A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010
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18 de junho de 2018

Afonso Henriques Neto


Vamos falar um pouco sobre a “liberdade livre” de Rimbaud.

Essa expressão está numa carta de Rimbaud, onde ele diz que se empenha desesperadamente em manter a liberdade livre. É uma expressão muito forte, a soma do adjetivo com o substantivo marcando a insistência de Rimbaud na idéia de liberdade. E ele não estava sozinho, é claro. Gosto de olhar a literatura como um continuum histórico-cultural. Estamos sempre recontextualizando momentos históricos anteriores. E essa idéia de liberdade radical permeia toda a história da literatura. Existe um livro muito interessante sobre o tema, O poeta na república do poder, de um poeta peruano chamado  Mirko Lauer, que fala exatamente dessa tradição. Ele faz uma genealogia que remonta à Grécia, e fala principalmente de um poeta romano, Propércio, como quem deu uma expressão maior na Antigüidade a essa idéia de liberdade. Propércio se opunha às conquistas do Império Romano de César, afirmando que não tinha nada a ver com elas. Ele era contra tudo aquilo, achava que aquela guerra infindável não levava a nada. E colocava como contraponto o amor como símbolo da liberdade. Algo próximo do que iría-mos ver, 2 mil anos depois, na contracultura.

O amor não é uma forma radical de vínculo? Onde o livre da liberdade então?

Não, porque quando Propércio elege uma musa, essa musa não existe na realidade. É uma entidade que ele cria. Se fosse uma mulher física a quem ele estivesse dirigindo a palavra, você poderia até dizer que ele está preso a uma relação. Mas não, ele elege uma mulher-símbolo, mítica, para dizer que todo discurso do poder é vão. E ele poderia simplesmente acusar, denunciar este discurso, sem
pensar alternativas. Mas contrapõe a este discurso do poder uma situação radicalmentebexistencial. Ele conta eroticamente grandes noites de amor com essa mulher mítica, regadas com muito vinho, e diz que quem deita na cama com uma mulher e com os membros encharcados de vinho jamais vai fazer guerra. Porque não tem a menor possibilidade de pensar nisso. E o mais interessante é que houve uma tentativa de cooptação dele por César, porque ele se tornou um poeta muito popular na época, e César o queria como um poeta oficial. Há quem diga que Propércio teria sido cooptado no final da vida, pois ele também escreveu poemas ditos “oficiais”. O que mais interessa, apesar dessa possível contradição, é que o que ficou dele para a posteridade são as elegias ao vinho e à mulher, tudo banhado em radical liberdade. Rimbaud também caminha nesta direção. Em Paris, ele esteve na Comuna. Mas não era exatamente a dele. Ele queria brigar contra o discurso de poder de um modo geral, e não apenas alterá-lo. E ele queria romper também com todo o status literário. Essa idéia está presente quando Rimbaud vai escrever que “eu é um outro”. Para ele, não faz mais sentido o eu romântico. Ele já estava rompendo com todo o conceito de sujeito romântico, embora não definisse ainda o que é esse outro. É uma busca, um momento de ruptura interna, o que essa frase contém.

É uma frase seminal. De certa forma, ela prenuncia todas as vanguardas do século XX, o desejo radical de mudança.

Sim, de certa forma. Mas, pensando nas vanguardas do começo do século passado, é complicada esta questão do confronto do poeta com o poder. É interessante perceber que muitos dos grandes autores daquela época eram poetas quase “oficiais”, que cantavam ideologias. Isso vem de antes. Whitman de certa forma canta a democracia americana, toda a construção da América. E vai até Maiakovski cantando uma revolução que começa a surgir na União Soviética e que no fim não se resolve direito. Ele próprio entrou em conflito em relação a isso, no fim da sua vida, nos seus últimos textos. Mas a maior parte da obra dele é um canto oficial da revolução russa. A questão dos “ismos” todos da modernidade é muito perigosa. Cada “ismo” cantando um tipo de ideologia. O futurismo tem obras e autores que cantam o fascismo, o Estado puro. Alguns expressionistas vão virar nazistas, e aquilo já está presente em suas obras. É um perigo real. Mirko Lauer, no livro que citei, diz que só um certo surrealismo, que foi absorvido pelos beats americanos, é que de certa forma não cantou poder nenhum. Eu acho isso interessante.

Artaud, por exemplo...

Por exemplo. Artaud é um autor que sempre esteve em conflito com o poder. Foi expulso do surrealismo pelo Breton por se recusar a entrar no Partido Comunista. Foi precursor do interesse pelas culturas nativo-americanas, quando viajou para o México para encontrar os taraumaras e tomar mescalina. Agora, é importante também não demonizar o encontro da poesia com a política. Não estamos falando aqui de uma poesia escapista, sem relação com o real. Apesar de pessoalmente eu sempre propugnar por uma poesia em que o delírio e a imaginação fossem mais fortes do que um realismo simples, frágil, de puro registro do real. A poesia não é a linguagem do registro das coisas que os olhos captam na superfície, é outro tipo de linguagem. É uma tentativa de ver um pouco por trás desta pele. Sem nunca perder de vista o registro do real, é claro. Quando leio o discurso do Propércio, de se dirigir diretamente ao César, de tentar uma intervenção na realidade, aquilo me interessa. Ele está falando da guerra, está falando do ferro ferindo as populações, mas sempre com um trabalho poético, com metáforas, imagens muito elaboradas. E, em última análise, o Rimbaud também possuía essa consciência. Ele estava buscando uma saída, um caminho. A “liberdade livre” também não é uma coisa solta no espaço, é ancorada numa realidade brutal. Assim como Artaud. Assim como Van Gogh, quando não vende nenhum quadro em vida. Isso não é de graça, é porque uma linguagem muito forte e radical tem problemas de várias ordens para conseguir ser absorvido pelo público. Normalmente, ela precisa de tempo, e muitas vezes que ocorra uma diluição da sua originalidade. Há sempre uma tentativa de captura pela linguagem oficial.

E você acredita em possibilidades coletivas de criação de linguagens independentes?

Não. Mesmo os grupos instituídos, se você olhar bem, o que se nota é que somente um ou dois nomes se sobressaem, que são poucos os que realmente encarnam uma expressão mais radical. E esses autores que radicalizam métodos de pensamento, de expressão, acabam ficando um pouco distantes até mesmo dos amigos. Acabam se singularizando. São os nomes mais ensolarados, num certo sentido, apesar de muitas vezes mergulhados em trevas profundas, de serem figuras muitas vezes trágicas. Essa exploração radical é essencialmente solitária. A idéia de criação coletiva, ao menos na modernidade, é um esforço interessante, mas que não acredito que se cumpra inteiramente. Você pega um grupo de 15 autores, por exemplo, e acaba percebendo que mesmo unidos sob uma mesma bandeira, continuam sendo 15 solidões em busca de algo que está sempre fugindo, sempre fugindo. Isso é trágico de um lado e encantador de outro.

Ouvindo você falar do Propércio, do seu poder de influência, fiquei pensando que a assinatura, que uma certa idéia de propriedade autoral já deveria existir na Antigüidade, certo? Se não era com fins financeiros, certamente com intenção de aquisição de poder, de influência...

É, eles ali já lutavam politicamente por seu espaço, por seu nome, não é? Seja Platão, Aristóteles ou os outros, cada qual lutava para fazer com que o seu discurso predominasse, para com isso ganhar as benesses necessárias. Propércio era um escritor, não obtinha retorno direto da venda de seus textos, mas era um arauto, e isso certamente lhe trazia benefícios. Isso é interessante. Há mesmo uma luta política. Como nós viemos desta cultura, desta tradição, é essa tradição que a gente tem que examinar, mais do que a tradição japonesa, por exemplo, que possuía exemplos interessantíssimos de trabalhos coletivos, de quebra do autor, como os “haicais de hospedagem”, por exemplo, que eram poemas anônimos elaborados pelos poetas visitantes das hospedarias: eles os deixavam nas paredes para serem respondidos pelos próximos visitantes, e assim sucessivamente. Eu adoro a tradição japonesa, mas nós viemos da tradição greco-latina, e então essa cultura é que é a nossa cultura, e de lá para cá o que eu vejo o tempo todo são recontextualizações de coisas que foram criadas ali, que surgiram ali naquele lugar, naquele tempo. Se a gente não entender bem o que era aquilo lá, a gente está entendendo pouco do que nós somos hoje.

Já existia lá essa tentativa de cooptação pelo poder...

Sempre. Uma das formas mais radicais disso hoje é a absorção de uma estética à revelia de sua ética. Houve, por exemplo, uma penetração muito grande do discurso poético na publicidade. Então, foram criadas peças belíssimas, sinestésicas, fantásticas, e qual é a ética que existe por trás delas? Nenhuma. Há a beleza em si, mas para quê, apontando para onde? Então, voltamos para a idéia do velho humanismo, não podemos desvincular a ética do homem, pois ela é essencial para se definir o homem. E mais ainda para a poesia. Ela precisa se preocupar com o que é o homem nesse planeta, vivendo nesse momento histórico. É necessária esta consciência. A “liberdade livre” de Rimbaud pressupõe uma ética. Ela é, essencialmente, ética. E essa relação do poeta com o poder é duríssima, dolorosa ao longo da história. É uma guerra, um conflito que vem se dando desde sempre. A arma do poeta é também sua maior fragilidade. Porque enquanto o teórico político, vamos dizer assim, trabalha com uma linguagem em linha direta com o pensamento, com as estruturas conceituais, o poeta trabalha com uma linguagem outra. E qual é essa linguagem? Fico me lembrando quando Barthes coloca a idéia de que a linguagem tende para o lugar comum. O lugar comum, o estereótipo tende sempre a se agarrar à linguagem, é uma espécie de mata-borrão da linguagem. O teórico às vezes não tem muita preocupação com isso. Ele continua escrevendo, e de repente está preso naquele tipo de linguagem, que é a linguagem do poder. Em outras palavras, muito próximo do que oficialmente as palavras significam. E aí obviamente, mesmo sem ele querer ou se opondo a isso, ele está imerso no poder. O poeta, quando usa conscientemente as palavras que têm aquele significado, tenta torcê-las, torcer o significado delas. E nesse momento ele está praticando liberdade. E isso nada tem a ver com ausência de ética. É outro discurso, mas a ética continua. É possível ser poeta e ter uma ética marxista, cristã ou mesmo fascista. Embora prefira pessoalmente a possibilidade de uma ética menos compromissada com discursos do poder. Assim, a poesia trabalha em cima de desvios de linguagem. Ela realiza um exercício de liberdade independente dessa ética. Alguns com mais, outros com menos radicalismo. E esse desvio vai para onde? Não sei. É um desvio histórico. Platão já não gostou desse desvio lá atrás. Achou esquisito. Falou que é melhor nem ter esses caras por perto. E essa luta veio vindo. Você pode rastrear isso ao longo dos séculos. E o engraçado é que os poetas mais radicais, que vivem intensamente seu momento, muitas vezes passam a vida tomando porrada, e só são recuperados dois, três séculos depois. Villon é um exemplo disso.

E você acha que esta linguagem desviante permanece com o tempo? Que François Villon, por exemplo, continua possuindo uma força de estranheza, ou virou um clássico?

A estranheza certamente permanece. A linguagem pode parecer envelhecida, ou absorvida por um discurso oficial, mas quando olhamos com calma vemos que não é bem assim. Vamos pegar o caso do Machado de Assis, para ficar com um escritor que tem uma linguagem em princípio sem tantas quebras. Eu gosto de ler ele abrindo uma página ao acaso. Já conheço a história, então leio uma página, duas, e pronto. E de repente você percebe que o grande personagem daquelas páginas não é Brás Cubas ou então Capitu, mas a linguagem. É a linguagem colocada de uma forma estranha para mim, para todos, apesar de aparentemente estar dentro de uma lógica linear, quase de revista. E não é. O que é aquilo que encanta e encanta e encanta? É uma maneira de trabalhar a linguagem. E o escritor, e mais radicalmente ainda o poeta, é aquele cara que tem essa consciência do que é a linguagem. Ele sabe que aquela linguagem, se for colocada de uma determinada forma, presta serviço ao poder. Mas se você torcê-la, você começa a criar estranhezas, a libertá-la. Acredito que esta é a primeira consciência do escritor. Traduzi recentemente o “Bateau ivre”, do Rimbaud. Estava numa livraria e abri o poema ao acaso, e comecei a relê-lo. E o que me motivou a traduzi-lo não foram apenas as imagens delirantes, que são belas e novas. Eu vi também uma forma de trabalhar a língua muito interessante, muito precisa, usando cada palavra no lugar certo, com quebras muito interessantes. Quando o texto começava a ficar mais próximo de uma poesia oficial da época, ele colocava uma palavra que rompia com tudo isso, um “cataractant”. Não sei por que aquela palavra entrou ali, mas sem ela o poema se enfraqueceria muito. O “Bateau ivre” só está de pé por causa disso. Porque há transporte, há sonho, e há também essa consciência de linguagem. Rimbaud, ao contrário da imagem corrente dele como um aventureiro louco, era um erudito. Ele leu, estudou tudo. Ele escrevia correntemente latim com 14 anos. E leu todos os poetas latinos no original. É importante algumas vezes desmistificar um pouco, para ver com mais clareza. Ele não foi um ser encantado que subiu aos céus. Ele foi um ser humano com todas as crises, com todo o trabalho que é necessário para se transformar em um grande escritor. E esse trabalho é essencialmente solitário.

Para finalizar, gostaria de lembrar um verso seu: “Nada existe, celebremos aventura”. Isso é liberdade livre?

De certa forma sim. É curioso, porque algumas pessoas lêem esse poema de uma forma negativa. Ele incomoda por um aparente niilismo. E eu vejo como o contrário. Esse poema é exatamente a compra de uma certa liberdade, a percepção de que de fato tudo é transitório e fluído. Nesse sentido, tudo existe e nada existe. É a mesma coisa. Só que não coloquei o “tudo existe”. Poderia ter feito, mas o poema perderia irremediavelmente em força. As pessoas temem esta transitoriedade, e ficam então construindo estátuas. A estátua é uma coisa sólida, enquanto o discurso poético é fluido. Ao mesmo tempo que é pedra, também é ar. Então, estou criando neste verso uma consciência desta transitoriedade, e a liberdade que ela traz. E também o direito de celebrá-la. Sempre tive esta preocupação com a minha poesia. Não vejo a liberdade de uma maneira mítica. Ela é um exercício, uma busca. É uma discussão permanente, são as escolhas de cada momento. E qualquer um pode viver a qualquer instante a liberdade. É claro que isso pressupõe o direito de errar. Nós tropeçamos o tempo todo, erramos aqui, acertamos acolá, mas vamos tentando encontrar um caminho mais ensolarado. E passar essa tentativa de percepção para os outros, usando uma linguagem, no caso, poética. Podia estar usando outras linguagens, mas a poesia está mais próxima da liberdade. Sempre.

Afonso Henriques Neto (Revista Azougue 2006-2008)

9 de novembro de 2013

Baderna




A:Como você começou a coleção Baderna?


R:A Conrad tem como principal fonte de renda quadrinhos e mangá. E por causa desse negócio de quadrinhos, acabei precisando viajar muito para as feiras de livros, para contratar novos títulos. E em cada lugar que ia, aproveitava para procurar as editoras alternativas. Ia para Nova York, visitava a Autono Media. Ia para São Francisco, aproveitava para passar na Equipress, que é a principal editora da costa oeste americana para esse tipo de livro. E essa situação dupla, de ser ao mesmo tempo um empresário no mercado editorial e um aficcionado por estes textos, me levou a situações engraçadas. Um dia estou lá na Equipress, saindo de uma feira de livro com terno e gravata, e uma menina falou: “Mas você é de qual coletivo?”, e eu respondi: “Eu sou proprietário de um coletivo”...Em diversos aspectos, a Conrad não é nada de novo. Eu fui formado por aquele período do final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, do Pasquim, do Versus, que, se você pensar, eram publicações que misturavam política, pop e quadrinhos. É esse o fio da Conrad, ela é basicamente herdeira desse universo. E a gente tem o privilégio de poder ser os próprios mecenas. Vendemos Pokemon, e isso possibilita que possamos publicar o Hakim Bey. A coleção Baderna começou em 2001, e já publicamos desde os Situacionistas, Provos, Krisis e Critical Art Essemble até o Paulo Arantes e um livro sobre a resistência anti-globalização brasileira, Estamos vencendo!, de André Ryoki e Pablo Ortellado.


A:E como foi o contato com o Hakim Bey? Vocês assinaram algum contrato?


R:Imagina. A gente o publicou e, a rigor, não tem contrato de direitos autorais. O que fizemos foi um acordo com ele, e ele ajudou na tradução e tudo. Se quiséssemos ter pirateado, não haveria problemas. Ele não estaria nos processando nem nada, não está preocupado com isso. Porque a idéia para ele é o mais importante. Inclusive, se vai sair com o nome dele ou de outra pessoa, é o menos importante. Trabalhando em editora, você vê várias pessoas que são contra a propriedade privada, e a relação que elas têm com essa história de direito autoral é inteiramente maluca. Querem adiantamentos irracionais, ficam cobrando relatórios, achando que estão sendo lesados. É muito estranho. Mas o Hakim Bey não, ele sempre foi coerente e generoso nesse sentido.


A:Um amigo diz que sempre que achou que não havia nada interessante acontecendo no mundo, descobriu que era ele que estava no lugar errado. É o que me parece que ocorre com a coleção Baderna. Há muita coisa acontecendo que certamente é ressonância dos textos publicados na coleção, e que as pessoas acham que são simples fatos isolados.


R:É verdade. Existe um ceticismo confortável que domina boa parte da sociedade hoje. A idéia de que não tem nada acontecendo, que os jovens são despolitizados. A velha conversa mole. E então de repente surge um levante comoo de Seattle, e as pessoas se surpreendem. Se você pensar, por que não estaria acontecendo nada? Por causa da decepção dessas pessoas com as suas próprias escolhas políticas? Existe uma renovação que é perturbadora para elas.


A:Elas preferem nem olhar, para não ver que o que perdeu sentido é a postura delas, e não o mundo...


R:E é o oposto. Se você não é capaz de renunciar às suas conquistas, você não merece suas vitórias. É necessário sempre se colocar em xeque, queimar os navios. É isso que mantém vivo. Meu pensamento sobre a coleção Baderna é o seguinte: se tudo andar bem, vou ficar rico com ela. Agora, se tudo der certo, não vai ser mais necessário dinheiro... É muito gozado, porque as pessoas falam que a Baderna é a novíssima esquerda, e se você olhar com calma, o que estes autores estão fazendo é retomar os temas da esquerda anterior à vitória do stalinismo, do leninismo. As questões presentes no debate na década de 10 do século passado, liberdade sexual, autonomia. Os lemas: “Nem pátria, nem patrão”. Quem mudou não foram os autores da Baderna, foi a esquerda institucionalizada que, hoje em dia, fica lutando para ter empregos, para ter patrão.


A:Mas sempre existiu esse conflito entre uma esquerda mais libertária, os anarquistas, os socialistas utópicos, e uma esquerda mais institucional.


R:Sim. Os marxistas estavam comprometidos com um projeto positivista, com a idéia de progresso, portanto se contrapunham radicalmente aos anarquistas. Este positivismo é uma questão muito complexa dentro do pensamento de esquerda. Você vai achar em quase todos os grandes nomes dela um encantamento com a idéia de progresso. Ao mesmo tempo, existe um olhar engessado em relação a esses nomes, porque se tenta justificar a história pessoal deles a partir do que eram ao morrer. Existe uma tentativa de criar uma coerência em relação à trajetória deles que é muito negativa. As pessoas tentam entender o Lênin de 1921, e negligenciam os fatos que não justificam aquela imagem. Porque eles não estavam assim tão isolados, eram permeáveis à cultura da época, aos bares que freqüentavam, aos interlocutores outros. Não sei se Lênin esteve ou não no Cabaret Voltaire. Mas passou perto. John Reed, por exemplo. Foi um fundador do Partido Comunista, acreditava piamente na revolução, mas era um libertário total. Para os padrões do Partido Comunista de 1960, de Brejnev, ele seria um anarquista. Um comunista, de jeito nenhum. E é essa corrente dissidente que nós tentamos retomar na Baderna. Tanto que o nosso santo padroeiro é o Maurício Tragtenberg. O pensamento aberto de Maurício Tragtenberg.


A:Ao mesmo tempo, a Baderna é uma coleção bastante contemporânea, que está preocupada com os novos textos, e não com os clássicos...


R:A postura é a seguinte: temos que ajudar na circulação e desenvolvimento de novas idéias. As idéias dominantes não ajudaram nem vão ajudar a criar um mundo melhor. Pelo contrário, combatem as possibilidades de o mundo se tornar um lugar mais livre e justo. E não sabemos de que jeito conseguiremos melhorar o mundo, mas de uma forma ou de outra isso vai acontecer. Me interessa muito o que ainda não foi feito. Então, nosso compromisso é com a circulação destas novas idéias, que podem fomentar alternativas. E existe realmente uma resistência a isso. Eu recebi censuras até de anarquistas por ter publicado o Hakim Bey. E recebi também o maior elogio que acredito que uma editora possa receber. Foi de um integralista. Ele entrou numa livraria de anarquistas, aqui em São Paulo. Ele freqüentava lá, ficava enchendo o saco. E um dia falou para o livreiro: “Olha, respeito essas editoras que publicam Bakunin, Proudhon, Malatesta. Porque, afinal de contas, eles eram filósofos. E já são clássicos. Agora, essa Conrad, eu sei o que ela é. Essa Conrad é parte de uma conspiração anarco-GLS que quer destruir a família brasileira com Hakim Bey e Pokemon”.Ele captou bem a idéia... Anarco-GLS. Me gusta.


A:Essa resistência é a mesma que enfrentam as novas mídias?


R:É parecida. As pessoas se assustam com o perigo de extinção de algumas instituições. Da idéia de artista, das gravadoras, das grandes editoras. As pessoas ficam preocupadas se o download vai destruir as grandes gravadoras. Qual o problema? As pessoas vão parar de fazer música? Não. E certamente se criarão novos meios de distribuição, possivelmente melhores. O que pode acabar são os grandes sucessos, de tocar as mesmas dez músicas em todas as rádios ao mesmo tempo. Ainda bem. As pessoas ficam na defesa de algumas coisas que não têm muito porquê.


A:Temem perder o que nunca tiveram...


R:A indústria não tem favorecido o diálogo. Não tem gerado pluralidade. Pelo contrário, ela tem combatido a diversidade cultural. A estrutura toda é excludente, vai botando para fora o que lhe é estranho. Não permite acesso a várias coisas que as pessoas possivelmente gostariam. Não é um placebo, é veneno mesmo. As editoras também. Não precisamos de best-sellers, de livros que vendem milhões de exemplares. Esses livros normalmente não formam leitores, e qual a real contribuição que trazem? Nós precisamos de maior diversidade de títulos, e da formação de um público leitor para essa diversidade. Então, se as grandes gravadoras, as grandes editoras caírem, o que nós realmente perdemos com isso?

Rogério Campos

Feitiçaria



O UNIVERSO QUER BRINCAR. Aqueles que por ganância espiritual se recusam a jogar & escolhem a pura contemplação negligenciam sua humanidade – aqueles que evitam a brincadeira por causa de uma angústia tola, aqueles que hesitam, desperdiçam sua oportunidade de divindade – aqueles que fabricam para si máscaras cegas de Idéias & vagam por aí à procura de uma prova para sua própria solidez acabam vendo o mundo pelos olhos de um morto.

Feitiçaria: o cultivo sistemático de uma consciência aprimorada ou de uma percepção incomum & sua aplicação no mundo das ações & objetos a fim de se conseguir os resultados desejados.

O aumento da amplitude da percepção gradualmente bane os falsos eus, nossos fantasmas cacofônicos – a “magia negra” da inveja & da vingança volta-se contra o autor porque o Desejo não pode ser forçado. Quando o nosso conhecimento do belo harmoniza-se com o ludus naturae, a feitiçaria começa.

Não, não se trata de entortar colheres ou fazer horóscopos, não é a “Aurora Dourada” nem um pseudo-xamanismo, projeção astral ou uma Missa Satânica – se você quer mistificação, procure as coisas reais, bancos, política, ciência social – não esta baboseira barata da Madame Blavatsky.

A feitiçaria funciona criando ao redor de si um espaço físico/psíquico ou aberturas para um espaço de expressão sem barreiras – a metamorfose do lugar cotidiano em esfera angelical. Isso envolve a manipulação de símbolos (que também são coisas) & de pessoas (que também são simbólicas) – os arquétipos fornecem um vocabulário para este processo &, portanto, são tratados ao mesmo tempo como reais & irreais, como as palavras. Ioga da Imagem.

O feiticeiro é um Autentico Realista: o mundo é real – mas a consciência também o deve ser, já que seus efeitos são tangíveis. Um obtuso acha que até mesmo o vinho não tem gosto, mas o feiticeiro pode se embriagar simplesmente olhando para a água. A qualidade da percepção define o mundo do inebriamento – mas, sustentá-lo e expandi-lo, para incluir os outros, exige um certo tipo de atividade – feitiçaria.

A feitiçaria não infringe nenhuma lei da natureza porque não existe nenhuma Lei Natural, apenas a espontaneidade da natura naturans, o Tao. A feitiçaria viola as leis que procuram deter seu fluxo – padres, reis, hierofantes, místicos, cientistas & vendedores consideram a feitiçaria uma inimiga porque ela representa uma ameaça ao poder de suas charadas & à resistência de sua teia ilusória.

Um poema pode agir como um feitiço & vice-versa – mas a feitiçaria recusa-se a ser uma metáfora para uma mera literatura – ela insiste que os símbolos devem provocar incidentes assim como epifanias particulares. Não é uma crítica, mas um refazer. Ela rejeita toda escatologia & metafísica da remoção, tudo que é apenas nostalgia turva & futurismo histérico, em favor de um paroxismo ou captura da presença.

Incenso & cristal, adaga & espada, cetro, túnicas, rum, charutos, velas, ervas como sonhos secos – o garoto virgem com o olhar fixo num pote de tinta – vinho & haxixe, carne, iantras & gestos – rituais de prazer, o jardim de houris & sakis – o feiticeiro sobe por estas serpentes & escadas até o momento totalmente saturado por sua própria cor, em que montanhas são montanhas & árvores são árvores, em que o corpo torna-se eternidade & o amado torna-se vastidão.

As táticas do anarquismo ontológico estão enraizadas nesta Arte secreta – os objetivos do anarquismo ontológico aparecem no seu florescimento. O Caos enfeitiça seus inimigos & recompensa seus devotos... este estranho panfleto amarelado, pseudonímico & manchado de pó revela tudo... passe-o adiante por um segundo de eternidade.

Hakim Bay

4 de novembro de 2013

saque/dádiva nomadismo/habitar traição/vínculo invenção/experiência

Parto agora
aqueles que sabem
o que estou falando
partirão comigo
em diferentes direções

Han Shan, via Bringhurst

saque/dádiva
nomadismo/habitar
traição/vínculo
invenção/experiência

não como polos de oposição mas como pares complementares

ver mais:Revista Azougue

Inquietação-guia: uma trajetória da revista Azougue, diálogo com o editor Sérgio Cohn


HP Qual era o ambiente literário quando a revista Azougue começou, e quantos anos você tinha?
SC A primeira Azougue saiu em 1994, quando eu tinha 20 anos. O contexto em torno da revista era muito diferente de hoje. As coisas melhoraram muito nesses 15 anos. Se você pensar a poesia brasileira daquele período, tinha acontecido alguma coisa nos anos 80, que foi principalmente a publicação em editoras profissionais dos poetas marginais da década de 1970, em coleções como Cantadas Literárias, da Brasiliense, que editou o Waly Salomão, a Ana Cristina César, o Chacal, o Cacaso e o Leminski, e Olho da Rua, da LP&M, que editou nomes como o Roberto Piva. Os poetas que fizeram os anos 80 foram poetas da década anterior, que começaram com a abertura a serem absorvidos por uma juventude mais ampla. Então, uma poesia que seja uma tradução dos anos 80 não existe, a não ser nas letras do rock brasileiro. Você vai ter depois, no fim da década, uma coleção clássica que foi a Claro Enigma, editada pelo Augusto Massi. Mas lá também, se você for ver os poetas, são nomes como Rubens Rodrigues Torres Filho, Orides Fontella, Francisco Alvim, que já estavam na estrada faz algum tempo. O que tem, e talvez seja o primeiro poeta que possa dizer algo sobre o que surgiria nos anos 90, é o Paulo Henriques Britto. Ele possui uma das características que aconteceriam nos anos 90, que é uma volta às formas tradicionais, mas que não é por uma reação a um movimento anterior de abertura, como é a geração de 45, mas uma volta ao formalismo que me parece por motivos mais existenciais, porque tudo estava tão fragmentado que as pessoas precisavam achar alguma baliza para a sua poesia. É o que ocorre também com nomes como Carlito Azevedo e Claudia Roquette-Pinto, que surgem no Rio de Janeiro na virada da década. A experiência de linguagem talvez seja a grande marca da poesia que surge nesse momento. Um caso exemplar é o Fernando Paixão, que faz um exercício formal no livro 25 Azulejos, criando poemas numa forma fixa de 11 versos, alguns com grande beleza. Mas, quando eu tinha 20 anos, as livrarias eram vazias de poesia. O grande fator é esse.
HP É o contrário do exagero que existe hoje.
SC Isso. A Brasiliense havia quebrado, você tinha os resquícios dos livros dela nas estantes apenas. A Companhia das Letras tinha um livro ou outro de poesia contemporânea no catálogo, mas era exceção. Então, em 1994, a Iluminuras começa a publicar uma nova geração de poetas, que foram muito importantes para a gente, como primeiro surgimento de uma poesia que tinha a cara dos anos 90. Eram livros como o Solarium, do Rodrigo Garcia Lopes, e o LSD Nô, do Ademir Assunção. Dois poetas que vinham de Londrina. E os dois tinham uma característica que acho muito forte nos anos 90, que é um pluralismo de linguagem. Eram poetas que traziam, no mesmo livro, experimentos que se aproximavam do concretismo e poemas que se aproximavam da geração Beat, por exemplo. Você tinha desde o hai-cai até poemas quase em prosa. Esses poetas liam com a mesma naturalidade Augusto de Campos e Roberto Piva. O perigo que havia neles é que algumas vezes é difícil encontrar a voz do poeta por trás dessas experiências. Cada poema é tão diverso um do outro que você não consegue identificar o autor por trás dos textos. O perigo dessa abertura total é de virar tudo um exercício de estilo. A poesia dos anos 90 não cria uma cara muito definida, ele se caracteriza pela pluralidade, pelo exercício de linguagem e muitas vezes por um certo afastamento entre poesia e vida. É o fica claro anos depois, com o boom da editora Sette Letras, que utilizando o avanço tecnológico que permitia edições baratas em baixa tiragem, publica dezenas de livros de poetas novos em pouquíssimo tempo. E daí sim a poesia dos anos 90 se apresenta a público. A Sette Letras virou a casa da poesia brasileira dos anos 90, todo mundo está lá, e a importância dela ainda precisa ser contada.
HP Mas isso já foi posterior ao surgimento da Azougue.
SC Sim. Quando a Azougue surgiu, como falei, as livrarias estavam vazias de poesia. E não havia revistas de poesia circulando, também. Eu me lembro de uma revista que circulava com mais afinco, que era a Cigarra. Uma revista pequena, simpática, de Santo André, que apresentava textos de poetas novos. Ela publicou um poema meu, e recebi uma carta elogiosa do Uilcon Pereira, que é um escritor fantástico de Araraquara que merecia mais atenção. Ele dizia que meu poema era “uma boa surpresa do final dos tempos”. Aquilo foi muito importante para mim. O curioso é que ele morreu pouco depois. Mas, voltando à questão do vazio, a Azougue foi uma reação a esse cenário. O que a gente percebeu, e se tornou a grande questão para a gente, é que os poetas que a gente lia eram inacessíveis para a nossa geração. O Claudio Willer estava há 13 anos fora de catálogo, o Roberto Piva estava há nove anos sem publicar, o Afonso Henriques Neto estava sumido. As nossas referências não existiam para a nossa geração, não tínhamos como compartilhar eles.
HP E como aconteceu desses caras, que eram fantásticos, virarem referência para vocês? Quem eram vocês e onde vocês descobriram eles?
SC Foi um bom acaso. Quando adolescente eu gostava de poesia, mas havia um problema porque a poesia brasileira que circulava, que a gente tinha acesso, não nos respondia, digamos assim. Ela parecia muito longe da minha vida. Eu encontrava o retrato mais próximo do que eu era na letra de música. O que aconteceu é que um dia mágico da minha vida, um dia fundamental, eu e dois amigos, o Juliano e o Ferraz, que posteriormente fariam o Azougue comigo, adolescentes ainda, fomos fazer um sarau simbolista para tomar uma garrafa de absinto que eu havia ganho do meu avó. Ela estava perdida, empoeirada na estante, e eu pedi para ele que me deu. Então pegamos o absinto, fomos para um sítio, e levamos os livros de poesia que a gente lia na época, o Matrimônio do Céu e do Inferno do William Blake, o Temporada no Inferno do Rimbaud, Pequenos poemas em prosa do Baudelaire. As nossas referências eram todas antigas. E eu levei, por acaso, um livro do Edson Passetti chamado Das fuméries ao narcotráfico. Era uma análise sobre o tráfico de drogas, e que no fim dizia que se era para discutir drogas, era necessário ver os textos literários que foram feitos sob ou sobre o efeito de drogas. E tinha uma parte chamada Estilhaços, que era uma série de textos baseados em drogas. De Rimbaud a Ginsberg. Meu pai estava lendo o livro como sociólogo, e eu peguei ele sem avisar e pus na mochila. Então, a gente tomou absinto, fumou, e começou a leitura. Estava chovendo forte, e a água entrava pela persiana fechada. De repente, o Juliano pega o livro do Passetti e começa a ler um poema: “Eu direi as palavras mais terríveis esta noite/ enquanto os ponteiros se dissolvem/ contra o meu poder/ contra o meu amor...” E o poema acabava com “eu apertava uma árvore contra meu peito como se fosse um anjo/ meus amores começam crescer/ passam cadillacs sem sangue os helicópteros mugem/ minha alma minha canção bolsos abertos da minha mente/ eu sou uma alucinação na ponta de teus olhos”. Ele acaba de ler o poema e nós estávamos estatelados. Nunca tivemos antes uma experiência como aquela. E nós passamos o resto da noite só lendo esse poema, tentando entender aquilo. Porque ali havia a mesma voz que a gente encontrava num Jim Morrison ou num Lou Reed, só que falando sobre São Paulo. Havia a referência existencial e a referência geográfica. Era uma voz que a gente podia entender como nossa. Naquele momento a poesia apareceu como uma possibilidade. Ela não era mais uma coisa presa a um passado, mas fazia parte de nosso tempo. A única referência ao autor do poema, o Roberto Piva, era uma nota de pé de página dizendo que era um poeta entregue à rebelião constante e que tinha passado 13 anos experimentando cogumelo e ácido lisérgico. Perfeito para encantar adolescentes...
HP E daí?
SC Daí eu voltei para São Paulo obcecado pelo Piva, sai em busca de qualquer coisa dele. Eu comprei a Antologia Poética, que a LP&M tinha lançado dele, e procurei meses e meses pelo Paranóia, que era o livro dele onde estava o poema que tínhamos lido no sítio, o Meteoro. Daí um dia eu estava com a minha namorada na época, que também faria parte da Azougue, a Priscila, e a gente entra num sebo escondido numa galeria na rua Augusta, e eu pergunto para o vendedor: “Você tem o Paranóia do Roberto Piva?” Ele vira e fala “Você veio no lugar certo, garoto”. E pega, tira uma chave do bolso, vai até a escrivaninha, abre a primeira gaveta, tira uma caixa de madeira, abre a caixa, tem um papel celofane violeta, desembrulha e lá está o Paranóia. Eu deixei quatro mesadas minhas lá. Quando estávamos indo embora, o cara chegou para a Priscila e cochichou “larga esse cara, porque ele é perigoso”. O que criou um clima mais fascinante para a gente. O Piva significava perigo. Não há coisa mais maravilhosa, quando você é adolescente, do que descobrir que a poesia pode significar perigo. E o Paranóia virou um tipo de amuleto para mim, um objeto de poder, para usar a terminologia do próprio Piva.
HP Isso com quantos anos?
SC Eu devia ter uns dezessete, dezoito anos. E começamos a pesquisar o Piva e os poetas em torno dele. Eu e a Priscila íamos todas as tardes para a Biblioteca Municipal Mário de Andrade, no centro de São Paulo, e ficávamos lendo poesias e copiando a mão. A Pri foi uma companheira maravilhosa naquele momento. Ela tem um bloco de 500 páginas de poemas que eu copiei e passei a limpo a mão. E foi lá que tive acesso ao Willer, ao Afonso Henriques Neto. A gente começou a mergulhar nessa geração, guiados pelos próprios livros dos poetas, que sempre, em algum momento, falavam uns dos outros. Havia uma intertextualidade nos poemas que nos serviam de guia de leitura. Você ia criando uma rede, descobrindo cada vez mais poetas. O Roberto Piva e o Claudio Willer, especialmente, são poetas-críticos, a poesia deles está dialogando abertamente com outros textos, não apenas citando, mas interpretando eles.
HP Então parece que a ditadura foi menos brava com a poesia do que foi com a música, porque vocês encontravam os livros na biblioteca.
SC Pelo contrário. Um dos grandes problemas que a gente tinha era exatamente esse. Entre 1964 e 1981, os livros não existiam na biblioteca. Então você tinha o Paranóia e o Piazzas do Piva, que são de 1963 e 1964, e você depois só ia encontrar depois o 20 poemas com brócolis, que é de 1981. O Willer também, você tinha o Anotações para um apocalipse, de 1964, e depois só o Jardins da Provocação, de 1981. Os livros intermediários eram inacessíveis. Era um vazio de 17 anos.
HP Mas a produção editorial também ficou parada nesse tempo, não?
SC Mais ou menos. A partir de 1976 ela começa a ser retomada. Sai o 26 poetas hoje, da Heloísa Buarque de Hollanda, o Massao Ohno volta a publicar em São Paulo. O Piva e o Willer ficaram sem publicar entre 1964 e 1976, e o Piva tem um discurso de que foi por motivos existenciais, mas eu duvido. Se um editor batesse na porta deles certamente eles teriam algo para publicar debaixo do braço, e deve ter livros do Piva perdidos ou guardados em seus armários...
HP E como você conheceu pessoalmente eles?
Um dia eu descubro por uma nota no jornal que o Claudio Willer faria uma palestra numa biblioteca pública na zona norte de São Paulo, do outro lado da cidade. E eu e a Priscila pegamos um ônibus correndo para lá. E teve uma coisa importante para mim, porque eu estava fazendo cursinho, e perguntei para o Willer qual curso eu devia prestar vestibular para ser poeta. E ele respondeu “qualquer um, menos letras”. Ele até hoje fica bravo quando lembro isso, mas o argumento era perfeito, que o curso de letras iria me domesticar a um certo grupo de autores e interpretações. Eu fui fazer filosofia, não deu certo, mas tudo bem. E foi a primeira vez que eu fiquei cara a cara com um poeta que admirava. Eu lembro que o texto da quarta capa da Antologia Poética do Piva dizia que ele era como um fantasma andando pelas ruas da cidade. E eu andava por aquelas mesmas ruas que ele freqüentava, me perguntando se ele estava lá, se eu tinha passado por ele. Porque eu não sabia como era a cara dele. Havia toda uma mística em volta disso, “quem são esses caras que frequentam a mesma cidade que eu mas ao mesmo tempo são invisíveis?”
HP Daí vocês começaram a revista?
SC Eu e o Danilo Monteiro, que era um amigo meu que também escrevia poesia, já estávamos conversando fazia um tempo em editar uma revista. Um dia, conversando num bar na Rua da Consolação, o Chamego, sobre entrevistar esses caras e fazer uma publicação, decidimos ligar para o Piva. Estávamos eu, o Danilo, a Priscila e o Daniel Chaia, que depois virou cineasta. Eu fui até o caixa do bar e peguei uma lista telefônica, achei o telefone do Piva e liguei para ele de um telefone público que tinha dentro mesmo do bar, ao lado da porta. Quando atendem, pergunto se podia falar com o Roberto Piva. “É ele”. “O poeta Roberto Piva”. “Sim”. E eu conto a história, que queríamos entrevistá-lo para uma revista, que éramos jovens fãs de sua poesia. E ele diz “me encontre em quinze minutos num bar na Angélica, o Luar de Agosto, eu vou estar com calça jeans, um tênis de caminhada e uma camisa de caçador”. O bar era lá perto, então a gente vai à pé e encontra ele. A primeira coisa que ele fez foi se recusar a sentar de costas para a rua, dizendo que aprendeu isso com os gangsteres. A gente conversou por horas, ele deu de presente para a gente uns exemplares do Piazzas e o livro da Maria Sabina, que é uma curandeira mexicana que fazia uma vigílias com cogumelos, uns poemas lindos, completamente surrealistas. Depois eu publiquei um texto fantástico do Jerome Rothenberg sobre ela. E a gente começa a manter contato com o Piva, começa uma relação pessoal de amizade, de freqüentar a casa dele. A gente ia lá e passava tardes e tardes tomando cerveja, ele lendo poesia para a gente, os poetas expressionistas alemães, os surrealistas, o Pasolini. A casa era minúscula, em Santa Cecília, entulhada de livros. A gente enchendo a cara de cerveja e mergulhando em poesia. O Piva tem uma capacidade incrível de viver a poesia.
HP E a revista começou.
SC Não. A revista não ia para a frente, até que aconteceu uma coisa curiosa. Um dia, eu estava tomando cerveja com o Daniel Chaia na escola de comunicação e artes da USP, e quando a gente vai embora, no carro dele, tem um cara pedindo carona, com aquelas pastas gigantes de artistas plásticos. E a gente dá uma carona para ele. Ele entra, a gente começa a conversar e está tocando o Loki, do Arnaldo Baptista. E a gente começa a cantar juntos as músicas, ele conhecia todas as músicas de cor também. E eu falo para ele que sempre sonhei fazer uma reportagem new journalism on the road, entrevistando o Arnaldo Baptista em Juiz de Fora. E ele disse que também Era um artista plástico, o Eduardo Verderame, que ficou logo nosso amigo. A balada seguiu noite adentro. A gente ficou enchendo a cara, andando pela cidade, fomos ver o Império dos sentidos na Cinemateca, aquele filme erótico japonês, conversamos a noite inteira. No dia seguinte ele me liga e diz que queria apresentar outro amigo dele que também gostaria de fazer uma revista, para a gente começar a trabalhar juntos. Esse amigo é o Alexandre Barbosa, que morava no mesmo bairro que eu, o Brooklin. A Azougue começou desse encontro por acaso na rua.
HP Na época era um fanzine?
SC Saíram dois números como fanzine, xerocados, 100 exemplares. E é uma coisa curiosa, porque isso era em 1994 e ninguém tinha computador. Computador ainda era uma coisa rara. Então a gente ia para a casa de amigos ricos, digitava os textos, imprimia e ia montar os fanzines no processo recorta-cola. As ilustrações eram por xérox. A gente não tinha nenhum conhecimento de como fazer uma revista, de mancha de texto, etc. Era completamente instintivo. No primeiro número, a gente traduziu Kenneth Rexroth, cummings e Cortázar, e publicou alguns poemas nossos, que foi a segunda questão que entrou na revista. O Alê Barbosa já tinha um livro de poesia publicada. Ele tinha essa aura de “já sou poeta édito”. Mas eu tinha total ciência de que não tinha texto para um livro. Estava com vinte anos, estava aprendendo a escrever ainda, sabia disso, não tinha nenhuma chance de ter um livro publicado tão cedo. Ao mesmo tempo queria escoar minha produção. Eu escrevia poemas, o que eu não tinha era um livro. Se você não tem 30 poemas bons para fazer um livro, você vai esperar dez anos até mostrar suas coisas, ou precisa achar outra maneira de divulgá-los. E a revista surgiu também como esse veículo de divulgação de nossos próprios textos. A gente brincava que era como o disco compacto da poesia. E teve resultado. A minha poesia amadureceu muito em torno das respostas que eu tinha desses poemas que publicava na Azougue. As pessoas criticavam, analisavam, elogiavam. O segundo número nós publicamos o Gary Snyder e alguns poemas inéditos do Piva, inclusive um divertidíssimo e raro sobre o Paulinho Paiakan. Esse número está perdido, não conheço mais ninguém que tenha ele. A gente publicou esses dois números em xérox, com poucos exemplares. Era divertido, mas era frustrante ao mesmo tempo, porque não tinha uma circulação além dos amigos.
HP E como virou uma revista?
SC A gente começou a pensar como viabilizar uma tiragem maior, mas não tinha dinheiro. Daí eu descobri que a ECA-USP tinha um programa de fomento a revistas, utilizando a própria gráfica deles. O diretor era um espanhol que estudava o Buñuel e companhia, e eu invadi a sala e fiz um sermão. Disse que eles só fomentavam revistas de quadrinhos, e que era uma escola de comunicação que precisava de outras linguagens, e que ele tinha que financiar uma revista de poesia. O cara disse “Tá bom, tá bom, tá bom”, e escreveu uma carta autorizando que eu imprimisse um número na gráfica, assinou a carta e me despachou. O problema é que até hoje ele não sabe que eu não era aluno da USP, e que então não poderia ter a permissão de usar a gráfica. Como ele não me perguntou, eu também não disse nada. (risos) E daí a gente tinha uma revista para fazer, com 48 páginas e tiragem de 500 exemplares. Então a gente começou a pensar no conteúdo da revista com outras perspectivas. Naquele primeiro número nós publicamos o Orlando Parolini, que era uma figura fantástica, um poeta que atuava nos filmes do Carlão Reichenbach, mas que nunca teve seus livros publicados em vida, e que era inteiramente desconhecido. Um dia eu estava de carro com o Daniel na avenida Paulista, e a gente vê o Carlão, que era um diretor já importante, esperando no ponto de ônibus, porque ele tinha a teoria de que cineasta de verdade tem que andar de ônibus, para ver as pessoas. Uma teoria que devia ser melhor difundida. E nós demos uma carona para ele, eu falei da revista, do meu interesse pelo Parolini, e no dia seguinte ele me dá uma pasta de textos do Parolini acompanhados por uma apresentação que ele tinha feito na época que o Parolini morreu, alguns anos antes. Além disso, eu entrevistei o Claudio Willer, que foi a primeira entrevista da minha vida. Eu tinha 20 anos, mas era bastante inepto nessas coisas. Eu me lembro que fiquei em pânico, a sala girava à minha volta. A entrevista foi excelente, mas quando fui transcrever a fita eu tive um problema sério, porque todas as respostas dele começavam com “não é bem assim” (risos). Então eu percebi que eu era um imbecil, mas que não podia mostrar isso ao mundo. A entrevista foi boa pelas respostas, mas não pelas perguntas. Então eu cortei todas as perguntas, e transformei a entrevista em depoimento. Foi uma defesa minha. O engraçado é que esse depoimento marcou a linguagem da Azougue, as pessoas começaram a pensar os depoimentos seguintes usando como base esse texto do Willer. Então se criou uma voz por um erro. O Willer fez uma entrevista muito generosa, falava do contexto da poesia naquele momento e contava a história da geração dele. Foi a introdução ideal para o que estávamos pensando em fazer. Mas também refletia sobre o momento, inclusive falando com bastante lucidez sobre a internet. Ele falava uma coisa maravilhosa, que assim como Buñuel fez a poesia invadir a linguagem cinematográfica, tinha-se que fazer a poesia invadir a internet. Não utilizar a internet como veículo de poesia, mas ter uma visão poética da internet. Existe uma diferença muito grande entre uma coisa e outra. E isso no começo de 1995. Ele já estava antenado e preocupado com o que seria o impacto da internet na informação naquele momento.
HP Então vocês tinham a preocupação de dar voz ao poeta?
SC Com certeza, essa era a nossa questão fundamental. A gente sabia muito bem que não adiantava fazer textos críticos, porque as pessoas não conheciam a poesia. Desde quando a gente começou a pensar a revista, a gente já sabia que precisava apresentar o poeta e a sua poesia. Então as antologias de textos da Azougue já começaram muito grandes, com 30, 40 textos por poeta homenageado, quase um livro abrangendo toda a trajetória dele. E a gente fazia isso porque sabia que ou a gente apresentava aqueles poetas, ou as pessoas não teriam acesso, porque eles estavam fora das livrarias. E isso norteou muito o trabalho da Azougue e acho que diferenciou ela das outras revistas de poesia, mesmo quando houve um boom de revistas de poesia alguns anos depois. O que marcou a Azougue e fez ela dar certo foi essa preocupação didática, de formar leitor. Ao mesmo tempo, tentávamos explicar o menos possível a revista. O editorial era um poema coletivo, sem nenhuma referência direta sobre o conteúdo da revista. Na verdade, era um comentário nosso, inteiramente poético, sobre o conteúdo, as intenções e o processo de feitura. Mas de uma maneira bastante hermética. Os dois primeiros eu fiz com o Maurício e o Danilo. E havia os agradecimentos, ou “homenagens a trois”, que eram na verdade brincadeiras com pessoas ou personagens que gostávamos, criando um tipo de hai-cai de pessoas. Como “Alfred Jarry, Qorpo Santo & Campos de Carvalho”. Ou “Leonardo Pareja, Unabomber & Edmundo, o animal”. Nós também homenageávamos revistas independentes que gostávamos na época, como “Delicious babes on fire, Luke Skywalker with diamonds & Strange things are happening”. Isso tudo confundia um leitor que não tivesse senso de humor. Juntar o último marginal romântico (Pareja) que tocava violão nos telhados da cadeia, com um terrorista ecológico e um jogador de futebol era estranho dentro de uma revista de poesia. Mas se pensarmos bem, era exatamente o que a gente queria, criar um campo magnético de atitudes em torno da Azougue.
HP E como vocês comercializaram a revista?
SC A gente achou que a revista iria bombar. Quando o primeiro número ficou pronto, o que demorou alguns meses, a gente saiu da gráfica com uns exemplares tão fascinados com a beleza da revista (olhando hoje, vemos que uma opinião inteiramente equivocada), que corremos empolgadíssimos para um bar para comemorar, sem um puto no bolso, achando que ia vender alguns números lá mesmo para pagar a conta. Não tínhamos dúvida que todo mundo iria querer comprar aquele objeto maravilhoso. Mas é claro que até as duas da manhã não tínhamos vendido nada, e nem sabíamos como pagar a conta. Eu tive que ligar para uma amiga e pedir para ela ir lá no bar pagar a conta para a gente. E daí começamos a sentir o peso da coisa, vimos que distribuição é outra história. A gente não tinha acesso às livrarias, então decidimos fazer eventos de lançamento. Havia uma oficina na Vila Madalena chamada Oficina Pau-Pau, que era uma oficina de marcenaria para menores abandonados, e que era um lugar muito interessante, porque era uma portinha toda pintada, se não me engano pelo Enio Squeff, que ia dar num corredor com a oficina no fundo. Eu sempre brincava que me lembrava o Lobo da Estepe. “Só para loucos” devia estar escrito naquela porta, que só aparecia para alguns, passando despercebida para os transeuntes. E eles emprestaram para a gente o espaço, e a gente fez um evento com cerveja, shows e leituras de poesia lá. Shows de bandas novas e leituras de poesia da gente. O Willer leu também. E a gente fez o lançamento lá, a revista era o ingresso, e vendeu uns 300 exemplares que possibilitou o capital para fazer o número seguinte. E aquilo tornou a revista visível para o mundo. Porque foi um evento que reuniu estudantes de artes plásticas, cinema, antropologia, letras, música. E todo mundo, com a revista na mão, acabou por lê-la.
HP E a coisa da poesia falada, existia em São Paulo?
SC Não. Não existia poesia em São Paulo naquela época, seja falada ou escrita. Em 1996 a gente lançou o segundo número, que foi impresso numa gráfica profissional que o Massao Ohno conseguiu para a gente. Esse segundo número tem o Roberto Piva e um texto do Antonio Bivar sobre o Celso Luiz Paulini. O lançamento dele foi também na Oficina Pau Pau, e marcou a primeira ruptura dentro da revista. Já existia uma tensão dentro da Azougue entre a turma do Alê e do Edu, que não gostavam dos poetas que estávamos homenageando, e eu, o Danilo e o Maurício Ferreira, que era um aluno de cinema da ECA e poeta que virou um dos principais azougueiros. O Maurício era de Jaú, a mesma terra da Hilda Hilst e do Celso Luiz Paulini. Chão de poetas. O apartamento do Maurício na rua Frei Caneca virou nosso quartel general, eu praticamente morava lá com a Pri. Descobri outro dia que a namorada do Maurício na época lançou um livro de memórias onde ela trata eu e a Pri de forma bastante agressiva, como dois vagabundos que vão viver de favor lá...
HP Maravilha. Falavam o mesmo do Guy Debord. (risos)
SC Mas, voltando, a tensão começou a crescer dentro da revista, e explodiu no lançamento. O Piva fez uma leitura, e recitou um poema em que ele dizia que se o PT chegasse ao poder ele fugiria para a Colômbia “na penumbra de um fusquinha verde”. Sempre adorei essa imagem, é uma grande demonstração do tipo de humor dele. E um amigo do Alê começa a berrar da platéia que o Piva era fascista. Daí o Piva leu o poema até o fim e começou a chamar quem estava gritando para ir ao palco enfrentá-lo. Ninguém aparece, e daí acontece uma coisa incrível. Porque o Piva pega uma garrafa de cerveja, desse do palco, e começa a bater ela contra uma pilastra para quebrar ela e atacar o cara. O Piva é um cara forte, mas por algum milagre, por mais que ele batesse a garrafa não quebrava. O Roberto Biccelli, que é um poeta amigo dele, vai acalmá-lo mas acaba pisando num pedaço de madeira com um prego, e começa a pular. Então uma cena que era para ser trágica começa a ficar cômica. E o Piva volta para o palco, já se divertindo, e pega um tambor e diz: “então vamos cantar um mantra para expulsar os brochas do ambiente”. E começa a bater o tambor e gritar “brocha, brocha”. E a platéia inteira acompanha, e o pessoal dissidente vai embora. Lá fora rola uma briga entre a gente, e a equipe se divide. Nós continuamos e o Alê e o Edu saem fora da revista. Aquele dia foi incrível. O Piva lendo, eu li o Garota dadá, que falava de uma trepada no banheiro de um bar com uma menina “com gosto de porra na boca”. Por incrível que pareça, aquilo ainda incomodava em 1995. E o Maurício leu o Visão do apocalipse com caxumba, que virou um clássico. É um poema inacreditável. No poema tinha um verso que era “a puta que o pariu com o sonho pacífico das bucetas”. E o Piva ficou fascinado com aquilo, subiu no palco e fez outro mantra com isso por dez minutos, batendo o tambor e repetindo esse verso. Depois o Maurício leu os Ghost tantras do Michael McClure, os poemas que utilizam uma linguagem animal, “GRHHHHH, RAHHHH, GRAHL”. Aquilo tudo era realmente maluco.
HP E as pessoas se assustavam ou entravam nessa?
SC Algumas se assustavam. Lembro que o Cazé, da MTV, estava chegando em São Paulo e foi lá nos ver. E saiu dizendo que nós éramos uns selvagens. Mas era claro para as pessoas que havia alguma coisa acontecendo ali, e era uma coisa viva. E a gente viveu de algumas generosidades incríveis. No primeiro número, nós fizemos dois lançamentos. O da Oficina Pau Pau e outro no Cinema do Banco Nacional, que depois virou Unibanco, onde passou o Filme demência, do Carlos Reichenbach, que tem o Parolini e o Willer no elenco e é um dos maiores filmes brasileiros. Abrindo a sessão passou o Juvenília do Paulo Sacramento. O Juvenília foi um filme que marcou a nossa turma lá em São Paulo. Na primeira Azougue a quarta-capa é um fotograma do filme. O Juvenília era um filme todo feito com fotografias branco e preto, mostrando um grupo de jovens sorridentes e saudáveis destrinchando um cachorro morto na rua. Muito pior que chutar. E o filme acabava com um cachorrinho olhando a cena com cara de triste, e aplausos ao fundo. Eu não conhecia o Paulo, mas a gente viu o filme na estréia, numa sessão no MIS. Foi a Pri que me levou, porque ela tinha visto o primeiro filme do Paulo, Ave, onde um cara degola uma galinha e injeta o sangue dela na veia. E essa sessão tinha uma série de curtas, que mostrava bem o clima da época. Eram filmes inteiramente inócuos, um deles tinha cena de torturas denunciando a ditadura vinte anos depois. E todo mundo aplaudia, por pior que fosse o filme. De repente, entre um filme e outro, passa umas garotas vestidas de aeromoças dando sacos para vômito de avião para a platéia. E fica aquele clima, o que está acontecendo. E passa o Juvenília. Quando acaba o filme começa uma vaia terrível na platéia, e levanta o Carlão Reichenbach e o Jairo Ferreira e começam a gritar “bravo! Bravo!”. Daí o Maurício levanta também e começa a gritar, e eu também, e a Pri. E ficou isso, uma vaia imensa e dez ou quinze cabeças gritando “bravo!” A gente saiu da sessão e ficou andando pela cidade noite adentro, conversando sobre o que tinha acontecido. De que ainda existia a possibilidade de mexer tanto com a platéia a ponto de fazer ela vaiar. Contra a impressão modorrenta de que estava tudo morto, aquela vaia foi um sinal de vida incrível.
HP As pessoas estavam aplaudindo domesticamente...
SC E de repente ele conseguiu tirar uma vaia. Naquele momento a gente sentiu que existia uma possibilidade, que a arte estava viva. Aquilo norteou muito a gente para fazer a Azougue. E foi um grande orgulho meu passar o Juvenília naquele lançamento. Eu me senti me aproximando da geração que me interessava, comecei a achar os parceiros. E a revista toma um corpo nesse sentido. O primeiro número foi ignorado, mas quando saiu o segundo número a gente começa a ter notícias no jornal. Sai alguma coisa na Folha, e rola uma história engraçada, porque o Jornal da USP faz uma matéria. E meu pai fica orgulhoso, eu tinha desistido da universidade mas agora ia sair no jornal dela, no lugar em que ele trabalhava. E espera ansioso pela matéria. Mas quando sai a notícia a manchete é “Gangsteres, poetas e delirantes”. Ele ficou possesso. (risos) Ao mesmo tempo, foi quando realmente começamos a perceber que estávamos retomando uma geração de poetas, que os nomes que nos interessavam estavam sempre unidos por amizade e interesses. Uma noite, na casa do Maurício, ele me mostrou um livro de um poeta que ele havia conhecido em Florianópolis, quando morou lá. O Maurício tinha trabalhado como marinheiro, tentado se aventurar pelo mundo, e foi parar na Ilha do Desterro. E, uma noite, foi num cinema lá ver um filme do mestre Mizoguchi, o grande cineasta japonês. E, quando acabou o filme, ele estava aos prantos e ficou com vergonha de se levantar para ir embora. Quando finalmente decidiu sair, viu um homem também enxugando as lágrimas, e os dois começaram a conversar. Era o Rodrigo de Haro, e ele deu um livro, Amigo da labareda, para o Maurício. Nessa noite, ficamos lendo o livro encantados com a beleza e a força dos poemas. E varamos a noite, lendo e conversando. A gente passava noites em claro no apartamento do Maurício lendo e discutindo. Aquela foi a nossa formação. Daí, nesse dia, ficamos lendo um poema do de Haro sobre Dionísio, e fomos ler Baudelaire, a relação do Dionísio com Midas, tudo isso. E uma hora lembramos que não tínhamos jantado, e que como sempre não havia nenhuma comida na casa. E saímos, lá pelas quatro da manhã, numa noite chuvosa, para caçar algum lugar aberto. Estava tudo escuro, fechado, mas uma hora nós viramos na rua Augusta e está lá o letreiro dourado: MIDAS LANCHES. O lugar virou imediatamente nossa segunda casa, e foi a primeira de uma série de coincidências que aconteceram em torno da descoberta do de Haro. A segunda foi que o posfácio do Amigo da labareda era do Willer, que morava no prédio da frente do Maurício. Nós esperamos até uma hora possível, umas nove da manhã, e corremos para falar com ele. Quando ele abriu a porta, estava de roupão com um livro aberto na mão do Rodrigo de Haro. Ele disse que fazia anos que não lia o Rodrigo, e que nesse dia acordou com vontade de relê-lo. E nos passou o telefone do Rodrigo. O Maurício não tinha telefone em casa, então corremos para a minha casa, para ligar para ele. Quando liguei, o Rodrigo atendeu e contei que tinha uma revista de poesia e gostaria de entrevistá-lo. E ele perguntou o que estava saindo na revista. Falei do Piva e do Willer, que agora já sabíamos amigos dele, mas quando falei do Paulini ficou um silêncio na linha. Daí o Rodrigo falou que desde a morte do Paulini ele não tinha mais lido ele, e que nessa manhã tinha acordado pensando nele e pegado o livro para reler. E que estava fazendo isso naquele exato momento. Essa série de coincidências, ou acasos objetivos, começaram a ser vistas por nós como um sinal de que estávamos descobrindo algo poderoso.
HP E daí a revista deslanchou?
SC Depois do segundo número, acontece uma série de mudanças na revista. O Maurício sai, por motivos pessoais, deixando inédito o melhor livro de poesia da geração, Malasartes. E eu me separo da Pri. Assim, a equipe sofre toda uma reformulação. Eu tinha convidado um amigo do Danilo, o Bruno Zeni, para fazer um encarte na revista, que ele chamou de Várzea, falando sobre outros assuntos que não poesia. Estava sentindo falta disso. E ele acabou co-editando também a Azougue. O Alê Ferraz chegou de uma temporada em Londres, e se aproximou da gente também. Formamos uma trinca que editou os três números seguintes. A primeira mudança que fizemos foi chamar artistas plásticos da nossa geração para ilustrar a revista. Nos números anteriores, usávamos colagens de material, mas agora todas as imagens eram feitas especialmente para a revista. Mas nós tínhamos um problema, porque o dinheiro arrecadado nos lançamentos não era o suficiente para financiar a impressão de um novo número. Consegui completar o pagamento com o dinheiro que consegui por organizar um encontro de revistas independentes para a Secretaria de Cultura de São Paulo. Foi um evento no Centro Cultural Maria Antônia, que reuniu desde pessoal jovem, como a turma da Grafitti e o Peter Baierstoff, o cineasta trash lá do sul, com veteranos como Wladyr Nader, que editava a Escrita, e Toninho Mendes, que era da Circo, a editora do Angeli e do Laerte. O Toninho fez uma palestra brilhante, hilária. Contou que quando ele rompeu com a equipe do jornal Versus, nos anos 70, por eles terem se aliado à Convergência Socialista, ele ficou possesso e disse que iria embora sem levar nada daquele jornal, nem mesmo a roupa do corpo. E voltou para a casa pelado. É bien trovato. Mesmo assim, o dinheiro era pouco, e foi preciso usar a criatividade. Fazer fotolito, naquela época, era coisa cara, e não podíamos nos dar a esse luxo. Então decidi inventar, e entreguei para a gráfica cópias xérox das páginas da revista, impressas em papel transparente ao avesso. Servia como um fotolito digital. Infelizmente, era difícil para a gráfica adequar o tempo de exposição do fotolito para a chapa, e as imagens perderam qualidade. O Bruno se ressentiu bastante disso, talvez por ser mais amigo dos artistas. Mas se não fosse dessa forma, a revista não teria existido.
Pouco depois, em 1997, começa um boom de revistas de poesia e literatura no Brasil. Surgem várias: Cult, Inimigo Rumor, Medusa, Sebastião... A coisa muda um tanto de figura, e novos desafios são colocados. Uma coisa é atuar na escassez, outra na fartura. As revistas precisavam ser mais do que espaços abertos, era necessário criar uma cara, uma editoria, uma linguagem. Porque agora as pessoas já possuíam espaços de publicação, então esse primeiro problema não existia mais. Acho que muitas revistas de poesia sofreram com isso, por se manterem muito abertas e não construírem uma identidade forte. Outra questão é que essas revistas eram feitas por poetas de uma década anterior. O Carlito, quando lança a Inimigo Rumor, já tem 35 anos, o Ademir e o Rodrigo criam a Medusa com mais de 30. E a gente tinha 21, 22 anos, o que trazia outro frescor, outra possibilidade. Éramos mais informais, conseguíamos fazer eventos mais abertos, que vendiam 200, 300 exemplares da revista. Isso fazia toda a diferença.
Na Azougue, a Elisa Cardoso entrou e começou a fazer o projeto gráfico. Ela era mineira, e tinha vindo para São Paulo fazer o Curso Abril, onde conheceu o Bruno. Depois, os dois começaram a namorar. Ela é uma designer incrível, que agora já é premiadíssima. Então pela primeira vez o projeto gráfico da Azougue foi pensado por alguém que sabia do assunto, e isso trouxe uma outra riqueza gráfica. Quando a Azougue começou, era o auge do David Carson, um designer norte-americano que havia renovado o projeto gráfico da revista Trip, e que tinha uma teoria completamente caótica de designer. Ele tinha absorvido a confusão dos fanzines e trabalhava isso institucionalmente. Só que as revistas eram muito difíceis de ler, o texto era visto como um elemento secundário. Então, quando a gente começou a revista, eu era completamente reativo a qualquer firula maior, dizia que tínhamos que privilegiar a legibilidade do texto. E exagerei completamente para esse lado. A Elisa me ensinou que não era bem assim, que havia um caminho do meio. E fez os dois números mais belos e elegantes da revista, com riqueza tipográfica, e, é claro, muito mais legibilidade e leveza. Tudo o que sei de designer aprendi com ela, observando por cima do ombro dela enquanto trabalhava. Essa foi uma questão, inclusive. Antes, as Azougues eram feitas manualmente, todos em volta das páginas com os recortes, pensando e mexendo, interagindo. Com a chegada da Elisa e do computador, essa interação se enfraqueceu.
HP É o problema da verticalidade. O monitor é vertical, não dá para ficar em volta dele...
SC Com certeza. Eu senti muito esse lado, acho que diminuiu a interação nossa não só com o design, mas com o texto também. Porque antes estávamos lendo e discutindo a seqüência dos poemas em tempo real, agora tudo era mais distante, era preciso fazer a página, imprimir, e daí pensar as alterações. Mas não foi isso que causou a primeira parada da revista, no fim de 1997, depois de cinco números semestrais. O que aconteceu foi uma briga editorial entre eu e o Bruno, por causa de uma entrevista que tínhamos feito com o Planet Hemp. A entrevista era excelente, mas eu queria que fosse publicada na Várzea e o Bruno no próprio corpo da Azougue. Nós dois estávamos disputando espaço. Pelo dinheiro que tínhamos para imprimir, não dava para aumentar o número de páginas, então eu teria que cortar textos para substituir pelo Planet Hemp, e não estava disposto a fazer isso. O Bruno contra argumentava que o interessante era pensar o rap enquanto poesia, e não separá-lo. Na verdade, os dois estavam certos, mas acabamos rompendo. O clima ficou horrível, acabamos a diagramação da revista brigados, os lançamentos não foram para frente e quando vimos não tínhamos dinheiro nem ânimo para outro número. Então achei que a revista havia acabado.
HP Mas não...
SC Não, eu não conseguia parar de pensar nela. E em 1998 conheci o Pedro Cesarino, que havia se formado em filosofia e estava começando a estudar poesia indígena, que era um tema que também me fascinava. E nos juntamos com a Ilana Gorban, que fazia teatro, e a Marina Weis, que fazia cinema. O Alê Ferraz continuou na revista, e o Rogério Trezza começou a fazer o projeto gráfico. Então decidimos retomar o projeto, mas de uma forma mais ambiciosa. Em 1999 lançamos uma nova dentição da revista, bastante diferente. A idéia era tentar realmente profissionalizá-la, conseguir um patrocínio ou propagandas, ter mais fôlego e maior tiragem. A própria revista mudou, ficou com muito mais páginas e ganhou três encartes: teatro, cinema e fotografia. A revista ficou muito mais pesada, com lombada e tudo, e muito cara. Havia coisas incríveis nela, mas até hoje acho que ela ficou meio confusa, sem a simplicidade das anteriores. De qualquer forma, o lançamento foi incrível. Fizemos no MAM, com a exibição de um filme do Pedro Moraes sobre os Novos Baianos, um super-8 até então inédito, e uma jam-session com Jorge Mautner, Nelson Jacobina, Bocatto e Lanny Gordin cantando Dorival Caymmi. Lotamos o museu e tivemos uma venda recorde, em torno de 400 exemplares. Mas a impressão ficou muito cara, e não conseguimos repor o dinheiro. E é claro que não conseguimos também nenhum tipo de patrocínio. Assim, a equipe acabou se desfazendo novamente, e ficamos apenas eu e o Pedro. Para o número seguinte, decidimos simplificar, voltando a só falar de poesia. O número só saiu no ano seguinte, por falta de dinheiro, e o lançamento foi novamente um evento. Fechamos o galpão da Funarte, lotamos o lugar e tivemos bandas, filmes e leituras. Junto com o Christian Saggarth e o Paulo Sacramento, fizemos um curta especialmente para o evento, Ritual. A idéia era brincar com o “cinema muscular”, conseguimos alguns rolos de 16 mm vencidos, fomos para um sítio e fizemos uma fogueira. O filme consistia da relação das pessoas com a fogueira, e o Paulo e o Christian foram um espetáculo a parte. Uma hora entraram literalmente no fogo para fazer uma subjetiva da fogueira. O filme foi bolado no domingo, filmado na segunda e exibido na quinta-feira. Talvez um recorde. E acabou até sendo exibido no Festival de Curtas de São Paulo. Junto com ele, houve outros momentos marcantes no lançamento, como a exibição de Memória da destruição, um curta-metragem filmado em negativo de som, com trilha sonora ao vivo feita pelos Tres Hombres do Daniel Benevides, num dos últimos shows do Minho K, o guitarrista, com o Jairo Ferreira à frente improvisando um discurso em homenagem a Aleister Crowley.
HP Foi nesse mesmo ano que você mudou para o Rio, certo?
SC Sim, e foi muito em conseqüência da revista. No meio do ano, eu vim para o Rio duas vezes, para entrevistar, junto com o Alberto Pucheu, o Leonardo Fróes e depois o Fernando Ferreira de Loanda. Seria esse o próximo número da revista. E eu já estava sem nenhuma perspectiva em São Paulo. Então, na segunda viagem, encontrei um amigo de adolescência, o Gabriel, que estava fazendo doutorado na FGV do Rio, e perguntei se ele topava dividir um apartamento. Ele disse que sim, então fui atrás, consegui um lugar barato no Humaitá, delicioso, com vista do Pão de Açúcar, e não voltei mais para São Paulo. Liguei para a minha família, pedi para embalarem as minhas coisas e mandarem. Poucos meses depois, a Azougue foi contemplada por uma compra governamental, mas para isso precisava ter uma empresa por trás. Desde a minha chegada ao Rio, eu estava procurando o que fazer, sem muita sorte. Então decidi aproveitar a deixa e transformar a Azougue numa editora, que era um sonho antigo meu. Corri atrás dos papéis, mas infelizmente o processo demorou demais e perdemos a venda para o governo. De qualquer forma, investi todo o meu dinheiro editando os livros da editora, e tive que colocar a revista na geladeira até 2003, quando saiu o novo número. Nesta época, eu já tinha entrado em contato com praticamente todo o ambiente literário carioca, e o Pedro Cesarino havia se mudado para o Rio também, onde fazia mestrado com o Eduardo Viveiros de Castro no Museu Nacional. A equipe nova da Azougue contava com a Luiza Leite e o Daniel Bueno, que eram dois poetas cariocas que partilhavam o interesse pelos mesmos autores e assuntos que a gente. E também a Dri Simões e o Zuza, que fizeram o projeto gráfico. Considero esse o melhor número da Azougue até então. Ele misturava a juventude e a leveza dos primeiros números com a maturidade dos dois números anteriores. E tinha preciosidades como a entrevista que o Vinicius de Moraes fez com o Jayme Ovalle e um conto raro do José Agrippino de Paula. Ali eu achei que estávamos de volta ao caminho certo.
Mas então a revista sofreu outra reviravolta, dessa vez bastante positiva. No fim do ano, saiu uma resenha sobre o meu segundo livro de poesia, Horizonte de eventos, na Folha de São Paulo. A resenha foi escrita pelo Manoel da Costa Pinto, e começava falando que eu trabalhava com uma tradição “delirante” da poesia brasileira, que passava por Roberto Piva, Claudio Willer, Afonso Henriques Neto e Leonardo Fróes. Nesse dia fui tomar um chopp com o Daniel Bueno, e conversamos sobre o texto. E ele, uma das figuras mais inquietas e brilhantes que já conheci, colocou uma questão destruidora. Disse que o papel primeiro da Azougue foi trazer para a tona uma série de poetas que não tinham o espaço merecido reconhecido. E que com essa resenha estava demonstrado que esses poetas estavam de volta, já sendo falado como uma vertente importante da poesia brasileira em jornais de grande circulação. Outra prova disso era que a maioria desses poetas estavam com obras completas nas livrarias ou em vias de publicação. E que então a Azougue teria que se repensar, para não se burocratizar e se fechar numa forma que não fazia mais sentido. Concordei inteiramente com ele, e começamos imediatamente a pensar o que seria uma nova revista Azougue. Fizemos uma série de reuniões, eu, ele, o Pedro e a Luiza, no apartamento que eu morava então no Jardim Botânico, conversando e anotando idéias. Mas não conseguíamos nada concreto. Sabíamos que queríamos uma discussão mais atual, colocar nossas idéias e questões na rua. Mas não conseguimos respostas concretas, e aos poucos fomos nos dispersando.
O que publiquei foi um volume comemorativo dos dez anos da revista, reunindo os principais depoimentos e uma antologia dos autores homenageados. Era uma forma também de mostrar a importância da nossa trajetória, e pensava na época que era meio um canto do cisne da revista. Reuni num livro os 16 depoimentos feitos nesse período (Afonso Henriques Neto, Antonio Fernando de Franceschi, Armando Freitas Filho, Celso Luiz Paulini por Antonio Bivar, Claudio Willer, Dora Ferreira da Silva, Fernando Ferreira de Loanda, Leonardo Fróes, Maria Rita Kehl, Orlando Parolini por Carlão Reichenbach, Paulo Henriques Britto, Roberto Piva, Rodrigo de Haro, Rubens Rodrigues Torres Filho e os prosadores Campos de Carvalho e J.J. Veiga) com quatro entrevistas inéditas (Gerardo Mello Mourão, Hilda Hilst, Jorge Mautner e Vicente Franz Cecim). Virou um livro de mais de 400 páginas, que ficou pronto no dia do meu aniversário de 30 anos, em 16 de abril daquele ano. As entrevistas inéditas foram realizadas especialmente para esse livro, tirando a Hilda Hilst, que fizemos em 1999. Foi uma das entrevistas mais marcantes da Azougue. Nós fomos, eu, o Fabio Weintraub, a Marina Weis e a Ilana Gorban, para o sítio dela em Campinas, a Casa do Sol. Chegamos lá no comecinho da manhã, com duas garrafas de vinho do porto, e já começamos a beber e conversar. Passeamos pelo sítio, brincamos com as dezenas de cachorros dela, que ela conhecia todos pelo nome, fizemos pedidos para a figueira que ficava em frente à sua casa e nos sentamos na sala para entrevistá-la. Depois da conversa, estávamos sentados em volta dela, já completamente bêbados, eu no parapeito da janela, e ela pediu para lermos em voz alta alguns poemas dela. Fizemos uma roda de poesia, cada um lendo os seus preferidos, enquanto ela chorava no centro. Parecia um filme.
HP E como vocês conseguiram reinventar a Azougue?
SC Na semana que o meu filho Leo nasceu, em setembro de 2005, estava sentado ao lado dele quando foi surgindo um poema na minha cabeça. Era um poema que falava sobre o tempo, “o tempo é um aquário mergulhado em alto mar”, e citava uma série de palavras que eu via sendo muito usadas nas conversas, mas eram binômios um tanto complexos, como “saque/dádiva”, “nomadismo/habitar” e “traição/vínculo”. São palavras usadas por uma novíssima esquerda, só que de difícil compreensão. Então eu jogava com isso. Conversando sobre isso com o Pedro Cesarino, chegamos à conclusão que seria interessante fazer uma série de revistas investigando essas palavras, entrevistando pessoas de diversas áreas para mapear alguns significados que esses binômios, ou eixos temáticos não excludentes, poderiam ter para a cultura e a poesia. Colocamos o projeto num edital de revistas do Ministério da Cultura, dentro do Programa Cultura e Pensamento, e começamos a fazer as entrevistas. Entrevistamos nomes como Eduardo Viveiros de Castro, Ronaldo Lemos, Guile Wisnik, Agualusa, Hermano Vianna, Ericson Pires. E foi um projeto que realmente mudou a minha percepção sobre o nosso tempo. Descobri que existem questões importantíssimas sendo trabalhadas agora, e que não estão visíveis nem mesmo para os pensadores de cultura. E que as questões que envolvem as novas tecnologias são muito mais complexas do que parecem, e precisam ser pensadas de uma forma crítica não excludente. A nossa idéia inicial era fazer uma revista de poesia sem poesia, mas muito mais do que isso virou um esboço de um mapa das questões contemporâneas, que gostaria muito de aprofundar em projetos presentes e futuros. No fim, os eixos temáticos, acrescidos do binômio “invenção/experiência”, se tornaram um livro que reúne quatro números da revista, e que considero o trabalho mais importante que já fiz.
HP E a revista hoje?
SC Em 2009 a revista faz 15 anos de existência, e estamos pensando num volume especial, reunindo uma antologia dos poetas que editaram ou estrearam na revista. Seria um olhar nosso sobre a nossa própria produção, algo que até agora não foi feito. E também um mapeamento desse grupo de poetas que está hoje na casa dos trinta anos, e que possui uma produção interessante que não teve ainda um olhar atento da crítica. Nomes como Danilo Monteiro, Bruno Zeni, Pedro Cesarino, Daniel Bueno, Luiza Leite, Maurício Ferreira, Alexandre Ferraz, que editaram a revista, e Marcelo Sorrentino, por exemplo, que estreou na revista e possui uma voz próxima da nossa, embora nunca tenha participado dela mais efetivamente. De todos esses autores, eu sou o único que possui mais de um livro, e que por isso já conseguiu alguma atenção de crítica. Tirando isso, não sei se a revista irá permanecer. Só se aparecer alguma idéia nova que a reinvente. Ainda me interessa trabalhar com periódicos, tenho idéias e estou trabalhando em projetos de fomentos à revistas de cultura, mas isso é outra conversa.

Revista Agulha, Fevereiro de 2009
Heyk Pimenta