A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

31 de janeiro de 2017

rasgar as páginas

rasgar as páginas do calendário
flertar com infinito

a chuva fina

fazer do ínfimo
um oceano místico

Salvador Passos

26 de janeiro de 2017

Um manifesto, nem isso

Hoje é o aniversário da execução
de García Lorca e se alguma coisa
mudou desde então, foi pra pior
eu estou na Central do Brasil
esperando que alguém me ligue
com uma notícia boa

não tenho vontade de voltar para casa
não tenho vontade de ir trabalhar
não tenho vontade de quase nada
e espero me apaixonar nos próximos minutos
há qualquer coisa de perverso em tudo isso
penso em Antônio Conselheiro
e em seu cadáver profanado
a santidade do mundo
é sempre mais perigosa
que qualquer diabo
uma vez o eremita me sorriu
em uma carta de tarô e desde então
tenho colecionado abandonos
ocorre-me que talvez estejamos
vivendo o apocalipse
ocorre-me que talvez sejamos
todos o anti-cristo
tenho profetizado o fim dos tempos
com uma vontade aguda
de que o mundo dê merda
e quando isso acontece
é quando estou mais feliz, eu me digo,
basta desse teatro - vamos ver
até onde eles estão dispostos
a levar isso aqui
e eles estão dispostos a levar
a coisa bem longe
desde que não tenham que fazer
acontecer com as próprias mãos
quando eu era pequeno a minha avó
matou um porco com as próprias mãos
a mesma avó que me limpava o rabo
e que agora não existe mais
admiro o silêncio forçado dos santos
o perigo mortal de um pulmão que respira
e agora essas crises de riso
que me acometem como o chorar
mas eu sou mais forte que isso
eu lhes digo
eu estou estudando a tristeza
eu sempre fui bom de estudar
eu sempre fui bom em ser triste
há dias em que sinto certo nojo
de ser homem
gostaria que todos menstruassem
para variar
às vezes recordo as pessoas
que amei e me pergunto se elas
estão mais felizes que isso 


preciso logo colocar uma filha no mundo.

Italo Diblasi

19 de janeiro de 2017

o ônibus


De Paul Kirchner  O ilustrador norte-americano fez a série “The Bus” entre 1978 e 1985 para a revista de quadrinhos Heavy Metal, na qual publicava mensalmente. Nestas tiras, Paul inventa pequenas histórias envolvendo ônibus — sempre surrealistas e bastante existencialistas.

Diários da revolução

há uma manifestação obstruindo a Pinheiro Machado
também nós nos levantaremos
dentro do 584 como um réptil lento
sugando dos acasos os sinais

mas onde é que foram parar as músicas da Janis Joplin?
tenho consciência de que é preciso dançar na língua dos predadores e o faremos, inventivos
para os que ainda acreditam no século 20, loucos acordados após os choques elétricos
dormentes palavras
recriar a raridade
eu gosto de três colheres de açúcar e você de seis
talvez haja alguma possibilidade nas duas casas geminadas e nos vasos de begônia
mas, por favor, você precisa entender o significado oculto das indelicadezas
o temor da multidão a caminho as rotas de fuga
os sustos os breques desorganizando as tristezas
tremor das mandíbulas para trocar dois beijinhos
brutas saídas à francesa


Ana Beatriz Rangel 

Então

vocês que fuzilaram garcía lorca
& cozinham crianças nas nuvens dos sacrifícios
vocês que destroçaram caminhos
& continuam a fabricar extermínios
nas tempestades de armas nas arquiteturas de amônia
nos verbos dos genocídios

vocês que chacinaram noites & dias
com terremotos de mil vírus explosivos
& se persignam ao moerem ossos vivos
vocês que rapinam o ouro nos úteros do orvalho
vocês que trancados nos salões sombrios
dispõem das tripas da vida & dos demônios da morte
impermeáveis aos gritos por todos os tímpanos moídos

vocês que trucidaram os ventos serão cobertos pela praga
dos bichos torrados nas florestas de cálcio
convulsões de oceanos purulentos
& rios empedrados nas fontes que urinam
vaginas sem suco & sêmens se esvaecendo
púrpuros berros de suicidas ardendo
abismos & mandíbulas trituradas nas invernias
vocês que serão os últimos consumidos
nas malhas em febre das cidades que agonizam
vocês que assistirão em transe o desfile das terríveis profecias
por sobre um carnaval de navalhas & máscaras vazias
vocês que uivarão vomitando 
catedrais de miasmas das radioativas neblinas 
vocês apodrecidos sem lamento 
vocês rasgaram as primaveras 
vocês assassinaram os ventos

Afonso Henriques Neto

18 de janeiro de 2017

mar de nomes

pregos enferrujados impedindo o movimento

sangram as sagradas chagas da palavra
soletrando a sombra de um sol insone

o sangue espesso nas carcaças

frágeis pálpebras devassadas
vértebra indefinida
osso do poema
argamassa bruta
dobradiças da cortina
cercas fronteiriças
vertigem inviolável

o segredo da palavra nas entranhas da cidade
mar que arma as ondas do naufrágio
ar que arfa o arranjo do incontido

aço de janelas cegas
sol que solda as horas mortas

arde a tarde entre os carros
arde a vida nas entranhas das palavras

partem todos sem destino
perdidos neste rio sem gramáticas
partem sem um nome que defina
o incêndio embaçado desta luz cortante

perco a tarde entre os prédios

há janelas que acenam com imagens cruas
entre vértebras oxidadas
tvs abandonadas
vozes mudas
movendo suas bocas
num imenso corpo de concreto

reverbera
a cidade
(que se perde aos poucos)
um navio que aderna no horizonte
a memória que escorre nas palavras

entre as letras
desaba o silêncio
no intervalo da cidade
(o mar de nomes)
ossos escavados na areia
nas calçadas
nas paredes da cidade sonolenta
o eterno espanto das palavras

Salvador Passos

13 de janeiro de 2017

um resíduo entre os prédios

perco a tarde entre os prédios

há janelas que acenam com imagens cruas
entre as vértebras escavadas
tvs abandonadas
vozes mudas
movendo suas bocas
num imenso corpo de concreto

reverbera
a cidade
(que se perde aos poucos)
um navio que aderna no horizonte

a memória que escorre nas palavras
esconde um poema mudo entre as pedras
um resíduo incontido de infância
no sorriso do menino que brincava
com a água que escorria da mangueira

Salvador Passos