A Caverna

Esta é a caverna, quando a caverna nos é negada/Estas páginas são as paredes da antiga caverna de novo entre nós/A nova antiga caverna/Antiga na sua primordialidade/no seu sentido essencial/ali onde nossos antepassados sentavam a volta da fogueira/Aqui os que passam se encontram nos versos de outros/os meus versos são teus/os teus meus/os eus meus teus /aqui somos todos outros/e sendo outros não somos sós/sendo outros somos nós/somos irmandade/humanidade/vamos passando/lendo os outros em nós mesmos/e cada um que passa se deixa/essa vontade de não morrer/de seguir/de tocar/de comunicar/estamos sós entre nós mesmos/a palavra é a busca de sentido/busca pelo outro/busca do irmão/busca de algo além/quiçá um deus/a busca do amor/busca do nada e do tudo/qualquer busca que seja ou apenas o caminho/ o que podemos oferecer uns aos outros a não ser nosso eu mesmo esmo de si?/o que oferecer além do nosso não saber?/nossa solidão?/somos sós no silêncio, mas não na caverna/ cada um que passa pinta a parede desta caverna com seus símbolos/como as portas de um banheiro metafísico/este blog é metáfora da caverna de novo entre nós/uma porta de banheiro/onde cada outro/na sua solidão multidão/inscreve pedaços de alma na forma de qualquer coisa/versos/desenhos/fotos/arte/literatura/anti-literatura/desregramento/inventando/inversando reversamento mundo afora dentro de versos reversos solitários de si mesmos/fotografias da alma/deixem suas almas por aqui/ao fim destas frases terei morrido um pouco/mas como diria o poeta, ninguém é pai de um poema sem morrer antes

Jean Louis Battre, 2010

18 de junho de 2018

Afonso Henriques Neto


Vamos falar um pouco sobre a “liberdade livre” de Rimbaud.

Essa expressão está numa carta de Rimbaud, onde ele diz que se empenha desesperadamente em manter a liberdade livre. É uma expressão muito forte, a soma do adjetivo com o substantivo marcando a insistência de Rimbaud na idéia de liberdade. E ele não estava sozinho, é claro. Gosto de olhar a literatura como um continuum histórico-cultural. Estamos sempre recontextualizando momentos históricos anteriores. E essa idéia de liberdade radical permeia toda a história da literatura. Existe um livro muito interessante sobre o tema, O poeta na república do poder, de um poeta peruano chamado  Mirko Lauer, que fala exatamente dessa tradição. Ele faz uma genealogia que remonta à Grécia, e fala principalmente de um poeta romano, Propércio, como quem deu uma expressão maior na Antigüidade a essa idéia de liberdade. Propércio se opunha às conquistas do Império Romano de César, afirmando que não tinha nada a ver com elas. Ele era contra tudo aquilo, achava que aquela guerra infindável não levava a nada. E colocava como contraponto o amor como símbolo da liberdade. Algo próximo do que iría-mos ver, 2 mil anos depois, na contracultura.

O amor não é uma forma radical de vínculo? Onde o livre da liberdade então?

Não, porque quando Propércio elege uma musa, essa musa não existe na realidade. É uma entidade que ele cria. Se fosse uma mulher física a quem ele estivesse dirigindo a palavra, você poderia até dizer que ele está preso a uma relação. Mas não, ele elege uma mulher-símbolo, mítica, para dizer que todo discurso do poder é vão. E ele poderia simplesmente acusar, denunciar este discurso, sem
pensar alternativas. Mas contrapõe a este discurso do poder uma situação radicalmentebexistencial. Ele conta eroticamente grandes noites de amor com essa mulher mítica, regadas com muito vinho, e diz que quem deita na cama com uma mulher e com os membros encharcados de vinho jamais vai fazer guerra. Porque não tem a menor possibilidade de pensar nisso. E o mais interessante é que houve uma tentativa de cooptação dele por César, porque ele se tornou um poeta muito popular na época, e César o queria como um poeta oficial. Há quem diga que Propércio teria sido cooptado no final da vida, pois ele também escreveu poemas ditos “oficiais”. O que mais interessa, apesar dessa possível contradição, é que o que ficou dele para a posteridade são as elegias ao vinho e à mulher, tudo banhado em radical liberdade. Rimbaud também caminha nesta direção. Em Paris, ele esteve na Comuna. Mas não era exatamente a dele. Ele queria brigar contra o discurso de poder de um modo geral, e não apenas alterá-lo. E ele queria romper também com todo o status literário. Essa idéia está presente quando Rimbaud vai escrever que “eu é um outro”. Para ele, não faz mais sentido o eu romântico. Ele já estava rompendo com todo o conceito de sujeito romântico, embora não definisse ainda o que é esse outro. É uma busca, um momento de ruptura interna, o que essa frase contém.

É uma frase seminal. De certa forma, ela prenuncia todas as vanguardas do século XX, o desejo radical de mudança.

Sim, de certa forma. Mas, pensando nas vanguardas do começo do século passado, é complicada esta questão do confronto do poeta com o poder. É interessante perceber que muitos dos grandes autores daquela época eram poetas quase “oficiais”, que cantavam ideologias. Isso vem de antes. Whitman de certa forma canta a democracia americana, toda a construção da América. E vai até Maiakovski cantando uma revolução que começa a surgir na União Soviética e que no fim não se resolve direito. Ele próprio entrou em conflito em relação a isso, no fim da sua vida, nos seus últimos textos. Mas a maior parte da obra dele é um canto oficial da revolução russa. A questão dos “ismos” todos da modernidade é muito perigosa. Cada “ismo” cantando um tipo de ideologia. O futurismo tem obras e autores que cantam o fascismo, o Estado puro. Alguns expressionistas vão virar nazistas, e aquilo já está presente em suas obras. É um perigo real. Mirko Lauer, no livro que citei, diz que só um certo surrealismo, que foi absorvido pelos beats americanos, é que de certa forma não cantou poder nenhum. Eu acho isso interessante.

Artaud, por exemplo...

Por exemplo. Artaud é um autor que sempre esteve em conflito com o poder. Foi expulso do surrealismo pelo Breton por se recusar a entrar no Partido Comunista. Foi precursor do interesse pelas culturas nativo-americanas, quando viajou para o México para encontrar os taraumaras e tomar mescalina. Agora, é importante também não demonizar o encontro da poesia com a política. Não estamos falando aqui de uma poesia escapista, sem relação com o real. Apesar de pessoalmente eu sempre propugnar por uma poesia em que o delírio e a imaginação fossem mais fortes do que um realismo simples, frágil, de puro registro do real. A poesia não é a linguagem do registro das coisas que os olhos captam na superfície, é outro tipo de linguagem. É uma tentativa de ver um pouco por trás desta pele. Sem nunca perder de vista o registro do real, é claro. Quando leio o discurso do Propércio, de se dirigir diretamente ao César, de tentar uma intervenção na realidade, aquilo me interessa. Ele está falando da guerra, está falando do ferro ferindo as populações, mas sempre com um trabalho poético, com metáforas, imagens muito elaboradas. E, em última análise, o Rimbaud também possuía essa consciência. Ele estava buscando uma saída, um caminho. A “liberdade livre” também não é uma coisa solta no espaço, é ancorada numa realidade brutal. Assim como Artaud. Assim como Van Gogh, quando não vende nenhum quadro em vida. Isso não é de graça, é porque uma linguagem muito forte e radical tem problemas de várias ordens para conseguir ser absorvido pelo público. Normalmente, ela precisa de tempo, e muitas vezes que ocorra uma diluição da sua originalidade. Há sempre uma tentativa de captura pela linguagem oficial.

E você acredita em possibilidades coletivas de criação de linguagens independentes?

Não. Mesmo os grupos instituídos, se você olhar bem, o que se nota é que somente um ou dois nomes se sobressaem, que são poucos os que realmente encarnam uma expressão mais radical. E esses autores que radicalizam métodos de pensamento, de expressão, acabam ficando um pouco distantes até mesmo dos amigos. Acabam se singularizando. São os nomes mais ensolarados, num certo sentido, apesar de muitas vezes mergulhados em trevas profundas, de serem figuras muitas vezes trágicas. Essa exploração radical é essencialmente solitária. A idéia de criação coletiva, ao menos na modernidade, é um esforço interessante, mas que não acredito que se cumpra inteiramente. Você pega um grupo de 15 autores, por exemplo, e acaba percebendo que mesmo unidos sob uma mesma bandeira, continuam sendo 15 solidões em busca de algo que está sempre fugindo, sempre fugindo. Isso é trágico de um lado e encantador de outro.

Ouvindo você falar do Propércio, do seu poder de influência, fiquei pensando que a assinatura, que uma certa idéia de propriedade autoral já deveria existir na Antigüidade, certo? Se não era com fins financeiros, certamente com intenção de aquisição de poder, de influência...

É, eles ali já lutavam politicamente por seu espaço, por seu nome, não é? Seja Platão, Aristóteles ou os outros, cada qual lutava para fazer com que o seu discurso predominasse, para com isso ganhar as benesses necessárias. Propércio era um escritor, não obtinha retorno direto da venda de seus textos, mas era um arauto, e isso certamente lhe trazia benefícios. Isso é interessante. Há mesmo uma luta política. Como nós viemos desta cultura, desta tradição, é essa tradição que a gente tem que examinar, mais do que a tradição japonesa, por exemplo, que possuía exemplos interessantíssimos de trabalhos coletivos, de quebra do autor, como os “haicais de hospedagem”, por exemplo, que eram poemas anônimos elaborados pelos poetas visitantes das hospedarias: eles os deixavam nas paredes para serem respondidos pelos próximos visitantes, e assim sucessivamente. Eu adoro a tradição japonesa, mas nós viemos da tradição greco-latina, e então essa cultura é que é a nossa cultura, e de lá para cá o que eu vejo o tempo todo são recontextualizações de coisas que foram criadas ali, que surgiram ali naquele lugar, naquele tempo. Se a gente não entender bem o que era aquilo lá, a gente está entendendo pouco do que nós somos hoje.

Já existia lá essa tentativa de cooptação pelo poder...

Sempre. Uma das formas mais radicais disso hoje é a absorção de uma estética à revelia de sua ética. Houve, por exemplo, uma penetração muito grande do discurso poético na publicidade. Então, foram criadas peças belíssimas, sinestésicas, fantásticas, e qual é a ética que existe por trás delas? Nenhuma. Há a beleza em si, mas para quê, apontando para onde? Então, voltamos para a idéia do velho humanismo, não podemos desvincular a ética do homem, pois ela é essencial para se definir o homem. E mais ainda para a poesia. Ela precisa se preocupar com o que é o homem nesse planeta, vivendo nesse momento histórico. É necessária esta consciência. A “liberdade livre” de Rimbaud pressupõe uma ética. Ela é, essencialmente, ética. E essa relação do poeta com o poder é duríssima, dolorosa ao longo da história. É uma guerra, um conflito que vem se dando desde sempre. A arma do poeta é também sua maior fragilidade. Porque enquanto o teórico político, vamos dizer assim, trabalha com uma linguagem em linha direta com o pensamento, com as estruturas conceituais, o poeta trabalha com uma linguagem outra. E qual é essa linguagem? Fico me lembrando quando Barthes coloca a idéia de que a linguagem tende para o lugar comum. O lugar comum, o estereótipo tende sempre a se agarrar à linguagem, é uma espécie de mata-borrão da linguagem. O teórico às vezes não tem muita preocupação com isso. Ele continua escrevendo, e de repente está preso naquele tipo de linguagem, que é a linguagem do poder. Em outras palavras, muito próximo do que oficialmente as palavras significam. E aí obviamente, mesmo sem ele querer ou se opondo a isso, ele está imerso no poder. O poeta, quando usa conscientemente as palavras que têm aquele significado, tenta torcê-las, torcer o significado delas. E nesse momento ele está praticando liberdade. E isso nada tem a ver com ausência de ética. É outro discurso, mas a ética continua. É possível ser poeta e ter uma ética marxista, cristã ou mesmo fascista. Embora prefira pessoalmente a possibilidade de uma ética menos compromissada com discursos do poder. Assim, a poesia trabalha em cima de desvios de linguagem. Ela realiza um exercício de liberdade independente dessa ética. Alguns com mais, outros com menos radicalismo. E esse desvio vai para onde? Não sei. É um desvio histórico. Platão já não gostou desse desvio lá atrás. Achou esquisito. Falou que é melhor nem ter esses caras por perto. E essa luta veio vindo. Você pode rastrear isso ao longo dos séculos. E o engraçado é que os poetas mais radicais, que vivem intensamente seu momento, muitas vezes passam a vida tomando porrada, e só são recuperados dois, três séculos depois. Villon é um exemplo disso.

E você acha que esta linguagem desviante permanece com o tempo? Que François Villon, por exemplo, continua possuindo uma força de estranheza, ou virou um clássico?

A estranheza certamente permanece. A linguagem pode parecer envelhecida, ou absorvida por um discurso oficial, mas quando olhamos com calma vemos que não é bem assim. Vamos pegar o caso do Machado de Assis, para ficar com um escritor que tem uma linguagem em princípio sem tantas quebras. Eu gosto de ler ele abrindo uma página ao acaso. Já conheço a história, então leio uma página, duas, e pronto. E de repente você percebe que o grande personagem daquelas páginas não é Brás Cubas ou então Capitu, mas a linguagem. É a linguagem colocada de uma forma estranha para mim, para todos, apesar de aparentemente estar dentro de uma lógica linear, quase de revista. E não é. O que é aquilo que encanta e encanta e encanta? É uma maneira de trabalhar a linguagem. E o escritor, e mais radicalmente ainda o poeta, é aquele cara que tem essa consciência do que é a linguagem. Ele sabe que aquela linguagem, se for colocada de uma determinada forma, presta serviço ao poder. Mas se você torcê-la, você começa a criar estranhezas, a libertá-la. Acredito que esta é a primeira consciência do escritor. Traduzi recentemente o “Bateau ivre”, do Rimbaud. Estava numa livraria e abri o poema ao acaso, e comecei a relê-lo. E o que me motivou a traduzi-lo não foram apenas as imagens delirantes, que são belas e novas. Eu vi também uma forma de trabalhar a língua muito interessante, muito precisa, usando cada palavra no lugar certo, com quebras muito interessantes. Quando o texto começava a ficar mais próximo de uma poesia oficial da época, ele colocava uma palavra que rompia com tudo isso, um “cataractant”. Não sei por que aquela palavra entrou ali, mas sem ela o poema se enfraqueceria muito. O “Bateau ivre” só está de pé por causa disso. Porque há transporte, há sonho, e há também essa consciência de linguagem. Rimbaud, ao contrário da imagem corrente dele como um aventureiro louco, era um erudito. Ele leu, estudou tudo. Ele escrevia correntemente latim com 14 anos. E leu todos os poetas latinos no original. É importante algumas vezes desmistificar um pouco, para ver com mais clareza. Ele não foi um ser encantado que subiu aos céus. Ele foi um ser humano com todas as crises, com todo o trabalho que é necessário para se transformar em um grande escritor. E esse trabalho é essencialmente solitário.

Para finalizar, gostaria de lembrar um verso seu: “Nada existe, celebremos aventura”. Isso é liberdade livre?

De certa forma sim. É curioso, porque algumas pessoas lêem esse poema de uma forma negativa. Ele incomoda por um aparente niilismo. E eu vejo como o contrário. Esse poema é exatamente a compra de uma certa liberdade, a percepção de que de fato tudo é transitório e fluído. Nesse sentido, tudo existe e nada existe. É a mesma coisa. Só que não coloquei o “tudo existe”. Poderia ter feito, mas o poema perderia irremediavelmente em força. As pessoas temem esta transitoriedade, e ficam então construindo estátuas. A estátua é uma coisa sólida, enquanto o discurso poético é fluido. Ao mesmo tempo que é pedra, também é ar. Então, estou criando neste verso uma consciência desta transitoriedade, e a liberdade que ela traz. E também o direito de celebrá-la. Sempre tive esta preocupação com a minha poesia. Não vejo a liberdade de uma maneira mítica. Ela é um exercício, uma busca. É uma discussão permanente, são as escolhas de cada momento. E qualquer um pode viver a qualquer instante a liberdade. É claro que isso pressupõe o direito de errar. Nós tropeçamos o tempo todo, erramos aqui, acertamos acolá, mas vamos tentando encontrar um caminho mais ensolarado. E passar essa tentativa de percepção para os outros, usando uma linguagem, no caso, poética. Podia estar usando outras linguagens, mas a poesia está mais próxima da liberdade. Sempre.

Afonso Henriques Neto (Revista Azougue 2006-2008)

31 de março de 2018

incêndio

há um incêndio em cada palavra
há no nome um vazio que não basta
todo vazio é um tipo de incêndio que não se completa
todo nome é a (im)possibilidade do esquecimento

Salvador Passos

indigesto

não meço ao certo o meu destino
ao gesto desregrado imprimo
talvez um certo desatino
no vácuo do olhar perdido
recolho as asas do voar
mirando ao longe outras praias
as formas fogem como sombras
as coisas fogem já sem nomes
a fala abraça um outro norte
a morte de algum sonho que naufraga
o arco de algum gesto incompleto
o marco de algum mastro submerso
meço o sopro pelas esporas do sufoco
meço o verso pelo som que já não levo
levo o que já não é tão leve
levo o gesto do incesto
a noite
o dia
a morte
a vida
o resto indigesto
daquilo que não gesta

Salvador Passos

mimimi


performance de Adelaide Ivánova para a série “Fruto estranho”, parte do programa da FLIP 2017
 
Pág. 75
“O problema não é que as pessoas lembrem por meio de fotos, mas que só se lembrem das fotos.
Lembrar, cada vez mais, não é recordar uma história, e sim ser capaz de evocar uma imagem”.
Na foto preto-e-branco, o corpo de ANGELA DINIZ está de bruços, descalço, de blusa e meia-calça,
sem a parte de baixo da roupa, sangue na altura da cabeça. ANGELA DINIZ foi assassinada em 1976
pelo namorado, com três tiros no rosto e um na nuca. A foto está online.
Na foto colorida, o corpo de LIANA FRIEDENBACH está num matagal, deitado de costas, calça jeans
e camiseta de banda de rock. LIANA FRIEDENBACH foi sequestrada, estuprada, torturada e
assassinada com golpes de facão na cabeça e no pescoço, em 2003, por um grupo de 5 homens. A foto
está online.
Pág. 80
“Todas as imagens que exibem a violação de um corpo atraente são, em certa medida, pornográficas.
Imagens do repugnante também podem seduzir”.
Na foto preto e branco, o corpo de CLAUDIA LESSIN está dentro de um saco, nas pedras perto de
uma praia. CLAUDIA LESSIN, assassinada por dois homens em 1977, foi encontrada nua com pedras
amarradas ao pescoço. A foto está online.
Nas filmagens coloridas, o corpo em cárcere privado de ELOA CRISTINA PEREIRA PIMENTEL é
espetacularizado pela mídia brasileira em tempo real. Baleada depois na cabeça e na virilha, ELOA
CRISTINA PEREIRA PIMENTEL foi assassinada em 2009 pelo namorado, pela polícia
incompetente, pela mídia brasileira e pelos espectadores. Foi tudo transmitido ao vivo.
Pág. 70
“Assim como a pessoa pode habituar-se ao horror na vida real, pode habituar-se ao horror de certas
imagens”.
Na foto colorida, o corpo de DANIELA PEREZ está de cabelo solto, blusa preta e jeans, num terreno
baldio. DANIELA PEREZ foi assassinada por um colega de trabalho dela e sua esposa, com 18
tesouradas, em 1992. A foto está online.
Na foto colorida, o corpo de SANDRA GOMIDE está de bruços, de calça marrom e camisa branca,
atrás de um tonel de lixo. SANDRA GOMIDE foi assassinada em 2000 por um ex-diretor de redação
do jornal Estadão. A foto está online.
Pág. 95
“Mostrar um inferno não significa dizer-nos algo sobre como retirar as pessoas do inferno. Alguém
que se sinta surpreso ou decepcionado com a existência de fatos degradantes ainda não alcançou a
idade adulta. Ninguém, após certa idade, tem direito a esse tipo de superficialidade, a esse grau de
ignorância ou amnésia”.
Nas filmagens coloridas, o corpo de CLAUDIA FERREIRA DA SILVA é arrastado pelo asfalto por
uma viatura da PM do Rio de Janeiro, depois de levar dois tiros, no pescoço e nas costas. CLAUDIA
FERREIRA DA SILVA foi assassinada pela PM carioca porque era pobre demais, negra demais. O
video está online.
Nas filmagens coloridas, LUANA BARBOSA DOS REIS SANTOS denuncia o brutal espancamento
que sofreu numa delegacia, para onde foi levada depois de se recusar a ser revistada por policiais
homens. LUANA BARBOSA DOS REIS SANTOS morreu dias depois, assassinada pela PM de sao
paulo porque era lésbica demais, negra demais. O video está online.
Nas filmagens coloridas, DANDARA DOS SANTOS é torturada e espancada por um grupo de
homens, em 2017. Usava top amarelo, short jeans e estava descalça. DANDARA DOS SANTOS foi
linchada por 12 homens porque era trans demais. O video está online.
para laura
em 1998 quando encontraram
o corpo gay de matthew shepard
sua cara tinha sangue por todo lado
menos duas listras
perpendiculares
que era por onde suas lágrimas
haviam escorrido
naquele dia o ciclista
que o encontrou não
ligou logo que o viu pra polícia
porque o corpo de matthew
estava tão deformado
que o ciclista achou ter visto
um espantalho
sábado passado em são paulo
um grupo de homens
e dois PMs mataram laura
não sem antes
torturá-la laura
foi vista ainda viva
por outro sujeito
que gravou
e postou no youtube o vídeo
de uma laura desorientada
e quem não estaria
com sangue jorrando da boca e da parte
de trás do vestido?
laura tem um corpo
e um nome que lhe pertencem
laura de vermont (presente!)
foi assassinada
por homens
pelo estado
e pela nossa indiferença
aos 18 anos
num sábado.
Na foto colorida, o corpo de DOROTHY STANG está de bruços, calça bege, camiseta branca e tênis
preto, numa estrada de barro. DOROTHY STANG foi assassinada com seis tiros na cabeça e tórax, em
2005, a mando de um fazendeiro, porque era ativista dos direitos dos camponeses no interior do Pará.
A foto está online.
Na foto colorida, o corpo de TEREZINHA NUNES MECIANO está de bruços no chão molhado,
cabelo preso, jeans, blusa estampada e um machado ao lado. TEREZINHA NUNAS MECIANO foi
assassinada a machadadas em Rondônia porque era ativista e líder da Liga dos Camponeses Pobres. A
foto está online.
Pág. 76
“fotos aflitivas não perdem necessariamente seu poder de chocar. Mas não ajudam em grande coisa, se
o propósito é compreender.”
Não há fotos dos corpos de LEIDIANE DROSDROSKI MACHADO, MARIA DAS DORES DOS
SANTOS SALVADOR, ZILQUENIA MACHADO QUEIROZ, LEIDIANE SOUZA SOARES,
SAMYLLA LETÍCIA SOUZA MUNIZ, EDILENE MATEUS PORTO e NILCE DE SOUZA
MAGALHAES, as outras 7 ativistas camponesas e ambientalistas assassinadas no Brasil em 2015 e
2016.
Não há fotos do corpo sem vida de DORA LARA BARCELOS, que se jogou na frente de um trem em
Berlim, em 1976. Anos antes, nas filmagens coloridas, DORA LARA BARCELOS conta as torturas
que sofreu nos porões da ditadura militar brasileira. O video está online.
Pág 63
“o outro só é visto como alguém para ser visto, e não como alguém que também vê”.
O corpo de ANA MARIA NACINOVIC CORREA foi fotografado nu, dentro de um saco plástico, de
olhos e boca abertos, com o número 3089-72. ANA MARIA NACINOVIC CORREA foi metralhada
num restaurante por agentes do DOI-CODI, em 1972. A foto está online.
O corpo de IARA IAVELBERG foi fotografado só de calça, com um pedaço de papel ou pano
cobrindo seu torso nu. IARA IAVELBERG foi executada em 1971 por agentes da DOI-CODI. A foto
está online.
O corpo de MARIA LUCIA PETIT foi fotografado pelos militares deitado de costas sobre um tecido
de pára-quedas, com as mãos sobre a barriga, de calça e camiseta, o cinto aberto, a cabeça dentro de
um saco plástico cheio de sangue. MARIA LUCIA PETIT foi executada em 1972 na Guerrilha do
Araguaia por um camponês aliado aos militares. A foto está online.
O corpo de MARIA REGINA LOBO LEITE FIGUEIREDO foi fotografado nu, com sangue saindo
pelo nariz, boca e olhos abertos. MARIA REGINA LOBO LEITE FIGUEIREDO foi executada na sua
casa em 1972 por agentes do DOI-CODI. A foto está online.
O corpo de PAULINE REICHSTUL foi fotografado de camiseta branca, com sangue saindo pelas
duas narinas. PAULINE REICHSTUL foi torturada até a morte no massacre da chácara São Bento em
1973. A foto está online.
O corpo de SOLEDAD BARRETT foi fotografado de calça e camisa de botão, no chão, uma poça de
sangue do seu lado direito. SOLEDAD BARRETT, que estava grávida do homem que a delatou, foi
torturada até a morte no massacre da chácara São Bento em 1973. A foto está online.
O corpo de SONIA MARIA DE MORAES foi fotografado deitado, com um número de identificação,
blusa estampada, os olhos fechados, marcas de tiro na têmpora e no maxilar. Antes de ser executada,
no DOI-CODI do Rio em 1973, Sonia foi torturada e estuprada com um cassetete. A foto está online.
O corpo de AURORA MARIA NASCIMENTO FURTADO foi fotografado deitado de lado, sem
sapatos, com vestido curto claro, coberto de sangue, numa calçada. Aurora foi torturada até a morte no
mesmo dia em que foi presa por agentes do DOI-CODI do Rio, em 1972. A foto está online.
1. Ana Rosa Kucinski Silva
2. Ieda Santos Delgado
3. Ísis Dias de Oliveira
4. Jane Vanini
todas da Ação Libertadora Nacional – ALN
5. Heleny Telles Ferreira Guariba
da Vanguara Popular Revolucionária – VPR
6. Maria Augusta Thomaz
do Movimento de Libertação Popular MOLIPO
7. Maria Regina Marcondes Pinto
do Movimento Izquierda Revolucionario MIR
8. Áurea Eliza Pereira Valadão
9. Dinaelza Soares Santana Coqueiro
10. Dinalva Oliveira Teixeira
11. Helenira Rezende de Souza Nazareth
12. Jana Moroni Barroso
13. Lúcia Maria de Souza
14. Luíza Augusta Garlippe
15. Maria Célia Corrêa
16. Suely Yumiko Kanayama
17. Telma Regina Cordeiro Corrêa
18. Walkíria Afonso Costa
todas do PCdoB
Não há fotos dos corpos dessas que são as 18 desaparecidas políticas no Brasil – e porque não há fotos,
duvida-se dos fatos.
Não há fotos de cada uma das 13 mulheres assassinadas por dia, no Brasil, fazendo do país o quinto do
mundo em número de feminicídios – e como não há fotos, duvida-se os fatos.
Não há fotos dos 3 anos que a presidenta eleita Dilma Rousseff ficou presa e foi brutalmente torturada
– e porque não há fotos, duvida-se dos fatos.
Não há fotos do corpo desaparecido de ELIZA SAMUDIO – e como não há fotos, duvida-se dos fatos.
O que há é uma foto da presidenta eleita Dilma Rousseff impressa em formato de adesivo, para colar
na boca do tanque dos carros, em foto-montagem em que ela aparece levantando a saia, com as pernas
abertas, para que seja simbolicamente violada por uma bomba de gasolina. Dá para comprar na
internet, inclusive.
O que há é uma foto da presidenta eleita Dilma Rousseff sendo perfurada por uma espada, num truque
de ilusão de ótica, numa imagem que ganhou prêmio e tudo.
O que é há é uma foto da presidenta eleita Dilma Rousseff assistindo a um jogo da copa, ou seja, se
divertindo, numa imagem que foi usada depois na capa da revista Isto É com a manchete “As
explosões nervosas da presidente”.
O que há são fotos da presidenta eleita Dilma Rousseff respondendo a 14 horas de interrogatório num
processo fajuto de impeachment, cujo nome verdadeiro é golpe.
O que há são inúmeros memes em que a presidenta eleita Dilma Rousseff é ameaçada de estupro e
assassinato, é aconselhada a transar mais, e é xingada de “quenga”, “sapatão”, “mentirosa”, “cão
chupando manga”, “filha dilma puta”, “dragão” e sobretudo de “bruxa”.
sobre uma foto no huffington post, em 01 de novembro de 2015
de que adianta esse pôster de madonna na
parede da cozinha indicando de qual lado
estou se na papua nova guiné continuam
linchando mulheres a quem chamam de bruxa
a papua pode até ser guiné mas nisso não
tem nada de nova e se for para queimar uma
mulher por bruxaria que queimem logo todas
de que adianta beyoncé avisando que vai sentar
o rabo na cara do boy e de que adianta eu me
inspirar nisso para fazer igual ou parecido se na
papua nova guiné sentam senhoras em telhas de
brasilit e com elas amordaçadas abrem nacos de
carne e sangue que na foto escorria pelas rugas da
telha pelas rugas das costas da mulher essa mulher
de cabelo curto e preto de costas na foto parecia a
minha mãe eu perdi o controle não consegui mais
almoçar e sei que não vou conseguir dormir mas
de que adianta minha insônia e meu jejum e esse
poema se na papua nova guiné não iriam entendê-lo
e mesmo a compreensão dele não salvaria a vida da
mulher e mesmo no brasil onde se pode entendê-lo já
se sabe que
poemas tal qual leis não mudam nada tudo
sobre isso já foi legislado e dito em todas as línguas
também em português mas meu deus
de que adiantaria meu silêncio?
de quem estaria meu silêncio a serviço?
 
Adelaide Ivanova