A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

17 de fevereiro de 2023

na última sexta feira



na última sexta feira
perdi as pedras que tinha no meu bolso
aquelas que trouxemos da viagem
na última sexta feira

morri um pouco em mim mesmo

escrevi bilhetes dentro do ônibus
arrastei o tempo que trazia dentro

na última sexta feira

a morte se faz presente com seus silêncios
com sua tecnologia

com seus pedidos de desculpa

(sua culpa mal resolvida)
seus tribunais

inerte

no meio da sala

na sexta feira

na praça de alimentação

com um bilhete no bolso
com todas as conivências e aderências
com todos os seus votos

seus drones

suas valas políticas

e seus saltos soltos
seu olhar absorto


na última sexta feira...
perdi um poema no meu bolso

isso aqui não é um poema
é um pouco de vida
que luta contra a morte

Salvador Passos

te entreguei uma cidade decadente

te entreguei uma cidade decadente 

uma cidade submersa em nuvens de gás lacrimogêneo
uma cidade sitiada por uma beleza claustrofóbica

uma cidade assombrada
carne ácida 

entranha subterrânea 

sopro agonizante
 

meu presente: 

poema mórbido que devora carne humana
poema que naufraga nas palavras 


atravessamos a cidade que nos atravessa
arrancamos seu asfalto com as mãos
sangramos em silêncio  

sagrando o solo


avançamos sobre a noite

resistimos à maré do sono


o poema, deus absurdo
que devora as palavras sem lugar no mundo 

nos incita a abandonar a arquitetura automática dos dias 

mergulhamos um no outro
perante mil olhos carnívoros e cortinas mortas
garganta que arranha a alma 

mortalha de retalhos que se pensam vivos 

paralisados nas esquinas mórbidas

a cidade é um poema submerso

escondido no fundo das gavetas
um deserto que habita nossos corpos


a cidade aproxima nossas mãos 

numa caligrafia trêmula de palavras mudas
e viagens esquecidas
a intimidade da tua mão atravessa o meu silêncio


Salvador Passos

13 de janeiro de 2023

Será

 Será que temos a magia na ponta de nossos sonhos/será que evocaremos a imortalidade e escolheremos um nome pra ela/será que seremos outros pela via de nossos quereres/será que seremos outros seres/deuses sem saberes/tão crianças quando o ser que não tem nome/será que seremos labirintos de incertezas/caminho para realização de outra vida/qual o nome sintetiza todas estas dúvidas/oh, futuro que se posta e se une ao passo do que um dia fomos/"a escola, o primeiro dia de aula/será que seremos bons/as lições que não aprendemos saberemos como transmiti-las"

Salvador Passos 

Signos em rotação

Existem sociedades sem prosa, mas não existem sociedades sem poesia.

Otávio Paz


18 de outubro de 2022

Faz escuro no meu silêncio

Dentro

Lá no centro do silêncio

Faz um frio

Faz silêncio

Não há festa 

Há uma noite fria

No escuro do meu silêncio

Não escuto saúde


Faz um frio na noite

Faz noite neste poema que chove no enquanto

Sem encanto algum

Canto o silêncio

Cato os cacos de um país

Penso um plano

Uma iniciativa

Não leio os jornais

Imagino notícias 

A distância se encurta

Faz silêncio neste poema

Faz um tempo de espera

Uma noite canibal

Se mistura aos debates

Faz bruxismo neste país

E no centro deste silêncio rangem noites

Enquanto isso no quarto ao lado

Meu filho dorme sem saber o que se passa

Acordo e ele sorri 

Não sei se essa imagem solar aclara o poema ou escurece esse silêncio ainda mais

Seu sorriso é como um vagalume numa noite escura

Salvador Passos

5 de outubro de 2022

Paradoxos

o que escrevo


não são poemas políticos

de protestos panfletos partidos

ou coisa do tipo


não escrevo cartilhas nem

desvendo armadilhas de um mundo

impossível


não faço do poema uma folha em

branco sendo escrita nas normas da

abnt


não introduzo nem desenvolvo

até porque…


quem muito lattes não morde

você sabe disso


quando escrevo sou reboliço

escrevo a vida assim como ela se

faz a hipérbole é eufemismo

paradoxo quebras grama ti

…………………………………………cais


quando escrevo

poema

escrevo como quem

abre um animal

passando a faca

afiada fazendo linha

vertical


eu

quando escrevo o

poema sou o próprio

animal oferecendo o

que há de dentro

pra uma festa

ancestral


escrevo como quem

trabalha e ama e

dança e corre

e tropeça e come e

bebe e bêbado

e emprego e

desemprego


escrevo com quem

salário como quem

noite

como quem vende

como quem o próprio

corpo


escrevo como quem é

cego e enxerga pelos

ouvidos


como quem tem rimas

terceirizadas e todo

dia bate o ponto


final.


como um filho

da puta que rala na

tentativa de também

ser gente

como quem vem de

longe sendo estrada

consequentemente


escrevo

como quem atravessa

a rua na diagonal

na pressa de viver de

se poder chegar mais

longe.


Pedro Bomba


25 de outubro de 2021

A Máquina do Mundo - Carlos Drummond de Andrade




E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo o que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;

é a memória dos deuses, e o solene
sentimento da morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,

e a máquina do mundo, repelida,

 

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade