, it was beautiful. Remember that our basic message is: We are allowed to think about alternatives. The rule is broken. We do not live in the best possible world. But there is a long road ahead. There are truly difficult questions that confront us. We know what we do not want. But what do we want? What social organization can replace capitalism? What type of new leaders do we want?

Remember: the problem is not corruption or greed. The problem is the system that pushes you to give up. Beware not only of the enemies. But also of false friends who are already working to dilute this process. In the same way you get coffee without caffeine, beer without alcohol, ice cream without fat. They will try to make this into a harmless moral protest. They think (??? unintelligible). But the reason we are here is that we have enough of the world where to recycle coke cans…
Part Two

….Starbucks cappuccino. Where 1% goes to the world’s starving children. It is enough to make us feel good. After outsourcing work and torture. After the marriage agencies are now outsourcing even our love life, daily.

Mic check

We can see that for a long time we allowed our political engagement also to be outsourced. We want it back. We are not communists. If communism means the system which collapsed in 1990, remember that today those communists are the most efficient ruthless capitalists. In China today we have capitalism which is even more dynamic than your American capitalism but doesn’t need democracy. Which means when you criticize capitalism, don’t allow yourselves to be blackmailed that you are against democracy. The marriage between democracy and capitalism is over.

The change is possible. So, what do we consider today possible? Just follow the media. On the one hand in technology and sexuality everything seems to be possible. You can travel to the moon. You can become immortal by biogenetics. You can have sex with animals or whatever. But look at the fields of society and economy. There almost everything is considered impossible. You want to raise taxes a little bit for the rich, they tell you it’s impossible, we lose competitivitiy. You want more money for healthcare: they tell you impossible, this means a totalitarian state. There is something wrong in the world where you are promised to be immortal but cannot spend a little bit more for health care. Maybe that ??? set our priorities straight here. We don’t want higher standards of living. We want better standards of living. The only sense in which we are communists is that we care for the commons. The commons of nature. The commons of what is privatized by intellectual property. The commons of biogenetics. For this and only for this we should fight.

Communism failed absolutely. But the problems of the commons are here. They are telling you we are not Americans here. But the conservative fundamentalists who claim they are really American have to be reminded of something. What is Christianity? It’s the Holy Spirit. What’s the Holy Spirit? It’s an egalitarian community of believers who are linked by love for each other. And who only have their own freedom and responsibility to do it. In this sense the Holy Spirit is here now. And down there on Wall Street there are pagans who are worshipping blasphemous idols. So all we need is patience. The only thing I’m afraid of is that we will someday just go home and then we will meet once a year, drinking beer, and nostalgically remembering what a nice time we had here. Promise ourselves that this will not be the case.

We know that people often desire something but do not really want it. Don’t be afraid to really want what you desire. Thank you very much!
Last Note

This is only a part of the entire speech he gave today, and if it was recorded in its entirety we'd be very glad to have a copy for transcription purposes.

http://occupywallst.org/article/today-liberty-plaza-had-visit-slavoj-zizek/

Durante o crash financeiro de 2008, foi destruída mais propriedade privada, ganha com dificuldades, do que se todos nós aqui estivéssemos a destruí-la dia e noite durante semanas. Dizem que somos sonhadores, mas os verdadeiros sonhadores são aqueles que pensam que as coisas podem continuar indefinidamente da mesma forma.

Não somos sonhadores. Somos o despertar de um sonho que está se transformando num pesadelo. Não estamos destruindo coisa alguma. Estamos apenas testemunhando como o sistema está se autodestruindo.

Todos conhecemos a cena clássica do desenho animado: o coiote chega à beira do precipício, e continua a andar, ignorando o fato de que não há nada por baixo dele. Somente quando olha para baixo e toma consciência de que não há nada, cai. É isto que estamos fazendo aqui.

Estamos a dizer aos rapazes de Wall Street: “hey, olhem para baixo!”

Em abril de 2011, o governo chinês proibiu, na TV, nos filmes e em romances, todas as histórias que falassem em realidade alternativa ou viagens no tempo. É um bom sinal para a China. Significa que as pessoas ainda sonham com alternativas, e por isso é preciso proibir este sonho. Aqui, não pensamos em proibições. Porque o sistema dominante tem oprimido até a nossa capacidade de sonhar.

Vejam os filmes a que assistimos o tempo todo. É fácil imaginar o fim do mundo, um asteróide destruir toda a vida e assim por diante. Mas não se pode imaginar o fim do capitalismo. O que estamos, então, a fazer aqui?

Deixem-me contar uma piada maravilhosa dos velhos tempos comunistas. Um fulano da Alemanha Oriental foi mandado para trabalhar na Sibéria. Ele sabia que o seu correio seria lido pelos censores, por isso disse aos amigos: “Vamos estabelecer um código. Se receberem uma carta minha escrita em tinta azul, será verdade o que estiver escrito; se estiver escrita em tinta vermelha, será falso”. Passado um mês, os amigos recebem uma primeira carta toda escrita em tinta azul. Dizia: “Tudo é maravilhoso aqui, as lojas estão cheias de boa comida, os cinemas exibem bons filmes do ocidente, os apartamentos são grandes e luxuosos, a única coisa que não se consegue comprar é tinta vermelha.”

É assim que vivemos – temos todas as liberdades que queremos, mas falta-nos a tinta vermelha, a linguagem para articular a nossa ausência de liberdade. A forma como nos ensinam a falar sobre a guerra, a liberdade, o terrorismo e assim por diante, falsifica a liberdade. E é isso que estamos a fazer aqui: dando tinta vermelha a todos nós.

Existe um perigo. Não nos apaixonemos por nós mesmos. É bom estar aqui, mas lembrem-se, os carnavais são baratos. O que importa é o dia seguinte, quando voltamos à vida normal. Haverá então novas oportunidades? Não quero que se lembrem destes dias assim: “Meu deus, como éramos jovens e foi lindo”.

Lembrem-se que a nossa mensagem principal é: temos de pensar em alternativas. A regra quebrou-se. Não vivemos no melhor mundo possível, mas há um longo caminho pela frente – estamos confrontados com questões realmente difíceis. Sabemos o que não queremos. Mas o que queremos? Que organização social pode substituir o capitalismo? Que tipo de novos líderes queremos?

Lembrem-se, o problema não é a corrupção ou a ganância, o problema é o sistema. Tenham cuidado, não só com os inimigos, mas também com os falsos amigos que já estão trabalhando para diluir este processo, do mesmo modo que quando se toma café sem cafeína, cerveja sem álcool, sorvete sem gordura.

Vão tentar transformar isso num protesto moral sem coração, um processo descafeinado. Mas o motivo de estarmos aqui é que já estamos fartos de um mundo onde se reciclam latas de coca-cola ou se toma um cappuccino italiano no Starbucks, para depois dar 1% às crianças que passam fome e fazer-nos sentir bem com isso. Depois de fazer outsourcing ao trabalho e à tortura, depois de as agências matrimoniais fazerem outsourcing da nossa vida amorosa, permitimos que até o nosso envolvimento político seja alvo de outsourcing. Queremos ele de volta.

Não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema que entrou em colapso em 1990. Lembrem-se que hoje os comunistas são os capitalistas mais eficientes e implacáveis. Na China de hoje, temos um capitalismo que é ainda mais dinâmico do que o vosso capitalismo americano. Mas ele não precisa de democracia. O que significa que, quando criticarem o capitalismo, não se deixem chantagear pelos que vos acusam de ser contra a democracia. O casamento entre a democracia e o capitalismo acabou.

A mudança é possível. O que é que consideramos possível hoje? Basta seguir os meios de comunicação. Por um lado, na tecnologia e na sexualidade tudo parece ser possível. É possível viajar para a lua, tornar-se imortal através da biogenética. Pode-se ter sexo com animais ou qualquer outra coisa. Mas olhem para os terrenos da sociedade e da economia. Nestes, quase tudo é considerado impossível. Querem aumentar um pouco os impostos aos ricos? Eles dizem que é impossível. Perdemos competitividade. Querem mais dinheiro para a saúde? Eles dizem que é impossível, isso significaria um Estado totalitário. Algo tem de estar errado num mundo onde vos prometem ser imortais, mas em que não se pode gastar um pouco mais com cuidados de saúde.

Talvez devêssemos definir as nossas prioridades nesta questão. Não queremos um padrão de vida mais alto – queremos um melhor padrão de vida. O único sentido em que somos comunistas é que nos preocupamos com os bens comuns. Os bens comuns da natureza, os bens comuns do que é privatizado pela propriedade intelectual, os bens comuns da biogenética. Por isto e só por isto devemos lutar.

O comunismo falhou totalmente, mas o problema dos bens comuns permanece. Eles dizem-nos que não somos americanos, mas temos de lembrar uma coisa aos fundamentalistas conservadores, que afirmam que eles é que são realmente americanos. O que é o cristianismo? É o Espírito Santo. O que é o Espírito Santo? É uma comunidade igualitária de crentes que estão ligados pelo amor um pelo outro, e que só têm a sua própria liberdade e responsabilidade para este amor. Neste sentido, o Espírito Santo está aqui, agora, e lá em Wall Street estão os pagãos que adoram ídolos blasfemos.

Por isso, do que precisamos é de paciência. A única coisa que eu temo é que algum dia vamos todos voltar para casa, e vamos voltar a encontrar-nos uma vez por ano, para beber cerveja e recordar nostalgicamente como foi bom o tempo que passámos aqui. Prometam que não vai ser assim. Sabem que muitas vezes as pessoas desejam uma coisa, mas realmente não a querem. Não tenham medo de realmente querer o que desejam. Muito obrigado

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18669