A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010
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18 de junho de 2018

Afonso Henriques Neto


Vamos falar um pouco sobre a “liberdade livre” de Rimbaud.

Essa expressão está numa carta de Rimbaud, onde ele diz que se empenha desesperadamente em manter a liberdade livre. É uma expressão muito forte, a soma do adjetivo com o substantivo marcando a insistência de Rimbaud na idéia de liberdade. E ele não estava sozinho, é claro. Gosto de olhar a literatura como um continuum histórico-cultural. Estamos sempre recontextualizando momentos históricos anteriores. E essa idéia de liberdade radical permeia toda a história da literatura. Existe um livro muito interessante sobre o tema, O poeta na república do poder, de um poeta peruano chamado  Mirko Lauer, que fala exatamente dessa tradição. Ele faz uma genealogia que remonta à Grécia, e fala principalmente de um poeta romano, Propércio, como quem deu uma expressão maior na Antigüidade a essa idéia de liberdade. Propércio se opunha às conquistas do Império Romano de César, afirmando que não tinha nada a ver com elas. Ele era contra tudo aquilo, achava que aquela guerra infindável não levava a nada. E colocava como contraponto o amor como símbolo da liberdade. Algo próximo do que iría-mos ver, 2 mil anos depois, na contracultura.

O amor não é uma forma radical de vínculo? Onde o livre da liberdade então?

Não, porque quando Propércio elege uma musa, essa musa não existe na realidade. É uma entidade que ele cria. Se fosse uma mulher física a quem ele estivesse dirigindo a palavra, você poderia até dizer que ele está preso a uma relação. Mas não, ele elege uma mulher-símbolo, mítica, para dizer que todo discurso do poder é vão. E ele poderia simplesmente acusar, denunciar este discurso, sem
pensar alternativas. Mas contrapõe a este discurso do poder uma situação radicalmentebexistencial. Ele conta eroticamente grandes noites de amor com essa mulher mítica, regadas com muito vinho, e diz que quem deita na cama com uma mulher e com os membros encharcados de vinho jamais vai fazer guerra. Porque não tem a menor possibilidade de pensar nisso. E o mais interessante é que houve uma tentativa de cooptação dele por César, porque ele se tornou um poeta muito popular na época, e César o queria como um poeta oficial. Há quem diga que Propércio teria sido cooptado no final da vida, pois ele também escreveu poemas ditos “oficiais”. O que mais interessa, apesar dessa possível contradição, é que o que ficou dele para a posteridade são as elegias ao vinho e à mulher, tudo banhado em radical liberdade. Rimbaud também caminha nesta direção. Em Paris, ele esteve na Comuna. Mas não era exatamente a dele. Ele queria brigar contra o discurso de poder de um modo geral, e não apenas alterá-lo. E ele queria romper também com todo o status literário. Essa idéia está presente quando Rimbaud vai escrever que “eu é um outro”. Para ele, não faz mais sentido o eu romântico. Ele já estava rompendo com todo o conceito de sujeito romântico, embora não definisse ainda o que é esse outro. É uma busca, um momento de ruptura interna, o que essa frase contém.

É uma frase seminal. De certa forma, ela prenuncia todas as vanguardas do século XX, o desejo radical de mudança.

Sim, de certa forma. Mas, pensando nas vanguardas do começo do século passado, é complicada esta questão do confronto do poeta com o poder. É interessante perceber que muitos dos grandes autores daquela época eram poetas quase “oficiais”, que cantavam ideologias. Isso vem de antes. Whitman de certa forma canta a democracia americana, toda a construção da América. E vai até Maiakovski cantando uma revolução que começa a surgir na União Soviética e que no fim não se resolve direito. Ele próprio entrou em conflito em relação a isso, no fim da sua vida, nos seus últimos textos. Mas a maior parte da obra dele é um canto oficial da revolução russa. A questão dos “ismos” todos da modernidade é muito perigosa. Cada “ismo” cantando um tipo de ideologia. O futurismo tem obras e autores que cantam o fascismo, o Estado puro. Alguns expressionistas vão virar nazistas, e aquilo já está presente em suas obras. É um perigo real. Mirko Lauer, no livro que citei, diz que só um certo surrealismo, que foi absorvido pelos beats americanos, é que de certa forma não cantou poder nenhum. Eu acho isso interessante.

Artaud, por exemplo...

Por exemplo. Artaud é um autor que sempre esteve em conflito com o poder. Foi expulso do surrealismo pelo Breton por se recusar a entrar no Partido Comunista. Foi precursor do interesse pelas culturas nativo-americanas, quando viajou para o México para encontrar os taraumaras e tomar mescalina. Agora, é importante também não demonizar o encontro da poesia com a política. Não estamos falando aqui de uma poesia escapista, sem relação com o real. Apesar de pessoalmente eu sempre propugnar por uma poesia em que o delírio e a imaginação fossem mais fortes do que um realismo simples, frágil, de puro registro do real. A poesia não é a linguagem do registro das coisas que os olhos captam na superfície, é outro tipo de linguagem. É uma tentativa de ver um pouco por trás desta pele. Sem nunca perder de vista o registro do real, é claro. Quando leio o discurso do Propércio, de se dirigir diretamente ao César, de tentar uma intervenção na realidade, aquilo me interessa. Ele está falando da guerra, está falando do ferro ferindo as populações, mas sempre com um trabalho poético, com metáforas, imagens muito elaboradas. E, em última análise, o Rimbaud também possuía essa consciência. Ele estava buscando uma saída, um caminho. A “liberdade livre” também não é uma coisa solta no espaço, é ancorada numa realidade brutal. Assim como Artaud. Assim como Van Gogh, quando não vende nenhum quadro em vida. Isso não é de graça, é porque uma linguagem muito forte e radical tem problemas de várias ordens para conseguir ser absorvido pelo público. Normalmente, ela precisa de tempo, e muitas vezes que ocorra uma diluição da sua originalidade. Há sempre uma tentativa de captura pela linguagem oficial.

E você acredita em possibilidades coletivas de criação de linguagens independentes?

Não. Mesmo os grupos instituídos, se você olhar bem, o que se nota é que somente um ou dois nomes se sobressaem, que são poucos os que realmente encarnam uma expressão mais radical. E esses autores que radicalizam métodos de pensamento, de expressão, acabam ficando um pouco distantes até mesmo dos amigos. Acabam se singularizando. São os nomes mais ensolarados, num certo sentido, apesar de muitas vezes mergulhados em trevas profundas, de serem figuras muitas vezes trágicas. Essa exploração radical é essencialmente solitária. A idéia de criação coletiva, ao menos na modernidade, é um esforço interessante, mas que não acredito que se cumpra inteiramente. Você pega um grupo de 15 autores, por exemplo, e acaba percebendo que mesmo unidos sob uma mesma bandeira, continuam sendo 15 solidões em busca de algo que está sempre fugindo, sempre fugindo. Isso é trágico de um lado e encantador de outro.

Ouvindo você falar do Propércio, do seu poder de influência, fiquei pensando que a assinatura, que uma certa idéia de propriedade autoral já deveria existir na Antigüidade, certo? Se não era com fins financeiros, certamente com intenção de aquisição de poder, de influência...

É, eles ali já lutavam politicamente por seu espaço, por seu nome, não é? Seja Platão, Aristóteles ou os outros, cada qual lutava para fazer com que o seu discurso predominasse, para com isso ganhar as benesses necessárias. Propércio era um escritor, não obtinha retorno direto da venda de seus textos, mas era um arauto, e isso certamente lhe trazia benefícios. Isso é interessante. Há mesmo uma luta política. Como nós viemos desta cultura, desta tradição, é essa tradição que a gente tem que examinar, mais do que a tradição japonesa, por exemplo, que possuía exemplos interessantíssimos de trabalhos coletivos, de quebra do autor, como os “haicais de hospedagem”, por exemplo, que eram poemas anônimos elaborados pelos poetas visitantes das hospedarias: eles os deixavam nas paredes para serem respondidos pelos próximos visitantes, e assim sucessivamente. Eu adoro a tradição japonesa, mas nós viemos da tradição greco-latina, e então essa cultura é que é a nossa cultura, e de lá para cá o que eu vejo o tempo todo são recontextualizações de coisas que foram criadas ali, que surgiram ali naquele lugar, naquele tempo. Se a gente não entender bem o que era aquilo lá, a gente está entendendo pouco do que nós somos hoje.

Já existia lá essa tentativa de cooptação pelo poder...

Sempre. Uma das formas mais radicais disso hoje é a absorção de uma estética à revelia de sua ética. Houve, por exemplo, uma penetração muito grande do discurso poético na publicidade. Então, foram criadas peças belíssimas, sinestésicas, fantásticas, e qual é a ética que existe por trás delas? Nenhuma. Há a beleza em si, mas para quê, apontando para onde? Então, voltamos para a idéia do velho humanismo, não podemos desvincular a ética do homem, pois ela é essencial para se definir o homem. E mais ainda para a poesia. Ela precisa se preocupar com o que é o homem nesse planeta, vivendo nesse momento histórico. É necessária esta consciência. A “liberdade livre” de Rimbaud pressupõe uma ética. Ela é, essencialmente, ética. E essa relação do poeta com o poder é duríssima, dolorosa ao longo da história. É uma guerra, um conflito que vem se dando desde sempre. A arma do poeta é também sua maior fragilidade. Porque enquanto o teórico político, vamos dizer assim, trabalha com uma linguagem em linha direta com o pensamento, com as estruturas conceituais, o poeta trabalha com uma linguagem outra. E qual é essa linguagem? Fico me lembrando quando Barthes coloca a idéia de que a linguagem tende para o lugar comum. O lugar comum, o estereótipo tende sempre a se agarrar à linguagem, é uma espécie de mata-borrão da linguagem. O teórico às vezes não tem muita preocupação com isso. Ele continua escrevendo, e de repente está preso naquele tipo de linguagem, que é a linguagem do poder. Em outras palavras, muito próximo do que oficialmente as palavras significam. E aí obviamente, mesmo sem ele querer ou se opondo a isso, ele está imerso no poder. O poeta, quando usa conscientemente as palavras que têm aquele significado, tenta torcê-las, torcer o significado delas. E nesse momento ele está praticando liberdade. E isso nada tem a ver com ausência de ética. É outro discurso, mas a ética continua. É possível ser poeta e ter uma ética marxista, cristã ou mesmo fascista. Embora prefira pessoalmente a possibilidade de uma ética menos compromissada com discursos do poder. Assim, a poesia trabalha em cima de desvios de linguagem. Ela realiza um exercício de liberdade independente dessa ética. Alguns com mais, outros com menos radicalismo. E esse desvio vai para onde? Não sei. É um desvio histórico. Platão já não gostou desse desvio lá atrás. Achou esquisito. Falou que é melhor nem ter esses caras por perto. E essa luta veio vindo. Você pode rastrear isso ao longo dos séculos. E o engraçado é que os poetas mais radicais, que vivem intensamente seu momento, muitas vezes passam a vida tomando porrada, e só são recuperados dois, três séculos depois. Villon é um exemplo disso.

E você acha que esta linguagem desviante permanece com o tempo? Que François Villon, por exemplo, continua possuindo uma força de estranheza, ou virou um clássico?

A estranheza certamente permanece. A linguagem pode parecer envelhecida, ou absorvida por um discurso oficial, mas quando olhamos com calma vemos que não é bem assim. Vamos pegar o caso do Machado de Assis, para ficar com um escritor que tem uma linguagem em princípio sem tantas quebras. Eu gosto de ler ele abrindo uma página ao acaso. Já conheço a história, então leio uma página, duas, e pronto. E de repente você percebe que o grande personagem daquelas páginas não é Brás Cubas ou então Capitu, mas a linguagem. É a linguagem colocada de uma forma estranha para mim, para todos, apesar de aparentemente estar dentro de uma lógica linear, quase de revista. E não é. O que é aquilo que encanta e encanta e encanta? É uma maneira de trabalhar a linguagem. E o escritor, e mais radicalmente ainda o poeta, é aquele cara que tem essa consciência do que é a linguagem. Ele sabe que aquela linguagem, se for colocada de uma determinada forma, presta serviço ao poder. Mas se você torcê-la, você começa a criar estranhezas, a libertá-la. Acredito que esta é a primeira consciência do escritor. Traduzi recentemente o “Bateau ivre”, do Rimbaud. Estava numa livraria e abri o poema ao acaso, e comecei a relê-lo. E o que me motivou a traduzi-lo não foram apenas as imagens delirantes, que são belas e novas. Eu vi também uma forma de trabalhar a língua muito interessante, muito precisa, usando cada palavra no lugar certo, com quebras muito interessantes. Quando o texto começava a ficar mais próximo de uma poesia oficial da época, ele colocava uma palavra que rompia com tudo isso, um “cataractant”. Não sei por que aquela palavra entrou ali, mas sem ela o poema se enfraqueceria muito. O “Bateau ivre” só está de pé por causa disso. Porque há transporte, há sonho, e há também essa consciência de linguagem. Rimbaud, ao contrário da imagem corrente dele como um aventureiro louco, era um erudito. Ele leu, estudou tudo. Ele escrevia correntemente latim com 14 anos. E leu todos os poetas latinos no original. É importante algumas vezes desmistificar um pouco, para ver com mais clareza. Ele não foi um ser encantado que subiu aos céus. Ele foi um ser humano com todas as crises, com todo o trabalho que é necessário para se transformar em um grande escritor. E esse trabalho é essencialmente solitário.

Para finalizar, gostaria de lembrar um verso seu: “Nada existe, celebremos aventura”. Isso é liberdade livre?

De certa forma sim. É curioso, porque algumas pessoas lêem esse poema de uma forma negativa. Ele incomoda por um aparente niilismo. E eu vejo como o contrário. Esse poema é exatamente a compra de uma certa liberdade, a percepção de que de fato tudo é transitório e fluído. Nesse sentido, tudo existe e nada existe. É a mesma coisa. Só que não coloquei o “tudo existe”. Poderia ter feito, mas o poema perderia irremediavelmente em força. As pessoas temem esta transitoriedade, e ficam então construindo estátuas. A estátua é uma coisa sólida, enquanto o discurso poético é fluido. Ao mesmo tempo que é pedra, também é ar. Então, estou criando neste verso uma consciência desta transitoriedade, e a liberdade que ela traz. E também o direito de celebrá-la. Sempre tive esta preocupação com a minha poesia. Não vejo a liberdade de uma maneira mítica. Ela é um exercício, uma busca. É uma discussão permanente, são as escolhas de cada momento. E qualquer um pode viver a qualquer instante a liberdade. É claro que isso pressupõe o direito de errar. Nós tropeçamos o tempo todo, erramos aqui, acertamos acolá, mas vamos tentando encontrar um caminho mais ensolarado. E passar essa tentativa de percepção para os outros, usando uma linguagem, no caso, poética. Podia estar usando outras linguagens, mas a poesia está mais próxima da liberdade. Sempre.

Afonso Henriques Neto (Revista Azougue 2006-2008)

2 de abril de 2015

O herói que não morreu de overdose


Chacal, poeta marginal, me recebe em seu apartamento no Baixo Gávea, reduto da boemia carioca. Esse que viveu intensamente os anos 60, sobreviveu aos setenta, ganhou dinheiro nos 80 e voltou à marginália nos 90 com CEP 20000 – Centro de Experimentação Poética, o sarau festa anárquica, que ocorre mensalmente no teatro Sergio Porto no Humaitá, berço de toda uma geração de artistas cariocas e palco de algumas das experimentações poéticas mais criativas e libertárias há 24 anos.
“A poesia é uma das principais armas políticas, pra você conseguir vencer esse grande dragão que é a linguagem lógica.”
No dia 19 de junho se apresenta no Sesc Ipiranga com “Uma história à margem”, um monólogo epopéia punk, onde a ficção vira realidade e o in-verso. Espetáculo que teve estréia no Rio de Janeiro e que em suas andanças passou por Harvard no início deste ano.
Poeta marginal histórico, Chacal vivenciou e por que não, ainda vivencia, a experiência da contracultura no mais estrito senso da palavra. “… Não tinha grana, mas fazia muita coisa, nossos woodstocks caboclos. O trabalho desvinculado do prazer é a morte, acho isso até hoje.”
Ao rememorar os anos 60/70, exemplifica: “A gente se divertia muito. Era um dia heroína, um dia “Grande Sertão: Veredas”. Não sabia o que era melhor.”

A palavra voltou a ocupar o espaço?  Nunca se escreveu tanto com a internet, facebook, não?
É o que eu chamo de afloração da idade do ouro na idade da lata. Tenho pra mim esta distinção, existiu uma idade do ouro, antes da propriedade privada, onde todos cooperavam entre si. Tem histórias de que o homem começa a matar os lobos. Os lobos comiam o gado dos homens. Os homens inventam armas e lanças e matam os lobos. Começa o excesso de gado, de búfalos, bisões. A partir daí, eles começam a negociar  a propriedade. É o mar de equívocos que até hoje prevalece, essa coisa da grana e da propriedade. Eu acho que de vez em quando tem florações dessa idade do ouro. São conjecturas, muito delirantes de minha parte. Na idade do ouro não teria essa lógica linear, todas essas rupturas seriam florações da idade do ouro na idade da lata. O carnaval é uma afloração, a poesia é uma afloração e a internet é uma afloração.
A grande revolução é a internet?
Eu acho que ela é o ovo da serpente. Foi gerada dentro do sistema capitalista, na sociedade de consumo, neoliberal. Nasceu deste sistema, mas pra vencer este sistema.
O pensamento darwinista ajudou muito o capitalismo a se estruturar. O homem não é o lobo do homem. Não é o mais forte que tem que vencer, não é pra isso. Há muito mais indícios de que havia muito mais colaboração do que choque e competição.  Na natureza tem um sistema cooperativo desde as moléculas. Desde a nossa gênese.
De onde surge o nome poesia marginal?
A gente começou a escrever poesia a partir do Oswald, do Tropicalismo, Pessoa, Maiakovski, imerso na contracultura, então só líamos os malditos e ouvíamos rock’n’roll. O Maiakovski representava justamente essa mistura de romper com a linguagem lógica e com o sistema político tradicional, com o capitalismo.
O nome Chacal?
O nome Chacal veio de um treino da seleção de vôlei da seleção carioca.  Eu demorei a chegar no refeitório e vi a galera comendo em silencio e falei. “Que onda Chacal”.
O que significava onda Chacal?
Uma gíria da época. Sei lá, uma onda devagar, calada.
Como você começou a escrever poesia?
Foi através do tropicalismo, que recuperaram o Oswald  de Andrade e eu fui ler. A ditadura rolando. Comecei a escrever ali, fiquei obnubilado pelo Oswald, ele juntava a coisa  sintética da poesia e da música com a coisa bem humorada e era crítico, era bem político. Comecei a escrever assim, parecido com ele. Isso misturado com a contracultura, a psicodelia. Meu primeiro poema dizia: “Da orelha esquerda de Moisés saltava um duende capenga nas noites de lua nova”.  Tem a coisa sintética do Oswald, um certo humor nonsense com a psicodelia.
Você participou dos movimentos de esquerda da época?
Eu comecei no movimento estudantil mas ele morre com o AI5, por que a repressão baixou muito pesado.  Só continuou quem foi pra luta armada.
Ou você acreditava muito que havia uma possibilidade de revolução ou ia buscar outras alternativas. Fui buscar através da contracultura, onde o mundo todo pudesse se libertar. Romper com uma estrutura patriarcal, moral, que estava na sua cabeça.
A poesia era política pelo rompimento da estrutura, pela linguagem?
Essa lógica verbal é uma das principais ferramentas do sistema para nos manter com uma visão linear do mundo, limitada. O mundo não é início meio fim, sujeito verbo predicado. O mundo é tudo ao mesmo tempo agora, que pra mim é uma ordem. Na minha cabeça a ordem é o caos. A partir do caos você começa a se entender, começa a se dar formas. Mas volta e meia você volta ao caos. E a linguagem, principalmente a poética, começa a revolucionar, a subverter essa ordem do mundo. A poesia é uma das principais armas políticas, pra você conseguir vencer esse grande dragão que é a linguagem lógica.
A poesia marginal nasce na universidade?
A universidade neste período estava muito difícil, o AI5 fez o serviço. Os professores estavam sendo expurgados… Nem passava pela cabeça ser poeta.  Não existia poeta. Existia músico, pintor, escritor.  Não tinha essa coisa da carreira literária. Eu escrevia em cadernos e os amigos liam e falavam pra eu publicar. Eu não entendia.
Como você se sustentava?
Mal e porcamente. Nem sei como eu vivia. Eu fiz estágios em agências de propaganda. Mas eu não conseguia. Eu tava bem no início. Queria escrever poesia, viver a onda psicodélica.  No estágio escrevi um anúncio para as Óticas Fluminense: “se o mundo não vai bem aos seus olhos use lente. Ou mude o mundo.” Eles acharam muito subversivo. Até que um dia eu perdi um ácido lá e disse: nunca mais volto aqui. Essa agência é muito baixo astral. Meu ácido caríssimo!
Inserção no mercado?
Essa palavra mercado ainda nem existia, ainda bem. Tinha pouca opção pra quem escrevia. Tinha propaganda, mas era abominável. A mídia também não tinha espaço, tudo bloqueado. A gente ainda não era letrista. Era poeta. Publicamos em mimeógrafo. Deu um nó. Poesia em mimeógrafo? Os caretas do sistema não entenderam. Os primeiros que elogiaram foram “os caras”:  Wally Salomão, Torquato Neto e Hélio Oiticica. A santíssima trindade do subterrâneo brasileiro. Com esse trio dando aval eu continuei. Dois anos depois é que a academia veio. Cacaso e Chico Alvim ficaram encantados por que rompia com a sisudez, eles vinham do cânone. Quando eles entraram em contato com a gente acharam bonito, engraçado, rompia com o mundo acadêmico. Isso aconteceu enquanto eu tava em Londres.
Por que você foi pra Londres?
Os amigos todos estavam indo. Tava muito chato por aqui. Fui preso várias vezes, por vadiagem.  Ficava doidão no baixo Leblon e rodava. Andava sempre sem documento. Mas em 72 fui. Londres era meu sonho,a meca do rock­ – Beatles, Rolling Stones. Eu vi o Allen Ginsberg lá. A performance dele, num festival internacional de poesia. Ele tinha um canto rock’n’roll e era poesia falada. Performática. Juntava a poesia com a música. Eu queria isso! Tinha as onomatopeias, as gargalhadas.
Mas ainda não chegamos no por que do nome poesia marginal.
Poesia era marginal porque rompia com o modo tradicional da indústria do livro: editora, distribuidora, padrinhos literários, etc. Quando volto ao Brasil já está tudo mais estruturado, o Cacaso já tinha organizado uma coleção chamada Frenesi. Aí veio a Heloisa Buarque de Hollanda, e juntou o que normalmente não juntaria. Mas naquela época todos eram contra a ditadura. A gente se juntava por que o grande inimigo estava fora da gente, o governo militar. Éramos diferentes mas não divergentes.
O inimigo fora ajuda a criar nosso exército?
Nos dá um ânimo para atuar. É um pouco o que a gente vive hoje, não tem um inimigo fora. O mercado é  furta cor. Dá pra ir contra ele, mas é mais delicado. É menos visível a atuação. Naquela época tudo era produto do sistema, até nossas fraquezas, nossa impotência. Tudo era perdoado, o que também não era legal. A gente era muito benevolente com a gente. Tudo era culpa da ditadura. A gente fazia pra se divertir também.
Que é poesia marginal?
Até hoje eu não sei o que é poesia marginal, não tem um manifesto, um estatuto.  Tudo pode ser poesia marginal. Para mim era tudo que não era métrica, ou visual naquele período.
Juntava poetas, como o Wally que não gostava da poesia marginal, ele achava inculta, o Leminski que também não gostava pela mesma razão e a Ana Cristina César. Tudo isso entrava no saco da poesia marginal. Havia uma parceria, mas não havia este acordo entre a gente, esteticamente eram caminhos bem diferentes. Tinha toda esta mística do marginal na cultura da época, poderia ter se chamado poesia underground também. A poesia marginal é considerada o último movimento poético do Brasil, uma coisa que já tem 40 anos.
E no mundo tem outros movimentos?
Não sei. Poesia foi muito atingida pelos meios audiovisuais. Numa sociedade sensorial, a coisa da palavra vai perdendo a força. Poesia exige uma reflexão. Esse tempo da poesia se foi. O CEP 20000 é uma tentativa de manter vivo isso trazendo a poesia para o palco, para o ao vivo.
Hoje em dia tem várias rodas de rimas, de slams na virada cultural. Talvez o movimento seja a voz das periferias, o hip hop, que é a forma atual da poesia popular. Pegou este bastão do cordel. E o hip hop com a coisa eletrônica, com os ritmos.
Na periferia talvez exista o inimigo visível, em comum?
Sim. Tem razão. O que o governo militar foi pra classe média e pra todos, hoje é a polícia espancando o preto pobre. Ele tem uma necessidade de discurso. Onde a palavra é necessária. Na periferia é o grito de guerra. A violência explícita. Eles tem que gritar.
Naquela época, nos anos 70,  a gente falava do nosso dia a dia. A gente falava pra gente mesmo.  A polícia nos calcanhares. Não podia sair à noite, não podia tomar ácido.
Ácido não pode tomar até hoje!
Não pode tomar ácido até hoje, não é?
Acho que a gente tem muitos pontos de contato com hoje em dia. Mas falta uma expressão artística pra isso. As pessoas já foram pra rua, mas falta alguma coisa. Falta um tropicalismo pós pra pensar e questionar estes valores. Acho que alguma coisa com a mídia livre, mídia ativismo.
Eu tenho uma metáfora que aquele período era o espantalho, colocavam na horta para assustar. Uma coisa bufa, cruel, malvada. Os generais eram totalmente  bufos e hoje em dia o espantalho deu lugar ao agrotóxico. Você não vê o inimigo, você ingere o inimigo. Antigamente a censura te censurava. Agora é o mercado que tá introjetado, que te censura. Vai reclamar com quem? É o sistema dissimulado, que não tem cara.
Anos 80 foi uma época mais alienada?
Foi a vitória do mercado. Os anos 80 foi muito yuppie, muito sucesso. A grande estrela era o cartão de crédito, que estava chegando.  Os marginais foram para o palco. Ganhando dinheiro ao mesmo tempo se prostituindo. Aproveitei bem essa absorção da cultura marginal dos anos 70 pela indústria cultural. Comprei um telefone, aluguei um quarto e sala. Mas isso se esgotou no final dos anos 80. O sistema é autofágico. De uma hora para outra eu me senti um velhinho, bagaço cuspido foraNão gostava dos homens de gravadora definindo quem ia tocar nas rádios. Eu acho que os anos 80 foi a reação do sistema. E agora vem essa geração digital. Não segue o analógico. Outro paradigma, outra velocidade.
Essa não era a busca da contracultura?
O berço da era digital é a Califórnia que é o berço do movimento hippie.
Mas a cara é tão diferente. Dos hippies para os nerds. É curioso esse parentesco.
O Timothy Leary, pai do ácido, e todos, eram adeptos da computação eletrônica. A falta de linearidade. Depois de muito ácido o sujeito entende que não tem sujeito predicado verbo. O que é o hipertexto? É tudo ao mesmo tempo. Tem muito mais a ver com a realidade do que a linearidade de um livro.
Anos 80 virou a chave, como se deu isso?
Nos anos 60/70 a gente se divertia muito. Não tinha grana, mas fazia muita coisa, nossos woodstocks caboclos.A gente não queria cumprir ordem unida para o sistema. O trabalho desvinculado do prazer é a morte, acho isso até hoje. Ninguém mais queria seguir o sistema e isso foi barbaramente engolido pela mídia. O sistema percebeu o perigo.  Mas começa a ruir mesmo com as mortes do Jimi Hendrix, Janis Joplin e aqui o Torquato. Foi uma época muito pesada em suicídios e overdose. Eu tomei uma overdose em Londres.
De heroína?
Comecei a tomar heroína em Londres. Era difícil conseguir, mas era a droga para o inverno europeu. Era o nirvana. Prazer absoluto. Tomei uma dose de junky e foi tudo apagando, acordei no hospital. Eu tomava dia sim dia não, eu queria todo dia mas não tinha grana. E foi nessa época que caiu na minha mão o “Grande Sertão: Veredas”. Então era assim, um dia heroína, um dia “Grande Sertão”. Não sabia o que era melhor.
Mas como que o sistema devorou o movimento hippie?
Chamavam os hippies de natureba, riponga. E as pessoas foram se drogando muito. Isso tudo foi desacreditando o movimento hippie. Então nos anos 70 o que vigora é o movimento punk, no future, vamos nos acabar. Acabou o paz e amor. Mas foi absorvido pelo mercado também. Não precisa mandar a polícia, é só desacreditar. O sistema é ambíguo, a gente vive dele, se vira dentro dele, ao mesmo tempo não concorda com ele. Mas não conseguem acabar nunca com a gente, com os malucos.
Quem são os malucos hoje?
Os caras que estão na rua. Que partem pra cima mesmo. Até o ano passado achei que não tinha mais maluco. Tem os malucos na poesia, que querem fazer dentro da sua arte. Mas fora disso eu não via manifestações contra o sistema, era um pouco impensável. Isso já é fruto da era digital.
Tudo fruto desta monstruosidade chamada sistema neoliberal, que agride, bate, estupra.
Segundo Zygmunt Bauman sobrou pro Estado punir. A única função é não permitir que as pessoas se revoltem. Botar a repressão na rua, das formas mais modernas.  Em nome da ordem, da produção e do trabalho. As empresas são transnacionais e os interesses são só sugar. Desmantelar tudo que o ser humano conquistou, o welfarestate (bem estar social).
O CEP 20000 era completamente anárquico, uma catarse coletiva, não tinha muito limite palco plateia, ainda é assim?
Não. Era inacreditável. O desencanto com o ouro de tolo, com a indústria cultural e volta o prazer de estar junto fazendo barulho. Se divertir e mostrar os seus trabalhos. E juntou uma galera muito competente. Era um delírio. Um palco e tudo escuro, a garotada se pegando, se encontrando e fazendo poesia. Um período muito feliz.
O CEP é o maior bunker de resistência da poesia?
O CEP 20.000 faz 24 anos agora em agosto. Depois de tanto tempo, a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro não deu apoio ao projeto esse ano. Mas não conseguiu acabar com o CEP. O  Imperator no Méier, da Prefeitura, convidou o CEP para dar uma cara mais experimental ao lugar, que para se manter, promove shows e peças do mainstream. E continuo com o tradicional CEP do Humaitá, no Sergio Porto, à base de bilheteria. Espaço conquistado não se entregaO CEP é um projeto de base, estruturante, que abre espaço para novos talentos. Devia haver um como ele em cada bairro. Sem isso, novas gerações de artistas ficam sem espaço para se expressar e implodem. Se transformam em pessoas frustradas que poderiam estar felizes. O CEP é um lugar de encontro, de afeto, de insurreição. Isso a Instituição quer acabar. A noite do Rio acaba cedo agora, toda uma caretice planetária que não permite uma vida noturna, o encontro. Porque as pessoas são feitas para trabalhar, consumir e produzir. As pessoas com medo em casa, se anestesiando diante do monitor ou da televisão. O CEP 20000 quebra com isso. CEP 20000: só indo, só vendo, ouvindo, vivendo.

4 de fevereiro de 2014

Entrevista Manoel de Barros


da Revista da Cultura - dezembro de 2012

Com os 96 anos que se completam este mês, o viver muito e lúcido é uma dádiva ou em alguma circunstância chega a ser um tormento?

Não tenho explicações para os 96. Se a gente faz só o que gosta, ajuda. Mas isso é  ‘um privilégio’. Só faço inutilezas.

Então, sua opinião de outrora, de que havia certa inutilidade na poesia, continua a ser a mesma?

Continua. A ave é uma inocência inútil.

Mas ela te ajuda a entender melhor o tempo, não?

A poesia não ajuda em nada. Ela é de graça.

Nem te ensinou a viver?

Não me ensinou nada – só me envolveu.

E é possível, afinal de contas, definir o que é poesia?

É o mel das palavras.

Pelo menos aprendemos a entende-la ou continua sendo uma vertente literária misteriosa?

Há de ser misteriosa. Eu também não a entendo. Mistério é mistério.

Seu nome é associado cronologicamente à Geração de 45 e também, devido ao conteúdo, ao Modernismo brasileiro. Como você observa a herança deixada por estes movimentos na literatura atual?

Peço perdão, mas não acho nada. Eu já escrevi: Se o nada desaparecer, a poesia acaba.

A internet parece deixar os novos escritores em processos mais isolados em vez de pertencerem a determinados grupos. Isso é bom ou não em sua opinião?

Toda vez que entra internet – eu acato.

Nesse sentido, a produção literária está cada vez mais individualista ou sempre foi desse jeito?

Sempre. Às vezes, o poeta ouve a harmonia das palavras – outras vezes, só ouve o “batecum gererê”.

Você já declarou algumas vezes sobre o prazer de ter sido criado de forma tranquila no Pantanal. De que maneira essa criação definiu sua produção poética?

Fui criado num lugar onde só tinha água, árvore e bicho. Minhas palavras são raiz. Meu avô abastecia a solidão do lugar.

Mas acredita que infância é uma faixa de idade ou um sentimento de espírito?

Eu moro na raiz das palavras. Eu acho que infância é a raiz das palavras. Minhas palavras há de aparecer misturadas ao tronco, às folhas e às  flores. A infância seria então minhas raízes.

Aliás, o quanto que o habitat influencia um escritor e o quanto em anda importa o local onde ele vive?

Acho que tudo importa: ave, água, árvore, brisas.

Outra substância que não a feliz pode preencher a poesia?

Seria assim: depois que os passarinhos recebem as carícias da manhã, eles desvoam livres sobre a tarde.

Você continua escrevendo à lápis. Como encara a modernidade?

Através da linguagem do poeta, reconheço a idade.

Voce pensa na posteridade? Gostaria que daqui a cem anos continuasse sendo um dos nomes mais reconhecidos da literatura brasileira?

Sinceramente penso. Mas tenho todas as dúvidas.

A sua fama de ser recluso é, de alguma maneira, aversão ao “estrelato”?

Sou tímido. Só isso. Um gole de vinho me tira a timidez.

Existe a sua frase famosa: “Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira”. A proporção ainda é a mesma?

Acho que sou uma só mentira. Falo do poeta. Sou linguagem.

Dos poetas e romancistas com os quais você conviveu, qual te traz mais lembranças?

Rimbaud é meu mestre. Aqui no Brasil, Guimarães Rosa, Padre Vieira.

O paralelo entre sua poesia e a prosa de Guimarães Rosa está além do neologismo?

Acho que a linguagem do Rosa modifica o mundo. A minha linguagem apenas quer transver a natureza.

E como você analisa a safra atual de escritores nacionais?

Há dez anos eu só releio.

É possível apontar quais são os seus livros publicados que mais lhe agradam?

Eu não releio meus livros, porque tenho tédio. Mas acho que todos são o que alcancei fazer. Quando terminava um, eu ficava feliz. Mas agora, relê-los me dá tédio!

Mas você está trabalhando em algum livro de poesia, não?

Estou tentanto, com  pouca força, outro livro de prosa poética.

Existe algum ritual especial para você escrever? Ou a poesia flui sem barreiras?

Poesia é trabalho com palavras.

Aliás, você acredita que o mistério nos completa? Quem é Deus, pelo menos para a poesia?

Deus é verbo. O que faz. O que abastece o meu mistério.

E o que é ser poeta?

Fôssemos talvez merecidos de água, de rãs, de árvores, de pedras, de brisa, de garças. A gente dementava as palavras – porque sempre tínhamos visões. Hoje eu vi um lagarto lamber as pernas de manhã. Tínhamos desapetite para copiar. Gostávamos de transver a natureza. A gente não gostava de informar, mas só cantar. As palavras não tinham comportamento. Nossa palavra era raiz – vinha de nossas raízes. E moravam na infância sem comportamento. Quem nasce poeta tem que se conformar que é meio parvo, meio tonto e meio cego. Sempre usávamos visões como esta. Eu vi um prego primaveril! Temos de estudar ignorãnças para saber o formato do silêncio e a cor dos arrebóis. A infância sendo a raiz de nossas palavras tem que trazer a inocência com ela. E a palavra incente há de vir enrolada em seus caracóis. Então o poeta poderá cometer todos os erros de linguagem, por que está amparado na liberdade de ser ainda raiz. Temos de desver a natureza para inventar outra. Assim, hoje eu vi uma garça com olhar de oceano. Por tudo isso e por isso que o poeta tem que se conformar que é um tonto ou um parvo! Por fim: o que forma a imagem poética não é O ver, mas o transver.

9 de novembro de 2013

Baderna




A:Como você começou a coleção Baderna?


R:A Conrad tem como principal fonte de renda quadrinhos e mangá. E por causa desse negócio de quadrinhos, acabei precisando viajar muito para as feiras de livros, para contratar novos títulos. E em cada lugar que ia, aproveitava para procurar as editoras alternativas. Ia para Nova York, visitava a Autono Media. Ia para São Francisco, aproveitava para passar na Equipress, que é a principal editora da costa oeste americana para esse tipo de livro. E essa situação dupla, de ser ao mesmo tempo um empresário no mercado editorial e um aficcionado por estes textos, me levou a situações engraçadas. Um dia estou lá na Equipress, saindo de uma feira de livro com terno e gravata, e uma menina falou: “Mas você é de qual coletivo?”, e eu respondi: “Eu sou proprietário de um coletivo”...Em diversos aspectos, a Conrad não é nada de novo. Eu fui formado por aquele período do final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, do Pasquim, do Versus, que, se você pensar, eram publicações que misturavam política, pop e quadrinhos. É esse o fio da Conrad, ela é basicamente herdeira desse universo. E a gente tem o privilégio de poder ser os próprios mecenas. Vendemos Pokemon, e isso possibilita que possamos publicar o Hakim Bey. A coleção Baderna começou em 2001, e já publicamos desde os Situacionistas, Provos, Krisis e Critical Art Essemble até o Paulo Arantes e um livro sobre a resistência anti-globalização brasileira, Estamos vencendo!, de André Ryoki e Pablo Ortellado.


A:E como foi o contato com o Hakim Bey? Vocês assinaram algum contrato?


R:Imagina. A gente o publicou e, a rigor, não tem contrato de direitos autorais. O que fizemos foi um acordo com ele, e ele ajudou na tradução e tudo. Se quiséssemos ter pirateado, não haveria problemas. Ele não estaria nos processando nem nada, não está preocupado com isso. Porque a idéia para ele é o mais importante. Inclusive, se vai sair com o nome dele ou de outra pessoa, é o menos importante. Trabalhando em editora, você vê várias pessoas que são contra a propriedade privada, e a relação que elas têm com essa história de direito autoral é inteiramente maluca. Querem adiantamentos irracionais, ficam cobrando relatórios, achando que estão sendo lesados. É muito estranho. Mas o Hakim Bey não, ele sempre foi coerente e generoso nesse sentido.


A:Um amigo diz que sempre que achou que não havia nada interessante acontecendo no mundo, descobriu que era ele que estava no lugar errado. É o que me parece que ocorre com a coleção Baderna. Há muita coisa acontecendo que certamente é ressonância dos textos publicados na coleção, e que as pessoas acham que são simples fatos isolados.


R:É verdade. Existe um ceticismo confortável que domina boa parte da sociedade hoje. A idéia de que não tem nada acontecendo, que os jovens são despolitizados. A velha conversa mole. E então de repente surge um levante comoo de Seattle, e as pessoas se surpreendem. Se você pensar, por que não estaria acontecendo nada? Por causa da decepção dessas pessoas com as suas próprias escolhas políticas? Existe uma renovação que é perturbadora para elas.


A:Elas preferem nem olhar, para não ver que o que perdeu sentido é a postura delas, e não o mundo...


R:E é o oposto. Se você não é capaz de renunciar às suas conquistas, você não merece suas vitórias. É necessário sempre se colocar em xeque, queimar os navios. É isso que mantém vivo. Meu pensamento sobre a coleção Baderna é o seguinte: se tudo andar bem, vou ficar rico com ela. Agora, se tudo der certo, não vai ser mais necessário dinheiro... É muito gozado, porque as pessoas falam que a Baderna é a novíssima esquerda, e se você olhar com calma, o que estes autores estão fazendo é retomar os temas da esquerda anterior à vitória do stalinismo, do leninismo. As questões presentes no debate na década de 10 do século passado, liberdade sexual, autonomia. Os lemas: “Nem pátria, nem patrão”. Quem mudou não foram os autores da Baderna, foi a esquerda institucionalizada que, hoje em dia, fica lutando para ter empregos, para ter patrão.


A:Mas sempre existiu esse conflito entre uma esquerda mais libertária, os anarquistas, os socialistas utópicos, e uma esquerda mais institucional.


R:Sim. Os marxistas estavam comprometidos com um projeto positivista, com a idéia de progresso, portanto se contrapunham radicalmente aos anarquistas. Este positivismo é uma questão muito complexa dentro do pensamento de esquerda. Você vai achar em quase todos os grandes nomes dela um encantamento com a idéia de progresso. Ao mesmo tempo, existe um olhar engessado em relação a esses nomes, porque se tenta justificar a história pessoal deles a partir do que eram ao morrer. Existe uma tentativa de criar uma coerência em relação à trajetória deles que é muito negativa. As pessoas tentam entender o Lênin de 1921, e negligenciam os fatos que não justificam aquela imagem. Porque eles não estavam assim tão isolados, eram permeáveis à cultura da época, aos bares que freqüentavam, aos interlocutores outros. Não sei se Lênin esteve ou não no Cabaret Voltaire. Mas passou perto. John Reed, por exemplo. Foi um fundador do Partido Comunista, acreditava piamente na revolução, mas era um libertário total. Para os padrões do Partido Comunista de 1960, de Brejnev, ele seria um anarquista. Um comunista, de jeito nenhum. E é essa corrente dissidente que nós tentamos retomar na Baderna. Tanto que o nosso santo padroeiro é o Maurício Tragtenberg. O pensamento aberto de Maurício Tragtenberg.


A:Ao mesmo tempo, a Baderna é uma coleção bastante contemporânea, que está preocupada com os novos textos, e não com os clássicos...


R:A postura é a seguinte: temos que ajudar na circulação e desenvolvimento de novas idéias. As idéias dominantes não ajudaram nem vão ajudar a criar um mundo melhor. Pelo contrário, combatem as possibilidades de o mundo se tornar um lugar mais livre e justo. E não sabemos de que jeito conseguiremos melhorar o mundo, mas de uma forma ou de outra isso vai acontecer. Me interessa muito o que ainda não foi feito. Então, nosso compromisso é com a circulação destas novas idéias, que podem fomentar alternativas. E existe realmente uma resistência a isso. Eu recebi censuras até de anarquistas por ter publicado o Hakim Bey. E recebi também o maior elogio que acredito que uma editora possa receber. Foi de um integralista. Ele entrou numa livraria de anarquistas, aqui em São Paulo. Ele freqüentava lá, ficava enchendo o saco. E um dia falou para o livreiro: “Olha, respeito essas editoras que publicam Bakunin, Proudhon, Malatesta. Porque, afinal de contas, eles eram filósofos. E já são clássicos. Agora, essa Conrad, eu sei o que ela é. Essa Conrad é parte de uma conspiração anarco-GLS que quer destruir a família brasileira com Hakim Bey e Pokemon”.Ele captou bem a idéia... Anarco-GLS. Me gusta.


A:Essa resistência é a mesma que enfrentam as novas mídias?


R:É parecida. As pessoas se assustam com o perigo de extinção de algumas instituições. Da idéia de artista, das gravadoras, das grandes editoras. As pessoas ficam preocupadas se o download vai destruir as grandes gravadoras. Qual o problema? As pessoas vão parar de fazer música? Não. E certamente se criarão novos meios de distribuição, possivelmente melhores. O que pode acabar são os grandes sucessos, de tocar as mesmas dez músicas em todas as rádios ao mesmo tempo. Ainda bem. As pessoas ficam na defesa de algumas coisas que não têm muito porquê.


A:Temem perder o que nunca tiveram...


R:A indústria não tem favorecido o diálogo. Não tem gerado pluralidade. Pelo contrário, ela tem combatido a diversidade cultural. A estrutura toda é excludente, vai botando para fora o que lhe é estranho. Não permite acesso a várias coisas que as pessoas possivelmente gostariam. Não é um placebo, é veneno mesmo. As editoras também. Não precisamos de best-sellers, de livros que vendem milhões de exemplares. Esses livros normalmente não formam leitores, e qual a real contribuição que trazem? Nós precisamos de maior diversidade de títulos, e da formação de um público leitor para essa diversidade. Então, se as grandes gravadoras, as grandes editoras caírem, o que nós realmente perdemos com isso?

Rogério Campos